A Corregedoria Nacional de Justiça abriu um procedimento disciplinar nesta terça-feira, 3, para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos, de Santa Catarina. O magistrado presidiu audiência de julgamento de um processo de estupro e permitiu que o do réu lançasse ataques e acusações contra a influencer Mariana Ferrer, publicou o Estadão.

Na chamada reclamação disciplinar, a corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também requisitou informações sobre a existência de eventual apuração acerca do mesmo fato junto à corregedoria do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que também instaurou procedimento para apurar possível desvio de conduta ou omissão do juiz Rudson Marcos.

A investigação contra o magistrado foi instaurada no âmbito da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal em 30 de setembro, após pedido formal do Ministério da Mulher, da Família e dos . A Ordem dos Advogados do Brasil Seção Santa Catarina (OAB/SC) também notificou o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho para apurar possíveis desvios éticos ocorridos na audiência que deu origem à decisão.

Com o argumento de que a relação foi consensual, a defesa do empresário André de Camargo Aranha exibiu, na audiência, fotos sensuais feitas pela jovem antes do episódio, e sem qualquer relação com o fato. O advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, chegou a dizer que a menina tem como “ganha pão” a “desgraça dos outros”. Ele ainda disse que não teria uma filha do “nível” da garota. “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”, disse para a menina. Apesar das intimidações, o juiz não repreendeu.

Em determinada altura da audiência, a jovem chegou a implorar ao magistrado por respeito. “Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”.

As imagens da audiência, realizada em julho, foram reveladas pelo site The Intercept Brasil nesta terça-feira, 3. A sentença de Rudson Marcos que absolveu o empresário por falta de provas suficientes para atestar que a relação não foi consensual é de 9 de setembro.

Na sentença foi considerada falta de dolo para o crime de estupro de vulnerável – o ato de conjunção carnal foi reconhecido por perícia. O advogado Gastão e o promotor Thiago Carriço de Oliveira apontaram na audiência que a jovem estava “consciente” durante ato sexual e que, portanto, não poderia ser considerada “vulnerável”.

Mariana Ferrer alega ter sido dopada e estuprada no camarote VIP de um beach club em Jurerê Internacional em dezembro de 2018. O empresário chegou a ser denunciado pelo Ministério Público e teve pedido de prisão temporária aceito pela Justiça, mas que acabou suspenso em segunda instância.

A denúncia contra o empresário foi oferecida em julho de 2019 pelo promotor de Justiça Alexandre Piazza, da 23ª Promotoria de Justiça, mas que deixou o caso após fazer opção voluntária de transferência para outra promotoria, segundo informou o MP.

Thiago Carriço, que assumiu o caso já na fase de instrução do processo, nas alegações finais considerou uma série de jurisprudências apresentadas pela defesa apontando para falta de dolo do acusado. “Nesse caso, em que pese haver registro de possível recusa da vítima, tal se deu após a prática da relação sexual ou libidinosa, quando a vítima manda mensagem para uma amiga informando que ‘não queria esse boy’ ou quando a vítima, já em casa, relata não ter consentimento em praticar qualquer ato sexual”, sustentou o promotor.

“Em que pese seja de sabença que a jurisprudência pátria é dominante no sentido de validar os relatos da vítima, como prova preponderante para embasar a condenação em delitos contra a dignidade sexual, nos quais a prova oral deve receber validade maior, constata-se também que dito testemunho precisa ser corroborado por outros elementos de prova, o que não se constata nos autos em tela, pois a versão da vítima deixa dúvidas que não lograram ser dirimidas”, narra o juiz na decisão.

A falta de dolo aceita pelo juiz Rudson Marcos levantou discussão sobre a absolvição do réu por uma suposta prática de “estupro culposo”. Na decisão, o magistrado considerou interpretação do código penal que considera que “como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico”.

Na audiência, o advogado Gastão também expôs fotos da modelo e faz comentários sobre sua conduta nas redes sociais. Gastão falou das posições da modelo nas fotos: “com dedinho na boca, Mariana”, disse Gastão. Ele também questionou por que ela apagou registros sensuais após usar as próprias redes para denunciar suposta lentidão do processo, o que ocorreu cinco meses após o registro do boletim de na delegacia. Na época, Mariana usou as redes para denunciar que estariam tentando “abafar o caso”.

Investigação

O pedido de investigação no CNJ partiu do conselheiro Henrique Ávila. Em ofício enviado à corregedoria, ele classificou as imagens como “sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual”.

