Cães, gatos e até corujas dividem ‘morada’ com milhares de sepultados em cemitérios municipais
Seja pela despedida ou pela saudade, ir a um cemitério quase sempre traz à face o semblante pesado da perda de um ente querido. Do velório ao sepultamento, o coração bate em descompasso pela ausência espiritual de quem só está ali em matéria. O momento é emocionalmente fatigante, perturba a alma e arranca lágrimas dos […]
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Seja pela despedida ou pela saudade, ir a um cemitério quase sempre traz à face o semblante pesado da perda de um ente querido. Do velório ao sepultamento, o coração bate em descompasso pela ausência espiritual de quem só está ali em matéria. O momento é emocionalmente fatigante, perturba a alma e arranca lágrimas dos olhos.
Mesmo assim, é calorosa a recepção dos visitantes do Cemitério Santo Amaro. Logo na entrada, cães vira-latas abanam o rabo, numa espécie de boas-vindas. A situação tem sua beleza e poesia, e contrastam no semblante de quem chega ao local pela tristeza decorrente da perda um ente querido.
Os cães, portanto, são como faíscas de alegria. Fazem da recepção e das ruas do local algo como a sala de casa, e todos parecem ser bem-vindos. Além dos milhares de campo-grandenses sepultados no local, os animais também fizeram morada do maior cemitério municipal da Capital. E, ao contrário de centenas de túmulos abandonados pelas famílias, são muito bem cuidados.
Atualmente, cinco cães foram “adotados” por funcionários do cemitério. Recebem apoio de protetores, que disponibilizam da ração à castração. Vão chegando ao local por situações diversas – uns vieram no sepultamento dos tutores e de lá nunca mais saíram. Outros, chegaram errantes e ali ficaram, convencidos pelos afagos e carinho a eles dispensado.
Os donos da casa
Há três anos no Santo Amaro, Lidinalva Costa Bezerra, de 57 anos, cuida dos serviços gerais do cemitério. Por onde vai, é seguida pelos bichos. Pelo WhatsApp, ela conversa com a veterinária que atende os animais e com a protetora que financia os cuidados médicos e alimentação. Ela adianta que todos estão ou serão castrados.
“Sanchez, vem cá tirar foto pra matéria”, grita a zeladora ao cão que há mais tempo vive no local. Segundo ela, Sanchez recebeu esse nome por ser muito apegado a um dos coveiros mais antigos do Santo Amaro, seu Rosalino Sanchez, que hoje já é aposentado. “Ele chegou aqui num sepultamento e não saiu mais. Ele é o mais tímido, não quer muito papo com os visitantes. Mas os outros são bem dados”, conta Lindinalva.
Os outros são Leão, Novato e uma pretinha ainda sem nome, que chegou há poucos dias. Além de recepcionar quem chega, também são o xodó dos coveiros e os acompanham durante os sepultamentos. “É até engraçado, porque às vezes tem gente triste e chega o cachorrinho querendo brincar. Tem quem não goste deles, mas alguns ficam sorrindo”, diz Lindinalva.
Todos recebem alimentação, vacinas, tomam vitaminas e remédios. A veterinária os visita frequentemente. A benfeitora, a farmacêutica-bioquímica Ilsa Maria Roman, 53, também passa quase diariamente pelo cemitério.
“É meu caminho para o trabalho, então eu passo aqui praticamente todo dia. Lembro que tinha uma que até já morreu. Todo dia passava lá e a avistava. Fui comprando ração e depois de um tempo me afeiçoei. Depois chegaram os outros. Pago a veterinária, as castrações e a alimentação. As funcionárias me ajudam, me avisam se está tudo bem”, revela Ilsa. “O ideal, mesmo, seria que eles tivessem um lar. Mas desassistidos eles não são”, garante.
Gatos aristocráticos e corujas medonhas
O Cemitério Santo Antônio, atualmente o mais antigo da Capital, também já foi morada de cães que faziam a guarda noturna do local. Os bichos foram retirados após mudanças de gestão da Prefeitura e, nesse meio tempo, os gatos fizeram do cemitério morada. Dormem majestosos sob a sombra das árvores que sobram no Santo Antônio, mas que faltam nos outros cemitérios.
Bem na entrada, dá para ver os felinos correrem entre as lápides suntuosas do Santo Antônio, onde figuras históricas e aristocráticas da Capital foram sepultadas. Um dos gatos mais afrontosos, por exemplo, descansava em cima da lápide de José Antônio Pereira, o fundador de Campo Grande.
“Tem cuidadoras que vêm aqui e dão alimento, pegam para castrar. Esses aqui são filhotes, nasceram aqui e ficam mais perto da gente. Mas, os mais antigos ficam mais escondidos. Não incomodam, são limpinhos, se aparece um bicho eles caçam”, brinca Francisca Rufino da Costa, 64, que há mais de 30 anos atua informalmente na limpeza e conservação de túmulos, ao lado da filha, Marlene Rufino, de 42. “Tem gente que tenta brincar com eles, fica indo atrás para tirar foto. Tem uma menina que vem sempre aqui fotografar os bichinhos”, diz.
Já no Cemitério São Sebastião, bem mais conhecido como “Cemitério do Cruzeiro”, são as aves – em especial as corujas – que tomam conta do local. Uma mangueira frondosa e com galhos tortos de tanta manga serve para atrair pássaros de todos os tipos. O canto das aves é alto, é música em meio ao silêncio literalmente sepulcral do cemitério.
As corujas, por outro lado, contribuem para que o local fique um pouco mais tétrico. Bem menos amistosas, elas cavam tocas no solo que, muitas vezes, coincidem com túmulos abandonados cobertos apenas por terra. E por lá elas ficam, de tocaia e à espreita de pequenos roedores. Chirriam quando “indesejados” passam. E entram no buraco quando alguém chega perto demais.
“Tem gente que fala de tudo né? Dizem que coruja é mau agouro, que atrai morte. O que eu sei é que mata rato. É só deixar elas em paz que elas nem gritam pra você”, conclui o pedreiro do Cruzeiro, Felisberto Recalde, de 58 anos.
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