Em março, 111 médicos receberam mais que o prefeito da cidade

A negociação salarial dos médicos, aliada ao problema crônico de atendimento nas unidades de saúde, aumenta especulações sobre a verdadeira ‘caixa-preta’ dos gastos municipais com os profissionais. Segundo a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), o salário base da categoria é de R$ 2.516,72.

Na prática, no entanto, gratificações e plantões, sempre pagos em fórmulas complicadas e difíceis de verificar, elevam os ganhos médios mensais dos médicos que atuam na Prefeitura de Campo Grande. Em março, por exemplo, a média paga a cada um dos 927 médicos listados no Portal da Transparência ficou em pouco mais de R$ 11,5 mil.

Só na última folha salarial da Sesau, 9 médicos ganharam mais de R$ 39.200,00 e 111 receberam mais que o salário do prefeito Marquinhos Trad (PSD). Em um dos casos, médico que mantém dois vínculos com a Sesau levou dos cofres públicos municipais R$ 51.085,39 em março.

Acima do teto constitucional

Esses ganhos mensais extrapolam o salário de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), que deveria ser o teto salarial para todos os servidores públicos no Brasil. Além disso, a soma de rendimentos dos 10 mais bem pagos em março atinge R$ 419.983,09. Ou seja, somente estes servidores ficaram com a fortuna de quase meio milhão de reais, equivalentes a 4% do total de R$ 10.790.935,35 pagos aos médicos no período.

De quase mil médicos listados na última folha, apenas 31 receberam menos de R$ 3 mil, com remunerações entre R$ 2.986,78 e R$ 89,86. Juntos, eles receberam R$ 55.961,97, ou seja, pouco mais que o recebimento do mais bem pago em março. Além dos ganhos ​acima do teto constitucional, salários com valores ínfimos que também chamam a atenção.

Na Prefeitura, a informação oficial sobre as explicações para a folha de pagamentos aos médicos se limita a explicar que o salário base de médico na Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) é de R$ 2.516,72, mas que “gratificações podem praticamente dobrar este valor, além dos plantões”.

E é no sistema de pagamento dos plantões que se complica a análise dos dados.

Muitos vínculos, pouco controle

Quase todos os profissionais possuem mais de um vínculo oficial com a Prefeitura, e não há como comparar, por exemplo, o valor pago por plantões e o total de plantões efetivamente cumpridos no intervalo. Aliás, a falta de transparência e controle no cumprimento dos expedientes é um dos maiores problemas apontados por pacientes e profissionais que gerenciam as unidades de saúde em Campo Grande.

O prefeito Marquinhos Trad chegou a anunciar recentemente que pretende implantar um sistema de ponto eletrônico para controlar as entradas e saídas dos médicos, como acontece com todos os trabalhadores, mas a pressão dos médicos foi imediata. O Sindicato da categoria ‘alertou’ que a medida poderia causar demissões, apesar de não explicar porque os médicos não querem registrar os pontos, se afirmam que os cumprem.

Segundo a Sesau “o profissional médico pode ter mais de um vínculo, pois pode atuar como plantonista em unidades 24h e ainda como médico de unidade básica de saúde”. Entretanto os dados do Portal da transparência revelam que alguns profissionais possuem mais de uma entrada de recebimento para cada vínculo, o que não foi explicado pela Prefeitura.

Profissional que recebeu mais de R$ 51 mil possui dois recebimentos para cada vínculo. (Portal da Transparência)

Somente o profissional que recebeu R$ 51 mil em março, por exemplo, ganhou 4,3 vezes a mais que a média salarial e 20 vezes o salário base. Mas, se acordo com os dados do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), o médico em questão trabalha apenas 24 horas semanais. Os dados no cadastro são fornecidos pelos próprios médicos e a Sesau não detalhou as horas trabalhadas pelos médicos.

Outros meses

Além das remunerações pagas em março, a reportagem do Jornal Midiamax analisou os pagamentos feitos em janeiro e fevereiro. As maiores remunerações são um pouco menores, porém em todos há médicos recebendo mais de R$ 40 mil. Em janeiro a remuneração mais alta foi de R$ 42.108,83 e foram 6 os profissionais a receberem mais que o teto do Supremo, com 159 ganhando mais que o prefeito.

Em fevereiro o médico mais bem pago recebeu R$ 42.201,42, com 3 médicos ganhando acima do teto e 111 ganhando mais que o salário mensal do prefeito da cidade.

Composição das Remunerações

Para se chegar à remuneração total de um médico, há muitas variáveis. De acordo com informações da Sesau, o salário base para um profissional convocado ou concursado plantonista que trabalha 12 horas semanais é de R$ 2.516,72. Dependendo de cada mês, pode haver um adicional no valor de R$ 601,00 pela 5ª semana trabalhada.

Há ainda os plantões eventuais que podem ser realizados nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) ou CRSs (Centros Regionais de Saúde), sendo que o valor base do plantão de 12 horas para dias úteis, em horário matutino e vespertino é de R$ 830,56.

Aos plantões realizados em período noturno em dias úteis, é acrescido 10% ao valor do plantão. Já, se o serão é trabalhado em finais de semana, independente do período, o acréscimo é de 20%. A Sesau ressalta que podem ser realizados plantões de 6 ou 4 horas, que valem metade e ⅓ do valor base do plantão respectivamente. 

Conforme explicado pela Sesau, um médico pode realizar 14 plantões por mês através de um vínculo e outros 10 a partir do segundo vínculo. Ou seja, se ele tiver dois vínculos ele pode fazer até 24 plantões. 

Por fim, há também uma gratificação no valor de R$ 500,00 que é oferecida aos plantonistas pediatras para cada 12 horas trabalhadas aos fins de semana.

Vínculos x Recebimentos

A Sesau não explicitou quantos vínculos um profissional pode ter, porém na observação dos dados, foram encontrados médicos com 4 vínculos. Entretanto, de acordo com a  Portaria MS/SAS nº 134, de 4 de abril de 2011, do Ministério da Saúde, o número de vínculos profissionais do médico em empregos públicos é limitado a até dois cargos.

Em contrapartida, há médicos com até dois vínculos, porém com 2 ou mais entradas de recebimentos para cada vínculo. Há casos de profissionais em que há registros de 4 e até 5 entradas de recebimentos. A Sesau foi perguntada, mais de uma vez, sobre os vários recebimentos  por vínculo, porém não houve resposta.

Sesau não explicou os vários recebimentos por vínculos. (Portal da Transparência)

Raspagem de Dados

O Núcleo de Jornalismo Investigativo do Jornal Midiamax precisou recorrer a técnicas de raspagem de dados como forma de driblar as dificuldades para acessar as informações sobre a folha de pagamentos aos médicos no Portal da Transparência da Prefeitura de Campo Grande. A partir da compilação, os números foram organizados em planilhas e os recebimentos mensais de cada médico foram somados e tratados.

Para checagem, a reportagem tentou detalhamentos na Sesau, que informou não abrir informações específicas sobre a folha de pagamento. Os dados obtidos estão disponíveis para acesso público de eventuais interessados na sede do jornal mediante solicitação simples e apresentação de mídia física para gravação.