Cineasta limpa nome do pai na Justiça após 60 anos

Há 57 anos, Joaquim Piza de Sousa Amaral foi condenado por estelionato por passar um cheque sem ter saldo suficiente em sua conta. O cheque, no valor de Cr$ 28 mil — que hoje valeria R$ 10,19 —, era pré-datado, mas foi apresentado para saque. Como não havia dinheiro na conta, o credor denunciou Amaral […]

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Há 57 anos, Joaquim Piza de Sousa Amaral foi condenado por estelionato por passar um cheque sem ter saldo suficiente em sua conta. O cheque, no valor de Cr$ 28 mil — que hoje valeria R$ 10,19 —, era pré-datado, mas foi apresentado para saque. Como não havia dinheiro na conta, o credor denunciou Amaral criminalmente. Ele foi condenado a um ano de prisão. Foragido desde então — e por isso, sem direito de apelação —, Amaral morreu em 1984, sem que a Justiça ouvisse suas razões.

Em agosto, no entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo resolveu rever o caso. A pedido da filha do condenado, Márcia Lellis de Souza Amaral — a cineasta Tata Amaral, uma das juradas na escolha do filme que representará o Brasil no Oscar deste ano —, o 1º Grupo de Direito Criminal da corte o absolveu, quase seis décadas depois. O acórdão foi publicado no mês passado.

A incrível história que levou a cineasta a reunir provas para limpar o nome do pai virou o documentário O Rei do Carimã, exibido no ano passado pela TV Cultura.

No dia do velório da mãe, Tata ouviu do tio a história da condenação de seu pai por um crime que ele não cometeu e decidiu investigar o caso. O trabalho de pesquisa deu origem ao documentário de 52 minutos, em que a própria Tata aparece como protagonista.

Com as provas na mão e a ajuda dos advogados Alex Leon Ades e Flávio Aronis, do escritório Ades e Aronis Advogados Associados, Tata convenceu o TJ paulista de que a sentença condenatória foi dada contra as provas dos autos. A argumentação foi a de que, como o cheque foi emitido pré-datado pelo seu pai, perdeu a característica de ordem de pagamento à vista. Ou seja, virou uma promessa de pagamento, uma garantia. A ação foi ajuizada em junho do ano passado.

“Mesmo que o condenado tenha falecido, ainda assim a revisão pode ser formulada pelos familiares”, explicam os advogados no pedido. “A revisão não visa apenas a interesses materiais, mas, acima de tudo, interesses morais.” Segundo eles, a ação pode ser proposta até mesmo depois do cumprimento da pena.

“Fica claro, portanto, de acordo com o relatado na instrução criminal, que a ordem de pagamento foi utilizada na forma pós-datada, como garantia de uma dívida, o que torna clara a atipicidade do fato praticado pelo acusado, que deve ser absolvido”, disse o desembargador Márcio Bártoli, relator do processo, acompanhado de forma unânime pelos colegas de toga. “Se não for compensado por falta de suficiente provisão de fundos, tal fato constituirá mero ilícito civil pela ausência de sua característica natural.” Ou seja, não houve crime que motivasse uma denúncia. O Ministério Público opinou contra a revisão.

Exemplo superior

A linha de raciocínio do Tribunal de Justiça paulista tem exemplos recentes no Superior Tribunal de Justiça. Casos parecidos, julgados nos últimos dois anos, também tiveram afastada a vinculação com estelionato. Para a 6ª Turma, é “atípica a conduta de emitir cheque pré-datado cujo pagamento restou frustrado, porquanto, nesta hipótese, a cártula deixa de ser uma ordem de pagamento à vista, transformando-se em uma espécie de garantia da dívida”, disse a ministra Jane Silva em acórdão de 2008.

“A frustração no pagamento de cheque pré-datado não caracteriza o crime de estelionato, seja na forma do caput do artigo 171 do Código Penal, ou na do seu parágrafo 2º, inciso VI”, voltou a dizer a 6ª Turma em acórdão relatado em março deste ano pelo ministro Og Fernandes. “Não há crime de estelionato, previsto no artigo. 171, caput, do Código Penal, em razão da atipicidade da conduta, quando o cheque é emitido como forma de garantia de dívida”, já havia reforçado a ministra Laurita Vaz ao relatar acórdão na 5ª Turma.

Mas o entendimento não é novidade. Amaral poderia ter sido absolvido se a Justiça de primeiro grau tivesse seguido a jurisprudência da própria corte paulista, válida na época da condenação. “A prova colhida em relação ao cheque entregue pelo apelante a A.S. não é suficiente para que se reconheça a integração do delito de fraude no pagamento por meio de cheque”, disse o tribunal em acórdão contemporâneo aos fatos. Em 1963, o STJ já sumulava a questão. “Comprovado não ter havido fraude, não se configura crime a emissão

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