Boteco ‘raiz’ no Centro há 70 anos, Bar do Zé vibrou com Campo Grande na criação de MS
Décadas atrás era comum que a população fizesse comemorações na região central, tendo o Bar do Zé como um dos pontos favoritos para celebrações
Thalya Godoy –
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O aniversário de criação de Mato Grosso do Sul é comemorado nesta quarta-feira (11), com a assinatura da Lei Complementar n° 31 de 1977, pelo então presidente Ernesto Geisel. Contudo, outra data especial para a história do Estado foi 1º de janeiro de 1979, com a efetivação e implantação do governo sul-mato-grossense.
Neste dia de 1979, Campo Grande vibrou. A festa de ano-novo se estendeu para celebrar a separação de Mato Grosso do Sul e do vizinho Mato Grosso.
O barulho na Rua 14 de Julho se estendia da região da Avenida Mato Grosso até a Rua Barão do Rio Branco, relembra o servidor público aposentado Joany da Silva, de 58 anos. Na época com 13 anos, ele e o irmão eram engraxates e moravam na Rua Antônio Maria Coelho.
A dupla tinha como pontos de trabalho a Antiga Rodoviária, o Hotel Gaspar e o Bar do Zé. Contudo, naquele dia foi impossível transitar na Rua Barão do Rio Branco.
“Aqui no centro estava uma comoção, eram fogos para todos os lados e luzes. Era uma coisa incrível. Eu lembro exatamente desse dia porque estava andando por aqui […], mas no Bar do Zé não tinha como entrar, era muita gente”, ele se recorda.
Outro que estava no Bar do Zé naquele dia era Márcio Okama, de 57 anos. Ele é da terceira geração de administração do estabelecimento que abriu as portas em 1953 e resiste mesmo com o esvaziamento do centro, menos cadeiras na calçada após mudanças na legislação e a “gourmetização” de bares pela cidade.
Ainda resistem nas paredes os ladrilhos brancos, os pôsteres de propagandas de cerveja, uma cruz e um relógio de madeira. No balcão, há o querido copo americano, e no calçadão, os engraxates e as mesas e cadeiras vermelhas de plástico, reforçando a assinatura do “boteco raiz”.
O estabelecimento abriu as portas há 70 anos pelo senhor José Yassuke Okama, que faleceu em 2016.
Márcio Okama era adolescente em 1979 e se relembra da data. Ele não aparece nas fotos tiradas no Bar do Zé há 44 anos, mas indica os três irmãos e o pai que sorriem para a câmera ao lado de pessoas que seguram a faixa escrita “Mato Grosso do Sul”. A palavra “Sul” destacada para frisar o novo Estado que surgia com a implantação do governo.
Ele relembra que, na época, como a cidade era pequena, todos os eventos se concentravam no centro, o que levava as pessoas a se reunirem no Bar do Zé.
“Antigamente, as manifestações políticas eram tudo na área central. Se tivesse algum acontecimento político ou novidade, vinham tudo para o centro. A comemoração da criação eu acho que o pessoal andou aqui na Rua 14 de Julho, teve uma passeata. Quando acabou a passeata, eles retornaram para o bar”, se recorda.
O arquiteto e historiador João Santos, criador do projeto Campão a Pé, conta que era comum que as pessoas se reunissem na região central.
“Não tinha opção. As pessoas conviviam na região central e elas consumiam da região central. E estando o Bar do Zé desde 53, no mesmo ponto, é quase que natural as pessoas saírem das suas casas para comemorar a criação do Estado, para comemorar a vitória do Lula, para comemorar um evento político mais nesse sentido”, ele relembra.
Local político
Não foi somente o cenário das ruas que mudou ao longo das décadas. Alguns perfis de clientes ‘sumiram’, como os políticos que “batiam ponto” no local todo sábado.
“Eu e o meu irmão engraxamos o sapato aqui, vendíamos pipoca no Morenão. A gente via Levy Dias, Pedro Pedrossian, Dr. Wilson Barbosa Martins, o irmão dele Plínio Barbosa Martins, Nelly Bacha. A gente via pessoas de alto gabarito fazendo suas campanhas aqui, via artistas. Aqui, às vezes, você cruzava com um Rolandro Boldrin dando uma canjinha”, relembra Joany da Silva.
Um dos pontos que contribuía para que o Bar do Zé fosse “escritório” de políticos, como adjetiva Joany, era que o primeiro prédio da Alems (Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul) ficava a duas quadras de distância, nas dependências da Missão Salesiana, na rua Barão do Rio Branco, nº 1843.
O historiador João Santos diz que essa clientela de políticos é algo marcante na história do bar. “Não era muito difícil de encontrar deputados, vereadores, prefeitos, governadores, senadores, enfim, agentes políticos frequentando o bar do Zé. Até hoje, se você for num sábado à tarde, por exemplo, você encontra umas figuras da política de Mato Grosso do Sul nesse bar”, diz.
