No reduto político de Néstor e Cristina, kirchnerismo tenta sobreviver a Milei

Pela primeira vez em 30 anos, a província no extremo sul do país terá um governador de oposição

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar
Cristina Kirchner, vice-presidente da Argentina (Reprodução, Internet)

Quem caminha por Río Gallegos, na Província de Santa Cruz, sente a presença constante do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) em estátuas, fotos e ruas. Ele morreu em 2010, mas manteve o domínio da política nacional graças a sua mulher, Cristina (2007-2015). O tempo, porém, foi cruel com o kirchnerismo, desgastado pela crise e pelo avanço do candidato libertário Javier Milei.

Pela primeira vez em 30 anos, a província no extremo sul do país (daí o apelido “el pinguino”, dado a Néstor) terá um governador da oposição, Claudio Vidal. Na eleição presidencial, o candidato peronista, Sergio Massa, apoiado por Cristina, venceu o primeiro turno, mas disputa voto a voto com Milei o segundo turno, no domingo (19).

Entre os moradores, a insatisfação é notável, assim como o receio em revelar o voto para presidente. A maioria se coloca entre os indecisos, mas se diz cansada “dos mesmos”. “Temos de aprender a fazer oposição”, disse ao Estadão Agostina Mora, ex-secretária da Igualdade do governo provincial de Alicia Kirchner, irmã de Néstor. “Sempre fui parte do governo de Santa Cruz. Nosso papel agora será descobrir como fazer uma oposição inteligente.”

Autoridades do governo provincial, como Juan Miguel Litvachkes, assessor jurídico, e Belén Serfaty, secretária de Dispositivos Territoriais, citam a presença de um “voto envergonhado” em Santa Cruz – o receio de as pessoas admitirem que votam em Milei

Silêncio

María Belén LeDesma, de 31 anos, se mudou de Buenos Aires para Río Gallegos no início do ano. Por ser de fora, se dizia confortável em comentar a política local, mas também sente a espiral do silêncio sobre o voto. “Existe um clima de medo de falar que pensa diferente.”

No primeiro turno, Massa ganhou apertado em Santa Cruz (38% a 36,3%) – menos de 3 mil votos. A vitória é creditada ao aparato peronista, especialmente no reduto kirchnerista, que mobilizou os eleitores – liderando um partido pequeno, sem governadores e prefeitos, Milei quase não fez campanha. “Massa fez uma boa eleição (em Santa Cruz), apesar do que diziam as pesquisas”, afirma o cientista político Sebastian Cruz Barbosa, em referência ao desempenho melhor do governista no primeiro turno em relação às primárias, em agosto.

Mas uma derrota dura foi o governo da província, que estava nas mãos do peronismo desde o retorno à democracia, em 1983. “O caso de Santa Cruz é o fenômeno do esgotamento de ciclos muito longos de mandatos”, explica Barbosa, que estuda o kirchnerismo.

A derrota local pode custar caro para os que tentam manter a memória de Néstor na capital da província. Em Río Gallegos está sua casa de infância e a primeira onde Cristina morou depois de casada. Também ali estão as propriedades investigadas em esquemas de corrupção, como a icônica casa vendida a Lázaro Báez, empresário e amigo do casal K, preso por corrupção – em 2016, o local ficou conhecido pelas imagens de escavadeiras abrindo buracos em busca de dinheiro enterrado.

Em Río Gallegos, de 80 mil habitantes, Néstor é uma versão local de um herói nacional em um país acostumado a cultuar semideuses, como Perón e Maradona. Sua imagem é onipresente, em restaurantes, diante da prefeitura e no gigantesco mausoléu, onde está seu corpo.

Futuro

O bar NK Ateneo – em referência ao ateneu onde nasceu a militância kirchnerista – reúne conhecidos e antigos amigos de Néstor, como Gabriel Aguirre, que foi o motorista que conduziu o féretro do ex-presidente. “Até hoje tenho a sensação de orfandade”, disse. “Eu me imaginei dirigindo muitas coisas, mas nunca o carro com seu corpo.”

Mas, para a juventude de Río Gallegos, Néstor é uma lembrança relatada pelos pais, o que explica a popularidade de Milei entre os jovens. Por isso, o futuro do kirchnerismo é uma incógnita, mesmo em seu reduto. Massa rompeu com Cristina e, se ocupar a Casa Rosada, pode remodelar o peronismo à sua imagem, se distanciando do legado do casal K.

Conteúdos relacionados