Sonho do trabalho ideal passa de mãe para filho e frustra gerações em Campo Grande

Dados do Caged apontam que jovens em Campo Grande têm mais oportunidades de trabalho do que idosos

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Praça Ary Coelho foi fundada em 1909, cerca de 15 anos antes do Dia do Trabalho. (Foto: Nathalia Alcântara/Jornal Midiamax)

Viver o próprio sonho de infância pelos olhos dos filhos ou deixar para depois o que poderia ser vivido hoje. Da jovem venezuelana de 18 anos que envia parte do salário de atendente para a família no país vizinho a quem teve filhos na adolescência e precisou adiar a faculdade, a vida não pede permissão e atropela com responsabilidades a fantasia de ser professor, advogado, jornalista ou médico. 

Na Praça Ary Coelho, no coração de Campo Grande, jovens e idosos que cruzam o espaço todos os dias a caminho do trabalho compartilham sonhos interrompidos. Esta é mais uma reportagem do Jornal Midiamax na série especial do Dia do Trabalho, a data foi criada em 1924 quando a praça da Capital já completava 15 anos. 

A profissão sonhada quando criança não se tornou realidade e o diploma universitário nunca foi celebrado. Anézia Cassemira dos Reis, de 69 anos, conta que tinha vários sonhos quando criança, mas quando começou a trabalhar muita coisa mudou. “Você esquece dos seus sonhos, disse”. Foi mãe solo jovem e as obrigações com a família não permitiram que entrasse na faculdade e fosse professora. 

Ao invés disso, trabalhou em diferentes lugares e ocupações, como manicure, em lojas e servidora pública até que 30 anos atrás sofreu um derrame e foi aposentada. 

“Sofri um derrame e não posso falar muito porque o sonho foi terminado. Aí vem os filhos e você cria os filhos, tudo em torno deles. Eu criei os meus filhos sozinhos, o pai deles foi embora e nos deixou e eu fui obrigada a cuidar dos meus filhos sozinhos. Só eu e Deus. Quer dizer, os meus sonhos não foram perdidos porque foram passados para os meus filhos”. 

Anézia sofreu um AVC em 1991. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

Anézia, que estava sentada em um canto da Praça Ary Coelho pregando a palavra de Deus em uma manhã de segunda-feira, conta que hoje “está muito bem”, porque um dos filhos é advogado e o outro é empresário no interior. 

“Eu tô muito bem, os meus filhos também estão, tenho um filho advogado e se Deus quiser vai ser juiz, ele tá fazendo concurso”, sonha a mãe orgulhosa.

A realidade de Anézia, de adiar sonhos por causa dos filhos, também é compartilhada pelo jovem representante de vendas André Lima, atualmente com 27 anos. Foi pai aos 19 anos e saiu da escola sem terminar o 3º ano do Ensino Médio. As contas para pagar com um salário apertado não permitiram em quase dez anos entrar na faculdade. 

Perguntado sobre o que queria ser quando criança, André enumera três profissões: padre, jornalista ou cozinheiro. Líder religioso porque ia muito à igreja quando pequeno, mesmo a contragosto pela insistência da avó.

André sonha em ser jornalista. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

Cozinheiro porque uma das memórias mais afetuosas da infância humilde é a habilidade do avô no fogão, especialmente da dobradinha que preparava. Por fim, o sonho da faculdade de Jornalismo continua porque acredita na importância de esclarecer fatos e levar informações de qualidade para a população.

“Hoje está em segundo plano fazer faculdade porque tem contas, prioridades e não sobra dinheiro para faculdade. Eu venho de uma família bastante humilde, desde pequeno trabalhando cedo e o dinheiro nunca dá, tudo muito caro e quem tem uma situação até boa tem sim como correr atrás, fazer uma faculdade, realizar sonho, mas a gente que é baixa renda, que veio lá de baixo, para subir na vida é sempre mais difícil”, ele avalia. 

André relembra que em uma época até tentou trabalhar em dois empregos, um de dia e o outro à noite, mas a rotina exaustiva não vingou e precisou desistir do trabalho na lanchonete. 

“Acho difícil o acesso a informações sobre bolsas [de faculdade], tanto eu como a minha atual esposa a gente procura. Ela quer fazer marketing digital, mas por questão financeira ela não faz”, explica. 

Desistir de sonhos cruzou a fronteira

Daniela Acosta, de 18 anos, é venezuelana e veio para o Brasil há sete meses em busca de condições melhores de vida e oportunidade de trabalho diante da crise que assola o país vizinho. 

Mesmo tão jovem, carrega responsabilidades de adultos. Deixou de lado o sonho de ser médica e prioriza a família que continua na Venezuela, a milhares de quilômetros de distância, com o envio de dinheiro para a mãe que está doente e não consegue trabalhar. Ela e o irmão, que mora com a matriarca, dividem as despesas da casa.

“Eu quero fazer um curso para entrar na faculdade de medicina aqui no Brasil, mas o meu sonho de vida [agora] é me reunir novamente com a minha mãe e meu irmão […] eu ajudo eles porque estão muito mal, tenho que mandar dinheiro para eles para que tenham o que comer”, ela relata. 

Daniela tem 18 anos e sonha em ser médica. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

O objetivo da vida da menina agora é conseguir trazer a mãe e o irmão para junto dela e ter a família novamente reunida. Daniela mora com uma tia na região do Aeroporto e leva cerca de 45 minutos de ônibus para chegar ao serviço no centro de Campo Grande. 

Miguel Rocha, atualmente com 90 anos, também desistiu da profissão idealizada na infância quando estava em outro país, porém décadas atrás. 

A pedido do pai adotivo, aos 10 anos foi morar nos Estados Unidos, mas aos 16 precisou voltar ao Brasil devido a assuntos pessoais. 

