Com mortos relatando a própria morte, febre do TikTok pode configurar crime de vilipêndio a cadáver
Casos recentes de Mato Grosso do Sul com repercussão nacional também foram animados por inteligência artificial em páginas do TikTok e especialista faz alerta
João Ramos –
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Uma nova tendência do TikTok está reanimando pessoas mortas por meio de inteligência artificial, em vídeos que as próprias vítimas aparecem relatando detalhes dos crimes que sofreram. A “trend” já virou febre na plataforma e dois recentes casos de Mato Grosso do Sul, inclusive, ganharam destaque entre os perfis: o de Sophia Ocampo, morta aos 2 anos de idade em janeiro deste ano, após sofrer vários abusos e ser agredida, e do jovem jogador de futebol Hugo Vinícius, de 19, morto e esquartejado em Sete Quedas no mês de junho.
As duas vítimas sul-mato-grossenses, assim como outras vítimas de crimes de todos os lugares do mundo, foram reanimadas por aplicativos de inteligência artificial. Donos de perfis no TikTok como “Crimes chocantes”, “Casos reais” e “Histórias macabras” usam imagens das pessoas mortas, dando a impressão que as mesmas estão vivas ou “voltaram do além” para contar o mal que lhes fizeram.
“Meu caso é recente para o Brasil. Prepare seu estômago, eu me chamo Sophia e tenho dois anos”, inicia o vídeo de Sophia, com a menina avisando aos internautas sobre a gravidade de sua história. Já o vídeo de Hugo Vinícius é mais direto: “Fui morto e esquartejado na cidade de Sete Quedas, na casa da minha ex. O meu corpo foi localizado 10 dias depois, em pedaços”, relata a gravação.
Veja:
Casos famosos como o de Daniella Perez, assassinada pelo colega de trabalho Guilherme de Pádua em 1992, e do jornalista Tim Lopes, morto em 2022 a mando de um traficante, também foram reproduzidos pela nova febre do TikTok. A ação, no entanto, pode ser enquadrada no crime de vilipêndio a cadáver, segundo explicação de um especialista em Direito Digital ao Jornal Midiamax. Leia mais abaixo.
Febre do TikTok
A mania é acompanhada por milhões de usuários da plataforma e são inúmeras contas espalhando o mesmo tipo de conteúdo feito por inteligência artificial. Além de contar com milhares de seguidores, os vídeos também explodem de visualizações e são frequentemente compartilhados em grupos de WhatsApp.
Tamanho alcance faz as animações chegarem às famílias e o sentimento de ver o ente, mesmo que de forma artificial, descrevendo os crimes sofridos, causa as mais diversas reações. No caso de Sophia, o pai afetivo da menina se manifestou e agradeceu quem fez a montagem. Já no de Hugo, a família ainda não se pronunciou oficialmente sobre a gravação e nem comentou o vídeo que circula nas redes sociais.
Pode configurar crime
Para Raphael Chaia, especialista em Direito Digital e presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/MS, caso alguma família queira representar judicialmente contra a exposição das imagens de seus entes mortos, a febre do TikTok pode ser enquadrada no crime de vilipêndio a cadáver.
“É uma situação nova, o Direito não prevê isso, óbvio, porque trabalhamos com um Código Penal de 1940, mas se formos utilizar o que já temos hoje, seria possível fazer o enquadramento no crime de vilipêndio a cadáver”, explica.
O vilipêndio de cadáveres é considerado crime contra o respeito aos mortos, previsto no artigo 212 do Código Penal Brasileiro. A pena prevista é de um a três anos de detenção e multa.
Autorização e o Caso Elis Regina
Raphael, no entanto, pondera que a ação de animar pessoas mortas no TikTok só pode ser considerada um crime caso não haja a autorização da família. “Essa é uma situação bem delicada. Tivemos o caso da polêmica propaganda da Volkswagen com a Elis Regina, inclusive, o Conar abriu uma investigação com relação a essa propaganda. Tudo se resume à existência de autorização dos familiares para o uso da imagem da pessoa ou não. No caso da propaganda, a filha Maria Rita participa com a mãe Elis Regina, então com certeza autorizou o uso da imagem e da voz, não haveria problema”, exemplifica o advogado, mencionando o comercial que recriou Elis Regina com inteligência artificial e ainda a colocou ao lado da filha para cantar no vídeo.
“Agora, esse caso do TikTok é um pouco mais grave porque eu particularmente duvido muito que os familiares das vítimas estejam aceitando o uso das imagens das vítimas dessa forma, especialmente em um perfil que, inclusive, pode ser monetizado com base no número de seguidores”, pontua Chaia.
Assista ao comercial polêmico com Elis Regina em inteligência artificial:
Vilipêndio a cadáver
Em relação ao crime de vilipêndio a cadáver, Raphael ainda detalha. “Basicamente significa você desrespeitar, ultrajar a memória de quem já faleceu. Se pensarmos que temos imagens de uso não autorizado para produção de vídeos em perfis que estão monetizando para ganhar seguidores, mais do que está caracterizado o vilipêndio a cadáver. Sem prejuízo de eventual dano moral na esfera cível”, argumenta.
Contudo, é importante ressaltar que a possibilidade do enquadramento surge do pressuposto que esses perfis estariam agindo sem autorização dos familiares. Nos casos de Mato Grosso do Sul, o pai afetivo da menina Sophia aprovou o conteúdo e até repostou nas redes sociais. Já em relação ao vídeo de Hugo, a família não respondeu ao Jornal Midiamax se teve acesso ao material e nem se autorizou o uso da imagem do jovem pelas páginas do TikTok.
O Jornal Midiamax também entrou em contato com as páginas que estão produzindo esse conteúdo questionando se eles têm a devida autorização, mas não recebeu resposta de nenhum dos perfis. Nos milhares de comentários, quase não há quem recrimine o conteúdo, apenas demonstrações de tristeza e espanto com as histórias contadas.
São informações públicas: e o direito de acesso à informação?
Pensando na possibilidade dos perfis se assegurarem no direito de acesso à informação por usarem imagens e casos de conhecimento público, o especialista Raphael Chaia contrapõe. “Direito de acesso informação garante a imunidade nas hipóteses de pesquisas científicas, pesquisas acadêmicas e materiais jornalísticos. E o perfil de TikTok não se enquadra em nenhuma”, afirma.
“É preciso ter muita cautela, porque ainda que a informação seja de domínio público, a imagem da pessoa está protegida pelos direitos de personalidade. E os direitos de personalidade não cessam com a morte da pessoa, eles se transmitem para os familiares, que passam a poder decidir se vão autorizar o uso da imagem da pessoa ou não”, encerra Chaia.
Em entrevista ao Uol Tilt, o especialista em Deep Fake, Bruno Sartori, afirmou que os vídeos em questão não podem ser considerados como deep fake. “É uma imagem animada a partir de um áudio. Com esse áudio, eles conseguem fazer o que a gente chama aqui de labialização – a IA é capaz de reconhecer a posição dos lábios. É IA com redes generativas [que gera conteúdo], mas não como são feitos os deep fakes”, declara.
Ele ainda encerra dizendo que “Isso é tendência, não tem como evitar. Como tudo que acontece na internet, é meio sem freio, não tem como controlar”.
Relembre os casos de MS
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