Do extrativismo à agroindústria: mulheres têm ganhado voz e mudado a realidade no campo
Em Mato Grosso do Sul, 134 mil mulheres vivem na área rural, cada vez mais ganhando protagonismo e inovando na produção de itens com valor agregado e deliciosos
Priscilla Peres –
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Há muito as mulheres deixaram de ser coadjuvantes no campo, passando a ser protagonistas do próprio sonho, da própria história e também do sustento da família. Elas se desafiam, inovam, conquistam e incentivam outras mulheres e famílias de Mato Grosso do Sul.
Mulheres como Sônia Regina de Barros Nazaré, que aos 45 anos realizou um grande sonho. Comprou uma terrinha ao lado da chácara onde a mãe morava, na área rural de Terenos. Com coragem e esperança, ela, o marido e o netinho de apenas 2 anos deixaram a cidade para viver no campo.
Mas, o que ela acreditava ser o final feliz, era apenas o começo de uma nova e longa jornada. A amada mãe faleceu logo depois da mudança e ela se viu em hectares de cerrado, sem nenhum dinheiro no bolso, com parcelas a vencer e precisando sobreviver às adversidades da vida.
Então, ela e o marido arregaçaram as mangas e iniciaram o trabalho. Eles tinham apenas três vacas-leiteiras, das quais tiravam a matéria-prima que Sônia aproveitava para fazer doces e queijos. Ao mesmo tempo, começaram a plantar frutas, tubérculos e legumes.
A casa simples foi também construída por eles. “Não tenho vergonha em dizer que aproveitamos madeiras de um galinheiro para começar nossa casa. Tudo feito com muito esforço, mas muito orgulho de produzir na nossa terra e sem nunca ter saído daqui para trabalhar para ninguém”.
Perseverança levou à criação de uma agroindústria
Sônia é daquelas mulheres sonhadoras, mas com muitas outras qualidades. É visionária, corajosa e determinada. É com os pés no chão, a cabeça erguida e os olhos no futuro que em apenas seis anos ela mudou a realidade daquela terra e da própria família.
Hoje, ela é proprietária de uma agroindústria que produz doces de leite, intitulados ‘Pedacinhos do céu’. Nome nada modesto e que reflete a realidade do sabor das maravilhas que ela produz.
Mas não é só isso. Os doces fazem parte de uma propriedade muito farta que produz mamão, abobrinha, limão, pimenta, entre outros alimentos. Em um claro e genuíno agradecimento da terra a todo o cuidado e amor depositado ali.
As conquistas também são muitas. A terra está quitada e escriturada em nome do casal. Um poço artesiano garante a fartura em meio à seca. A cerca bem feitinha mostra que ali tem muito zelo e a casa em construção é mais um sonho que ganha novos tijolos a cada dia.
E ainda tem mais. Com o projeto em mãos, o próximo passo é construir um local próprio para a agroindústria, com espaço ideal para a produção dos doces. “Você pode voltar aqui em três anos. Vai estar tudo lindo. Vou ter até uma piscina”, diz ela enquanto mostra onde vai ficar cada coisa.
Mulher que constrói a própria história
Sônia sempre soube que podia fazer mais por ela e pela família para além dos cuidados domésticos. Tinha certeza da sua capacidade de produção e assim o fez. Ela não é a única. No Mato Grosso do Sul, somente o Senar/MS (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural) assiste 158 agroindústrias lideradas por mulheres, maioria entre os 345 pequenos negócios rurais.
A instituição admite que os números podem ser ainda maiores. “Temos o programa agroindústria, que ajuda pequenos produtores a agregar valor aos seus produtos e ele é muito buscado por mulheres”, conta a técnica de campo do ATeG Agroindústria, Natália Trindade.
O programa Agroindústria do Senar/MS leva assistência técnica para aqueles que querem evoluir da produção de matéria-prima. “A agroindústria é uma forma de agregar valor aos produtos, verticalizar a propriedade e girar a economia”, conta Natália.
Assim como Sônia, a técnica afirma que conhece dezenas de mulheres que têm amor pela terra e vontade de fazer mais. “É muito positivo para as mulheres que passam a ser geradoras de renda, mas também percebo a sobrecarga da mulher, que além da produção sempre se desdobra entre as tarefas domésticas”.
Atuando de perto com o agronegócio de Campo Grande e região há anos, o presidente do Sindicato Rural de Campo Grande, Alessandro Coelho destaca a capacidade das mulheres de enxergar novas possibilidades e as alternativas até então vistas como barreiras, por produtores tradicionais.
“Elas têm um grande diferencial na questão das verticalizações de cadeia do agro e tem se destacado ao ponto de vermos um cenário novo, com mulheres assumindo lideranças e se tornando ícones no desenvolvimento do agro. Num futuro próximo, elas devem revolucionar também a questão das exportações, pois são mais sensíveis a várias questões”, afirma.
Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2015 mostram que, em Mato Grosso do Sul, mais de 134 mil mulheres moram na área rural. Dessas, 71 mil compõem a população economicamente ativa, o que significa que a maioria, 61,74%, possui renda.
Dados do Censo Agropecuário divulgado em 2017 mostram também que dos 71.164 estabelecimentos rurais, 19,16% estão no comando das mulheres. O Senar/MS oferece assistência técnica às propriedades e para chegar até esse atendimento basta procurar o Sindicato Rural do município, ou o telefone (67) 3320-9700 ou ainda no site www.senarms.org.br/contact.
Extrativismo sustentável e as mulheres do campo
A quase 200 quilômetros da propriedade de Sônia, a terra também mostra generosidade e gratidão a uma associação feminina do assentamento Andalucia, na área rural de Nioaque. Há 20 anos, o grupo ganhou forma para promover o extrativismo sustentável de produtos do cerrado e, mais que isso, gerar renda e dar voz às mulheres dali.
O Ceppec (Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado) nasceu para disseminar práticas sustentáveis no extrativismo rural e se consolida como um modelo produtivo dentro da agricultura familiar.
O baru, conhecido como “a castanha do Cerrado”, é a principal matéria-prima dos diversos alimentos produzidos pelo Ceppec. Vai da farinha ao bombom, com processos sérios de produção desenvolvidos ao longo dos anos.
Hoje, as famílias associadas foram além e extraem outros frutos nativos, como a bocaiuva e o jatobá, para transformar em itens com potencial de mercado. Tamanha é a importância para os pequenos produtores envolvidos, o Ceppec também caminha para se tornar uma cooperativa.
À frente do centro de pesquisa atualmente, Rosana Claudina da Costa Sampaio é uma entusiasta e defensora do extrativismo sustentável e das boas práticas de manejo. Desenvolvimento aliado à força e potência das agricultoras.
Atualmente, a associação conta com 90 famílias fazendo extrativismo sustentável em um número volante e que depende das boas práticas aplicadas pelos produtores. “Sabemos que a maior força do extrativismo são as mulheres. É a força feminina em prol da geração de renda e do meio ambiente”, destaca Rosana.
Nas aldeias, produção empodera mulheres e quebra ciclos de violência
Também há espaço para a produção rural entre as mulheres indígenas. Aliás, foi a possibilidade de produzir, vender e ter renda própria que deu a elas o poder de ser donas da própria história.
De aldeia Terena, na região de Aquidauana, surge Daniele Luiz Souza, 36. Uma mulher corajosa, consciente de suas raízes e direitos e que levou para a aldeia uma nova perspectiva de produção rural.
Ela fundou há dois anos a Associação de Mulheres Solidárias Terena, que integra mulheres da aldeia Bananal e outras quatro aldeias. São 42 mulheres cadastradas e oito delas formam um grupo de panificação.
Elas produzem 150 pães por dia para comercialização e entrega a um contrato do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar). A produção rende em torno de um salário mínimo por mês para cada uma delas.
A ideia dela é montar uma padaria comunitária para que mais mulheres possam trabalhar. O processo é valoroso, mas lento, pois esbarra em questões básicas, como a falta de documentação das mulheres, e outros complexos, como as barreiras culturais.
“Foi muito desafiador porque nossa cultura tem muito a questão do machismo, e trazer essas mulheres para participar, colaborar e discutir é uma conquista. Precisamos deixar claro que não é uma divisão, não vai tirar ela da família e sim contribuir com essa família, com renda”, explica Daniele.
Para a associação crescer e virar uma agroindústria, Daniele conta com assistência técnica da Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural), mas principalmente com o apoio de Libertina da Silva Bueno, outra indígena que fundou uma associação de mulheres na Aldeia Imbirussu, também em Aquidauana e com assistência da autarquia pública.
Esta última reúne o grupo para fabricar os panificados em uma antiga estação ferroviária reformada e cedida para a comunidade para este fim. A padaria trabalha conforme a demanda, mas já chegou a produzir 80 quilos de produtos para venda no Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar). “Nós temos forças para lutar, correr atrás”, diz a idealizadora do coletivo.
Ambos os grupos usam como matéria-prima aquilo que a terra lhes oferece. Os pães são enriquecidos com baru, abóbora, jatobá, batata e bocaiuva, que são plantados dentro das próprias aldeias. “Dessa forma, nós também incentivamos o trabalho agrícola em nossa comunidade. Aqui nós não temos empregos, não temos serviços disponíveis. É nessa associação que nós nos unimos para trabalhar”, diz Libertina.
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