“Causa-nos espécie que a humilhação a que a vítima é submetida pelo advogado do réu ocorre sem que o juiz que preside o ato tome qualquer providência para cessar as investidas contra a depoente. O magistrado, ao não intervir, aquiesce com a violência cometida contra quem já teria sofrido repugnante abuso sexual. A vítima, ao clamar pela intervenção do magistrado, afirma, com razão, que o tratamento a ela oferecido não é digno nem aos acusados de crimes hediondos”, pontuou.

Ávila quer que sejam averiguadas eventuais responsabilidades do magistrado na condução da audiência. “O que eu assisti é chocante. Precisamos avaliar aprofundadamente para apurar responsabilidades”, disse Ávila ao Estadão. “As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual”, escreveu o conselheiro no pedido.

O processo é de 2018. O estupro, conforme relato de Mariana Ferrer, ocorreu em 15 de dezembro daquele ano em uma badalada festa em Jurerê Internacional, Florianópolis. O empresário André de Camargo Aranha era o acusado. Na primeira instância, foi inocentado.

O advogado de Ferrer negou ao jornal que a absolvição tenha sido por “estupro culposo”, como informou o site The Intercept. “Essa figura jurídica não existe no Brasil e seria absurda. Nenhum juiz cometeria uma situação dessas, assim como não cometeu”. O Estadão apurou que o juiz entendeu que haveria dúvida quanto a vulnerabilidade da vítima. Por isso, não haveria elementos suficientes para condenar o acusado.

Entre as punições que podem ser aplicadas pelo CNJ a magistrados estão advertência, censura, remoção compulsória, aposentadoria compulsória e demissão.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua vez, informou ainda que a investigação na Corregedoria do órgão tem caráter procedimental, do que judicial, já que o ainda cabe recurso ao Tribunal. O TJ informou ainda que a apuração dos fatos envolvendo a conduta do advogado Cláudio Gastão Filho não faz parte da atribuição da Corregedoria da Justiça, se restringe aos atos praticados pelos membros do Poder Judiciário.

A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Mariana Ferrer. O advogado Cláudio Gastão disse que não poderia falar muito em respeito ao sigilo do processo, mas que gostaria de esclarecer alguns pontos importantes após a repercussão do caso. “O magistrado considerou André de Camargo Aranha inocente da acusação de estupro, acatando a alegação final do Ministério Público e a tese da defesa para que fosse julgada improcedente a denúncia contra André Aranha. Ou seja, os fatos foram completamente esclarecidos após investigação policial e nos autos processuais, os quais constataram que houve uma relação consensual entre duas pessoas e foi atestado que ambos estavam com a sua capacidade cognitiva em perfeito estado, conforme atestam os laudos e confirmam os peritos. É importante ressaltar que o termo utilizado ‘estupro culposo’ não é uma terminologia jurídica existente, e em nenhum momento foi utilizado pelo magistrado. O caso foi tratado com a devida legitimidade pelo Ministério Público e prestamos esse esclarecimento visando ao combate à desinformação que informações mal interpretadas, descontextualizadas e equivocadas podem gerar”, comentou.

O Ministério Público de Santa Catarina reafirmou que réu foi absolvido por falta de provas por estupro de vulnerável. “No caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado. A prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime. Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de “estupro culposo”, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.”

Em nota, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) manifestou-se em “veemente repúdio ao termo estupro culposo” e afirmou que “acompanhará recurso já interposto pela denunciante em segundo grau, confiando nas instâncias superiores”. “O MMFDH informa que acompanha o caso desde 2019 e que, quando a sentença em primeira instância foi proferida, em setembro, a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SNPM) manifestou-se questionando a decisão, com envio de ofícios ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao Conselho Nacional do Ministério Público, à Corregedora-Geral de Justiça, à Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e ao Corregedor-Geral do Ministério Público de Santa Catarina.”

Ministro repudiam episódio e cobram apuração

O ministro do Supremo Tribunal Federal afirmou que as cenas “são estarrecedoras”. “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, disse o magistrado nas redes sociais.

O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas também repudiou a maneira como a audiência de julgamento foi conduzida. “Poucas vezes vi algo tão ultrajante. Especialistas em Direito Penal certamente falarão com propriedade sobre a tese do estupro culposo, que confesso desconhecer. O vídeo é aviltante e dá impressão de que não havia juiz presidindo a audiência ou Promotor fiscalizando a lei. Havia?”, escreveu ele.

Nota do Ministério Público de Santa Catarina

A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado.

Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime.

Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de “estupro culposo”, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.

O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.

Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do Advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.

O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente. (Informações do Jornal o Estado de São Paulo)