Levou alguns minutos para que a sensação de incômodo por ter a refeição interrompida se transformasse em curiosidade, quando o homem se aproximou de nossa mesa em um restaurante da Bom Pastor, em . Naquela sexta-feira, eu só queria comer meu espetinho, voltar logo para casa e descansar, mas o estranho se ofereceu para desenhar meu filho em troca de um jantar.

Os desenhos feitos pelo homem que nos abordou no restaurante. (Foto: Tatiana Marin)
Os desenhos feitos pelo homem que nos abordou no restaurante. (Foto: Tatiana Marin)

Foi quando ele começou a contar uma história, enquanto riscava os primeiros traços do rosto do meu menino de 10 anos, que percebi se tratar de alguém incomum. Comecei a perguntar sobre ele e então ele quis me desenhar também. Enquanto meu filho era um super herói, eu virei uma deusa grega.

Depois de dizer que eu gostaria de escrever sobre ele, me deu seu telefone e seu nome e então veio outra surpresa. Márcio Correa da Costa Júnior. E eu perguntei: “Como o Fernando”, soando assim tão íntima, me referindo à avenida que ladeia o córrego Prosa. E ele confirmou: “Sou sobrinho-neto dele”.

Caos

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comidaAlgumas semanas depois estávamos em sua residência e ele quis explicar o estado do lugar. “Eu vivo num o caos. Isto é ser artista. Mas quero mostrar os meus trabalhos”. Márcio mora em uma pequena casa que não comporta seu grande número de obras, seus materiais de trabalho e muito menos sua pessoa.

“Desenho desde os 4 anos de idade e posso provar isso, porque minha mãe guardou”, desafiou ele. “Devo ter mais de 2 mil trabalhos guardados aqui”.

Escorregadio, Márcio insistia em mostrar seus trabalhos, enquanto o interesse maior repousava em sua pessoa. Entre uma obra e outra ele contou que é engenheiro por formação, mas artista de nascimento, como ele próprio descreve. Formou-se em 1986 pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e em seguida trabalhou por 10 anos em São Paulo, onde, segundo ele, fez fama e dinheiro.

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comida
Márcio mostra o panfleto de divulgação de um dos edifícios que projetou em São Paulo. (Foto: Henrique Kawaminami)

Ele ajeita o cabelo e diz que sua boa aparência quando jovem e falar inglês lhe rendeu uma boa posição em uma empresa inglesa, onde trabalhou por 5 na construção civil. “Trabalhei muitos anos como engenheiro, porém a arte me ajudou muito. Chegava na casa de uma madame, pegava um papel, fazia um esboço, mostrava e ganhava qualquer concorrência”, conta com orgulho. “Então, o ‘artista', durante muito tempo me favoreceu”, conclui, citando a casa da embaixatriz Lúcia Flecha de Lima em São Paulo, como exemplo.

Mas ele quis deixar o sucesso e a fortuna para se dedicar à arte, mesmo que a engenharia trouxesse mais conforto. “Já fui engenheiro o suficiente e não estou na arte por dinheiro, estou por amor”, diz. Entretanto acreditava que teria um caminho semelhante em sua empreitada artística: “pensei que eu ia conseguir fazer fama e sucesso como fiz na engenharia; com cinco anos estava no auge. Sabia que ia ser difícil no começo, mas eu não sabia que ia ser tão difícil e que o começo ia ser tão comprido”, brinca, “mas não me arrependo”, completa.

Hiato de 15 anos

Após os 10 anos de trabalho em São Paulo e um período em que morou na fazenda da família em Mato Grosso do Sul, Márcio exerceu a engenharia por algum tempo em um emprego público. “Mas o artista não aguentava ficar preso e cumprir hora em uma repartição pública”.

Por volta de 1998 ou 1999, Márcio organizou duas vernissages em que vendeu quase todos os quadros. “Minha irmã me ajudou, ela estava recebendo e veio com um leque de cheques. Aquilo subiu na cabeça. E eu falei: ‘quer saber? Vou encarar essa vida de artista'”, relata.

Márcio Correa da Costa Junior (Foto: Henrique Kawaminami)
Márcio Correa da Costa Junior (Foto: Henrique Kawaminami)

Entretanto, o artista não expõe há 15 anos. As palavras lhe fogem ao tentar explicar o isolamento, mas o fato de trocar o dia pela noite contribui. “Prefiro trabalhar à noite e durmo de dia. Não tenho contato com ninguém. Se você olhar meu celular, falo somente com a minha irmã. Não tenho redes sociais. Estou completamente fora de circulação. Sou um tiranossauro perdido. Mas gostaria de mudar isso, voltar a ser quem eu era há um tempo atrás”.

Durante nossa conversa, Márcio revelou que seus momentos criativos acontecem nas madrugadas. “Eu acabo dormindo de dia e acordo no final da tarde”, momento em que ele sai de casa com uma pasta contendo alguns trabalhos de portfólio, lápis e papel, oferecendo desenhos e caricaturas em troca de jantar e, claro, dinheiro. A fome que o levou ao nosso encontro naquela sexta-feira a noite.