Márcio Okama relembra que o primeiro governador de Mato Grosso do Sul, Harry Amorim Costa, também já compareceu no Bar do Zé. O empresário diz que era comum que eventos políticos chegassem na Barão do Rio Branco e que o fluxo de clientes aumentasse em época de eleições, mas devido às mudanças na Lei Eleitoral, isso foi esmorecendo ao longo do tempo.
“A cidade cresceu muito e muitos comércios e outras atividades foram se espalhando pela cidade, como manifestações políticas e culturais que tinham aqui. Hoje diminuiu porque têm muitas regras. Antes tinham partidos que acabavam se encontrando na rua e acabavam saindo até conflitos. Acho que hoje isso não acontece porque a Justiça Eleitoral determina onde e qual lugar você vai, qual o horário, já tem muitas regras que antigamente não eram tão definidas”, pontua.
O calçadão do Bar do Zé também foi local em que os campo-grandenses assistiram ao impeachment do então presidente Fernando Collor, em 1992.
Memorial resiste à transformação do centro assim como Bar do Zé
A Rua Barão do Rio Branco é a única do perímetro central histórico que tem o mesmo nome desde a projeção, em 1909, segundo aponta o livro ‘Pelas Ruas de Campo Grande’, do escritor Paulo Coelho Machado.
A via era a única do centro com um calçadão projetado para valorizar o passeio em detrimento do trânsito de veículos, antes da revitalização da Rua 14 de Julho. O projeto foi assinado pelo famoso arquiteto curitibano Jaime Lerner, em 1979.
A geografia da cidade contribuiu para que o Bar do Zé fosse ponto de concentrações populares e políticas. Outro ponto marcante na história do boteco foi o protesto que levou à morte do ativista ambiental Francisco Anselmo Gomes, conhecido carinhosamente como Francelmo.
Em 12 de novembro de 2005, por volta de 10 horas da manhã daquele sábado, em frente ao Bar do Zé, Francelmo molhou um colchão com gasolina, se deitou e deixou que as chamas consumissem o próprio corpo em protesto contra a instalação de usinas de álcool e açúcar no Pantanal.
Márcio Okama já trabalhava no bar na época e relembra que ninguém percebeu, inicialmente, que havia uma pessoa no colchão. Na opinião dele, esse foi o episódio mais marcante nos 70 anos de história do bar.
“Foi muito chocante porque ninguém percebeu que tinha uma pessoa lá, na hora que percebeu não tinha muito o que fazer. O fogo chegou a subir perto dos fios de alta tensão. O pessoal encostava o carro com o extintor de incêndio para tentar apagar, mas era muito combustível. A ambulância veio para salvar, levaram ele para o hospital, mas não dava mais tempo”, ele relembra.
Na época, era comum que esse grupo de ativistas ambientais ficassem na esquina da Barão do Rio Branco com a Rua 14 de Julho, aos sábados, convocando pessoas, coletando assinaturas e chamando a atenção de órgãos responsáveis sobre o assunto.
“Acho que ele [Francelmo] estava vendo que não estava dando resultado e resolveu fazer algo que desse maior impacto”, opina.
A morte do ativista pressionou os deputados e, em 30 de novembro, a Alems reprovou o projeto de instalação das usinas sucroalcooleiras no Pantanal.
O poeta Manoel de Barros escreveu uma homenagem a Francisco Anselmo, considerando o ambientalista como o último herói brasileiro.
“O que o nosso querido Francelmo fez, a mim e a Stella e a todos nós chocou tanto, que ficamos um pouco aparvalhados com a notícia.
Foi uma imolação pela Pátria que na terra do mensalão destoa.
Mas até pode corrigir, o que o nosso Francelmo fez é mais do que um protesto.
Para mim tem o componente maior do heroísmo.
Francelmo o último herói do Brasil.
Meus sentimentos Iracema”.
Seu velho amigo,
Manoel de Barros.
No calçadão da Rua Barão do Rio Branco foi instalado um memorial em homenagem à Francelmo, em 5 de junho de 2006, Dia do Meio Ambiente. Quatro meses depois, em 12 de novembro foi instaurado o Dia do Pantanal, pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), instituição fundada por ele mesmo.
Assim como o Bar do Zé, o monumento resiste às transformações do centro. Contudo,17 anos depois, o memorial criado pelo arquiteto Gil Carlos de Camillo está abandonado e o vidro embaçado impede de observar a maquete do Pantanal que teria dentro da caixa de pedra.
“Cada dia que passa vai acabando no esquecimento. Só quem sabe ou estava no dia e presenciou vai acabar lembrando. Tinha algo ali, só que passou o tempo e o pessoal não faz a manutenção. O pessoal pergunta e quem sabe explica o que aconteceu”, pontua o empresário.
O Midiamax entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Campo Grande para perguntar sobre a restauração do monumento e não obteve resposta. O espaço continua aberto para futuras manifestações.
