Na lida diária, trabalhador ambulante cai na informalidade para garantir sustento em Campo Grande

Da Praça Ary Coelho, coração do comércio ambulante, Elza tirou sustento para cinco filhos, 15 netos e seis bisnetos

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Há 22 anos, dona Elza trabalha com carrinho de pipoca na Praça Ary Coelho (Foto: Nathália Alcântara, Jornal Midiamax)

Foi com o dinheiro da venda de pipoca, algodão-doce e bebidas que a vendedora Elza da Silva, de 62 anos, criou uma família tão grande quanto o amor que os rodeia. “São cinco filhos, 15 netos e seis bisnetos e todo o sustento da casa saiu e até hoje sai daqui”, conta. 

Há 22 anos na Praça Ary Coelho, a veterana no carrinho de pipoca já viu de quase tudo acontecer e vivenciou diversas épocas, desde os “tempos de glória”, quando mais de 50 vendedores dividiam clientela, até épocas difíceis, tomadas pela preocupação com os rendimentos.

“No início eram 52 vendedores aqui, depois cercaram a praça e diminuiu bastante o movimento porque as pessoas perderam a liberdade de circular. Recentemente a nova 14 de Julho tirou os ônibus e nos afetou mais uma vez. Por fim a pandemia quase acabou com tudo”, detalha. 

Ponto de trabalho de Elza há duas décadas e a primeira praça de Campo Grande desde 1909, a Ary Coelho testemunha os avanços dos direitos do trabalhador, como a criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) em 1º de maio de 1943 e também a transformação de quem deixou de cruzar a praça diariamente durante a pandemia da Covid-19, quando os passos apressados no chão de lajota marrom deram lugar ao silêncio trazido pelo teletrabalho.

Apesar das dificuldades e mesmo depois de ver tantos companheiros deixarem o local, Elza não desiste da praça. “Eu trabalho todos os dias, de segunda a segunda e até feriado. Chego aqui às 9h e fico até às 19h. Amo trabalhar aqui e acho que morro se sair dessa”, afirma.

Nas ruas da cidade, se repetem histórias de quem construiu uma vida com o dinheiro das vendas. Entre as opções, produtos variados que vão desde comida e bebidas, até produtos eletrônicos, de casa e utilidades. Quem nunca viu vendedores de guarda-chuva brotarem no Centro em dia de chuva?

Praça Ary Coelho é coração do comércio ambulante em Campo Grande. (Ilustração: Madu Livramento / Jornal Midiamax)

Recomeço

Para Sandra Oliveira, de 41 anos, o trabalho na Rua 14 de Julho representa um recomeço. Há 8 anos, paralisação na medula espinhal paralisou o movimento das pernas e trouxe nova realidade para a trabalhadora: o uso de cadeira de rodas. 

“Antes trabalhava como promotora de vendas, depois que virei cadeirante, fui vender trufas em frente a uma escola e isso me servia até como uma terapia naquele momento. Na pandemia, a escola fechou e não tinha mais como trabalhar, com isso, decidi vir aqui para a região do centro, perto da praça”, detalha.

Sandra trabalha há 8 anos como ambulante. (Foto: Nathalia Alcântara / Midiamax)

Desde 2020, Sandra teve de se reinventar para não ficar sem serviço. “Na pandemia, comecei a vender máscara para me adaptar à necessidade das pessoas, hoje vendo meias, doces e MS Cap”, explica. 

Com a rotina diária, a vendedora não se julga realizada, mas se diz agradecida pelo serviço que a possibilita ter de onde tirar o ganha-pão. 

“O movimento aqui do Centro caiu bastante nos últimos anos, muita gente tem preferido comprar no bairro, se a circulação de pessoas aumentasse seria bom para nós. Mesmo assim, graças a Deus estou pagando minhas contas, consigo comer bem e ter o básico para viver”, finaliza. 

Sustento do suor que sai das ruas

Para centenas de trabalhadores, as ruas de Campo Grande são sustento de casa e da família. Aos montes, vendedores ambulantes são retratos de quem encontrou na informalidade a chance de garantir renda, mesmo que para isso seja preciso abrir mão de direitos básicos e encarar semanas sem folga e cargas horárias que extrapolam limites e beiram a exaustão.  

Por lei, o comércio ambulante ou artesanal em Campo Grande depende de licença especial, documento emitido pela Semadur (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano), no entanto, atualmente a autorização é dada basicamente para o trabalho em feiras livres, terminais, no camelódromo da cidade ou em situações específicas, como eventos públicos, por exemplo. 

Com a realidade burocrática, dezenas de trabalhadores são submetidos à irregularidade, realidade que se repete entre as dezenas de pessoas que oferecem diferentes produtos nas ruas do Centro ou em bairros com grande fluxo de moradores.

Segundo a Semadur, vendedores que não têm autorização do órgão podem ter mercadoria apreendida e ter de pagar multa para liberação dos produtos. E é justamente aí onde mora a problemática da situação. 

Embora trabalhem de maneira irregular, vendedores ambulantes existem e o trabalho da categoria é realidade em Campo Grande. Apesar disso, não há política pública concreta que atenda a classe.

Em 2019, Prefeitura tentou levar ambulantes para Orla Ferroviária. (Foto: Arquivo / Midiamax)

Por mais de uma vez, o Jornal Midiamax questionou a Prefeitura de Campo Grande sobre projetos que incluam a categoria, no entanto, a reportagem não teve retorno a nenhuma das solicitações. 

A reportagem também questionou quantos vendedores ambulantes, pelo menos os cadastrados, existem em Campo Grande, mas não houve retorno do poder público.

Ambulantes deixaram o Centro

Com a inauguração da nova 14 de julho, em novembro de 2019, dezenas de ambulantes que trabalhavam no Centro tiveram de deixar a região, provocando embate entre o grupo e a Prefeitura. Na época, batidas da Semadur se tornaram frequentes na área, como maneira de impedir o comércio específico na região.

“Foi um período terrível, impediram a gente de trabalhar e de lutar pelo nosso ganha-pão”, comenta vendedor ouvido pela reportagem, que preferiu não ser identificado. 

Com o “boom” de reclamações, na época o Município trabalhou com tentativa frustrada de que ambulantes ocupassem trecho da Orla Ferroviária, na calçada ao lado da Morada dos Baís. A ideia era de que o lugar fosse um novo camelódromo com 39 barracas.  

Apesar da alternativa, a baixa clientela e alta movimentação de usuários de droga fez com que o projeto nunca saísse do papel. 

Dessa forma, na região central, a Praça Ary Coelho, que desde 1909 é um ponto de encontro para o campo-grandense, se mantém como um dos últimos redutos desse tipo de trabalho em Campo Grande.

Esta reportagem faz parte da nova série do Jornal Midiamax sobre o Dia do Trabalhador, você confere mais conteúdos especiais multimídia sobre o assunto nos próximos dias.

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