“Sou um artista de Campo Grande, que faz 15 anos que não expõe. Eu fico na rua batalhando por um prato de comida, ou dez reais pra comprar um pano, cinco reais pra comprar tinta. Passo necessidade. Tenho uma televisão velha. Minha roupa é toda doação de amigos e parentes. Sou fo**** e mal pago como toda a classe artística brasileira”.

Um sobrenome importante não lhe garantiu status, segurança ou estabilidade econômica. Segundo Márcio, seu pai nunca aprovou sua escolha e quando morreu, distribuiu as posses entre os sobrinhos.

Trabalhos

Mesmo sem perspectivas, Márcio continua produzindo e acredita ter mais de 2 mil trabalhos guardados em casa. Além de grafite, giz pastel, tinta e telas, ele usa diversos materiais para criar, como tecidos, painéis de vidro, papéis de bombom e até parabrisas de carros. “Utilizo todo tipo de material, faço reciclagem”, define.

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comida
Os cômodos são abarrotados de trabalhos, materiais e ferramentas do artista. (Foto: Henrique Kawaminami)

Desde a entrada de sua casa, a sala, a cozinha e outros cômodos, são tomados de peças, materiais, armários com telas e manuscritos. Os momentos em que ele mais fica a vontade acontecem quando está falando de suas obras, explicando a história em torno delas e como insere poesia em seus desenhos. “Eu pinto e conto a história”, traduz, o que me fez lembrar das histórias que ele contou no restaurante, em que meu filho protagonizou um super-herói e eu fui a deusa grega, filha de Zeus.

Mas as obras que produz por inspiração, contam sua própria história. “Conto uma história dos personagens da minha vida, são dois personagens. Invento, pego parte da minha vida e conto de uma forma lúdica. Invento uma história. Eu ponho um glamour e passo para uma coisa, tipo surreal, ficção científica, ou literatura romântica. Cada parte, vivo e faço uma história”, afirma.

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comida
Ficções mescladas com suas vivências servem diariamente de inspiração para obras. (Foto: Henrique Kawaminami)

Márcio mostrou diversos trabalhos. Contou de séries que criou, como a bem humorada série de dinheiros – em que inventou notas como R$ 1,99 e o salário-mínimo. Ou a coleção que une culturas, em que mesclou desenhos da tapeçaria persa com ícones indígenas sul-mato-grossenses e criou, por exemplo, um kashmir terena. Vieram também as séries de ‘nossas-senhoras' e ‘tereré chique'. “Fiz umas 20 séries, pelo menos”.

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comida
No parabrisas de um carro chique, o São Jorge Pantaneiro laça os porcos monteses. (Foto: Henrique Kawaminami)

O Mato Grosso do Sul está muito presente em seus trabalhos. No parabrisa de um carro chique que “encontrou jogado por aí” ele materializou um São Jorge Pantaneiro. “O São Jorge Pantaneiro não tem lança, ele laça! E somente porco monteiro. Os nelores estão tranquilos, os jacarés também”, descreve a cena, que ainda está incompleta. “Se eu quero falar da minha terra, tenho que dar referências regionais”, pontua.

 

Leia a poesia que conta a história da princesa terena Iapó, uma das obras de Márcio C. Costa Jr, como ele assina.

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comida
No verso da pintura da princesa terena Iapã, há a poesia que conta sua história. (Foto: Henrique Kawaminami)

eu andava em uma terra tão distante
pra lá do fim do cafundó
tinha um falcão
uma família desceu lá do coxipó

e cantando a sua história,
a princesa iapó,
que defendera a natureza
que herdou da sua avó

e ao ver um ombro amigo,
começou um carijó
revoava mais a frente
e de repente escuto: ó

Com sobrenome famoso, engenheiro que virou artista desenha por um prato de comida
As pinturas trazem referências regionais. (Foto: Henrique Kawaminami)

minha femea virou alvo
agora eu corro e corro só
pra que garras se eu não a salvo
e de mim tristeza e dó

de esquentar já vou pro calvo
e na garganta fica o nó
a quem darei meu fértil caldo
após o canto do socó

a princesa, ouvindo tal lamento
ver que o carijó, queria de ovos, o rebento
deu-lhe chance de 100%
concedeu a criação lhe arranjando casamentos
e, como passe de magia, saiu uma fêmea do relento

Márcio Correa da Costa
(Foto: Henrique Kawaminami)

esta bela femea arisca
porém charmosa
deve ser bem tratada
tocá-la como se fosse pétalas de rosa
de tardinha, leva-la pra namorar
na beira do córrego prosa

nada de palavras duras
e de atitudes tinhosas
quero muitos filhos
pois tu e ela tem plumagem vistosa


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