Bar do Zé é pura nostalgia de quem frequenta o local há décadas
O policial legislativo aposentado Valde Antônio da Paixão, de 82 anos, é frequentador do Bar do Zé desde 1969. Ele se lembra do dia de festa e da passeata em janeiro de 1979. Ele estava no bar neste dia, mas também em vários outros depois dessa data. Aproveita a aposentadoria sentado em uma das cadeiras vermelhas do boteco e observa a vida fluir pelo centro da cidade.
“Aqui era muito movimento, hoje acabou o pessoal. Muitos amigos meus morreram. Aqui era cheio e até com corretor de imóveis. A minha casa foi comprada por aqui. Se eu faltar uma semana, o Márcio fica preocupado. Todo mundo sabe que eu fico aqui direto”, garante Valde Antônio da Paixão.
O historiador João Santos reforça em como o bar também era ponto de negócios. Muitos pecuaristas se reuniam ali décadas atrás para negociar rebanhos.
“Campo Grande sempre foi um entreposto comercial de gado, mas a galera vinha e sentava lá no Bar do Zé para fazer a compra e venda. Então, acho que isso também é interessante nesse espaço, enquanto Campo Grande, enquanto um entreposto, mas o bar do Zé também, enquanto um entreposto. Um lugar mais neutro para essas atividades comerciais. Na região central, todo mundo via, então eu acho que ele foi elencado como esse ponto de ver e ser visto na hora de vender o gado para não ter problemas”, ele explica.
Quem frequenta o bar há muitos anos sente o encontro do presente e passado a partir das memórias. Fernando César, de 60 anos, relembra com saudade o final dos anos 1980 quando todo sábado ia para o Bar do Zé com o pessoal do supermercado em que era fiscal de caixa. Juntavam três mesas e aproveitavam o pagode até às 16h.
“Muitas vezes a nossa vida é construída de saudade, pô [sic]. Saudade daqui, da Afonso Pena, tinha o Som de Cristal à noite. Fechou tudo”, ele lamenta.
Ele garante que tudo no bar era e continua bom: desde os salgados até a cervejinha gelada. “É uma coisa que a gente vem para relembrar. 40 anos não são 40 dias. Minha vida passou, hoje tenho seis filhos e 12 netos, e eu tô aqui curtindo”, diz ele sentado em uma mesa no cantinho de dentro do bar.
Outro ponto de saudade sobre o Bar do Zé são as atividades culturais que aconteciam com frequência na região. Okama relembra das apresentações de música e teatro de todo sábado quando a secretaria de cultura ficava na mesma rua. “Todo sábado era bem ativo o centro, mas eles se mudaram”, lamenta.
Porém, uma manifestação cultural que volta todo ano ao bar é o bloco de Carnaval “As Depravadas”, formado pela imprensa de Mato Grosso do Sul. O grupo nasceu de uma conversa na mesa do bar na década de 1990 e, neste ano, completou 30 anos.
Bar do Zé é resistência
70 anos no mesmo ponto. Quais outros estabelecimentos vêm à cabeça que ostentam esse título em Campo Grande? O Bar do Zé é um dos botecos mais antigos da região central e um dos adjetivos para esse feito é a resistência, na forma política, cultural e econômica.
Enquanto várias lojas fecharam no centro devido à pandemia, o local atravessou o turbilhão econômico e permanece de portas abertas. Conforme relembra o historiador João Santos, o boteco é um dos últimos locais em Campo Grande que ainda conta com engraxates.
“Ele está no coração do Centro de Campo Grande. Muita gente ainda passa pelo Bar Do Zé, possivelmente para tomar uma água, um café, um lanche, um refrigerante, uma cerveja. Não dá para falar do Bar do Zé, por exemplo, sem os engraxates. Onde que tem engraxate aqui em Campo Grande hoje? Você não encontra engraxate em toda esquina. Você não tem engraxate como uma prática comum na nossa cidade. E eles estão onde? Do lado do Bar Do Zé. Então, tudo isso vai agregando possibilidades desse bar resistir há 70 anos. Eu acho que ele não existe há 70 anos, ele resiste há 70 anos”, pontua o historiador.
Além de se reafirmar como “raiz”, o bar conta com uma clientela fiel. Muitos são frequentadores há décadas do boteco e não deixam de comparecer uma vez ou outra. “Há um público muito fiel do Bar do Zé, de moradores ali da região central, principalmente de idosos”, acrescenta.
Márcio Okama conta que eles tentam manter a tradição, como os engraxates, mas relata que é difícil manter as portas abertas com o esvaziamento do centro.
“Nós estamos tentando manter a tradição, só que com o passar do tempo fica complicado. Houve muitas mudanças aqui no centro e acabaram restringindo o número de vagas para o estacionamento e nós estamos trabalhando para reverter isso, para ver se traz de volta os clientes. Igual o que era não vai voltar, mas ver se melhora o fluxo de pessoas”, afirma Márcio Okama.
O Bar do Zé é um dos estabelecimentos sobreviventes na região central de Campo Grande, que vê seus tempos áureos de lotação esvaziando. São menos pessoas circulando no comércio, mas o boteco é “raiz” forte no calçadão da Rua Barão do Rio Branco.
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