Remédios de uso pediátrico são testados apenas em adultos, afirma especialista
Crianças de todas as idades, até mesmo bebês, recém-nascidos e prematuros, não têm à disposição medicamentos criados especialmente contra as doenças que mais as afetam. Para tratá-las, os pediatras têm de recorrer a formulações desenvolvidas para os adultos e que foram testadas apenas entre pessoas dessa faixa etária, com características orgânicas e comportamentais completamente…
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Crianças de todas as idades, até mesmo bebês, recém-nascidos e prematuros, não têm à disposição medicamentos criados especialmente contra as doenças que mais as afetam. Para tratá-las, os pediatras têm de recorrer a formulações desenvolvidas para os adultos e que foram testadas apenas entre pessoas dessa faixa etária, com características orgânicas e comportamentais completamente diferentes da infantil.
De acordo com a integrante do Comitê Assessor de Experts em Avaliação de Medicamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e pesquisadora do Departamento de Farmácia da Universidade Federal do Ceará, Helena Lutescia Luna Coelho, o problema é grave. “Como não foram testadas em crianças, é impossível saber quais são os seus efeitos benéficos e maléficos. A carência de informações científicas avaliadas e comprovadas leva a erros e efeitos adversos de gravidade maior ou menor”, alertou.
Sem formulações específicas, com o princípio ativo em dosagens inapropriadas e em modo de apresentação do produto inadequado, o jeito é adaptar às necessidades infantis o que se tem disponível. Porém, ao contrário do que parece, isso não funciona. Tentar dividir um comprimido que não foi feito para ser fragmentado pode resultar em pedaços de tamanhos diferentes, com consequente diferença na dosagem. Então a criança recebe uma parte do remédio com uma dose menor e, mais tarde, outra em dose maior.
“Dosagem é um aspecto muito sério”, ressaltou. “Em caso de infecção, uma subdose de antibiótico não debela as bactérias e favorece a sobrevivência das mais fortes, levando à resistência bacteriana”, completou. Outro exemplo muito comum para disfarçar o sabor desagradável e enganar a criança é a misturar o medicamentos aos alimentos e sucos. Porém, a sua composição química pode ser alterada pela acidez das frutas ou pela temperatura dos alimentos, podendo inativar ou até potencializar seus efeitos, tornando-os tóxicos.
Sem contar casos de utilização do mesmo remédio nas mesmas doses para crianças que, embora com o mesmo peso, tenham taxas diferentes de gordura corporal, o que interfere na ação, entre tantos outros equívocos praticados em casa ou mesmo nas enfermarias de hospitais. Segundo Helena, a falta de doses adequadas é um dos fatores que explicam o fato de os erros de medicação serem mais frequentes em crianças do que em adultos. Em 2007, ela participou de uma pesquisa em um hospital infantil de referência.
O objetivo era calcular a dose do medicamento que a criança recebia efetivamente. Os resultados mostraram que, na prática, só 40% delas estavam recebendo as doses prescritas pelos médicos. Entre os motivos estava a falta de equipamentos precisos, específicos para pesar e triturar na farmácia hospitalar. Geralmente, a divisão em doses menores era feita na própria enfermaria, com facas e tesouras usadas em inúmeras outras finalidades, contaminadas. De acordo com a pesquisadora, durante muito tempo receios e dúvidas fortaleceram a crença de que testar medicamentos em crianças é antiético.
“O ético é fazer tudo com segurança. E dar remédio seguro não é o mais ético a fazer?”, questionou, destacando que não existe lei que proíba tais testes e que todos eles, antes de ser realizados, são submetidos à análise e aprovação de comitês de ética de hospitais e universidades. O dilema ético acaba favorecendo os laboratórios, que preferem investir em testes para novos medicamentos de uso adulto, a faixa do mercado que tem mais doenças crônicas e que necessita de tratamento medicamentoso por longo tempo ou mesmo de maneira contínua.
“Como a maioria das crianças tem problemas agudos, que vão e vem, não vale muito a pena para os fabricantes investir no segmento infantil”, afirmou. É por isso que pediatras, pesquisadores e gestores em saúde dos Estados Unidos e de vários países europeus começaram a exigir das autoridades medidas para aumentar a segurança e a eficácia dos medicamentos de uso pediátrico.
Nos últimos 20 anos, com as novas regras, as indústrias farmacêuticas passaram a ter de realizar testes para avaliar os efeitos da medicação inclusive com bebês recém-nascidos e prematuros. Afinal, a infância compreende um grupo formado de subgrupos etários com características distintas entre si, entre elas a maturação dos diversos órgãos, sistemas e capacidades funcionais ate que a fase adulta seja atingida.
Toda essa complexidade, porém, encarece as pesquisas. Além de estabelecer normas, as agências de saúde criaram incentivos para o desenvolvimento de medicamentos infantis específicos, testados em crianças. Foi estimulada a criação de diversas redes internacionais de pesquisa, como a Global Pediatric Research, com a qual Helena Lutescia colabora.
Segundo ela, há na Europa uma revolução em termos de remédios infantis, inclusive com oferta de versões disponíveis na forma de minicomprimidos, de pirulitos, balas, com partículas que os permitem dissolver facilmente na boca sem deixar o menor resíduo do sabor desagradável.
“Do mesmo modo, o governo brasileiro, por meio da Anvisa, deve criar novas exigências para registro de medicamentos, nas quais sejam obrigatórios testes em crianças, deve estimular, financiar, organizar grupos, estabelecer prioridades. O país conta com todos os recursos, inclusive tecnológicos, para fabricar medicamentos em concentrações adequadas para crianças”, alertou Helena.
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