Quando retornou ao Brasil, não recebeu incentivos da família adotiva para ingressar na faculdade, apesar do sonho de ser médico psiquiatra ou advogado, assim como o pai adotivo que foi juiz de paz. 

“Eu fui para os EUA porque o meu pai queria que eu tivesse uma formação melhor, cometi erros […] voltei pro Brasil e casei com a Francisca. Ela me ajudou nas horas mais difíceis. Uma coisa que fico sentido até hoje é que ele [pai adotivo] nunca arrumou emprego para mim, eu bati muita cabeça”, ele relembra.

Francisco trabalhou como corretor de imóveis, porém como nunca contribuiu para a previdência não teve direito a aposentadoria. Hoje sobrevive com um salário mínimo deixado pela falecida Francisca, que morreu há quase 15 anos devido a complicações pela diabetes. 

Miguel recebe um salário mínimo. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

“Se eu tivesse emprego com segurança, estudo, eu poderia estar aposentado com R$ 10,12 mil, poderia ser professor, ter tirado um diploma universitário. Agora os parentes do meu pai adotivo têm professor, psicólogo e advogado […] A minha esposa morreu de diabetes há 14 anos, ela ficou doente e todo dia levava ela para fazer diálise, perdeu a visão, perdeu dedo da perna, praticamente sofreu por sete anos”, se recorda sobre o passado. 

Continuar sonhos mesmo com dificuldades

A estudante do último ano do Ensino Médio, Gabriela Ávalo, de 17 anos, corre todos os dias para atender clientes, corre para pegar o ônibus e corre para não chegar atrasada na escola.

Sonha em ser pedagoga, assim como a tia, e estudar na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Porém, até conquistar a sonhada vaga, Gabriela enfrenta uma rotina corrida e desfavorável se comparada com a de outros estudantes que têm a oportunidade de fazer cursinhos pré-vestibular e se dedicam somente aos estudos. 

A jovem entra às 10h no serviço em uma rede de fast-food na região central de Campo Grande e sai às 16h. Precisa torcer para que o 081 não atrase, como é comum, para não perder o ônibus que a leva até o bairro Caiobá. 

Chega em casa, toma banho, se arruma e vai para a escola no bairro Iracy Coelho, já que a região onde mora não tem escolas estaduais com vagas no período noturno. Volta para a saga do ônibus e pega dois coletivos. Até chegar à escola já são quase 20h e perdeu o primeiro tempo, pois as aulas começam às 19h. 

Praça Ary Coelho (Ilustração: Madu Livramento/Jornal Midiamax)

Além dela, Gabriela conta que outros colegas enfrentam o mesmo problema de chegar atrasado na escola devido à rotina com os ônibus. 

“Faz duas semanas que não vou à escola porque chego tarde e não tenho como ir. Eu saio no horário, mas os ônibus atrasam. O 081 o certo era passar 16h10, mas ele passa 16h20, aí vou para o terminal Bandeirantes, chego lá, pego o Caiobá, leva quase duas horas para chegar em casa”, conta. 

A pessoa que chegou mais perto de trabalhar com a profissão dos sonhos foi o caminhoneiro aposentado, Marcos Antônio Fraga, de 60 anos. Dirigir era o plano B se seguir na carreira militar, como o pai, não desse certo.

Porém, a sorte não sorriu para Marcos por um fator que estava além do controle dele. “O meu sonho mesmo era ser militar, o segundo sonho era virar caminhoneiro. Trabalhei muito tempo com caminhão, agora tô quieto e aposentado. Na época tinha que ir um para a academia militar, eu era mais jovem e o meu irmão mais velho foi. Na época não tinha aquele concurso direto na academia, então fiquei para trás”, ele lamenta.

De fala calma, Marcos conta que a vida na estrada não foi fácil e que chegou a conhecer todo interior de Mato Grosso do Sul. “A gente passa por várias dificuldades, mas eu gostei muito de viajar, então é bom para a gente”, ele se alegra. 

Além do salário de aposentado, Marcos Antonio realiza alguns bicos para complementar a renda. Ele tem duas filhas e se contenta que as duas trabalham com o que sonharam, como enfermagem e advocacia. 

“Eu acredito que a gente que tem filho tem que colocar objetivo na cabeça deles de fazer o que gosta e não coisa errada, coisas que vai dar para o futuro delas”, ele aconselha. 

Jovens são mais contratados do que idosos em Campo Grande

Os jovens de até 24 anos têm mais oportunidades de trabalho do que os idosos em Campo Grande. De acordo com o Novo Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e Emprego), de março deste ano, 602 novos postos de trabalho foram ocupados por pessoas entre 18 e 24 anos. Já a faixa etária de até 17 anos foi responsável por 255 carteiras assinadas. 

Entre os mais velhos, houve mais demissões do que contratações, o que resultou em saldo negativo de -10 postos de trabalho ocupados por pessoas de 50 a 64 anos e -40 para trabalhadores de 65 anos ou mais. 

Marcos Antônio se aposentou como caminhoneiro. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

MS é o 13º no ranking de vagas

Mato Grosso do Sul é o 13º estado do país que mais criou vagas no país em março deste ano, de acordo com dados do Novo Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e Emprego). No terceiro mês deste ano, 3.680 novas vagas com carteira assinada foram abertas no Estado.

Segundo a Carta de Conjuntura do Mercado de Trabalho de abril, divulgada na quinta-feira (27) pela Semadesc (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar), no primeiro trimestre deste ano, o Estado registrou 14.366 novas vagas com carteira assinada. 

Campo Grande foi a segunda cidade que mais criou postos de trabalho de janeiro a março deste ano, com 2.558 empregos. A Capital ficou atrás apenas de Ribas do Rio Pardo, com 2.948 novas vagas.