Crítica: ‘Tempestade de Areia’ é janela cinematográfica para mundo diferente do nosso
Filme está disponível na Netflix
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De vez em quando a gente fica tão concentrado na própria realidade que até esquece que existem lugares distantes nesse planeta, com paisagens diferentes, dramas profundos sob um olhar cultural completamente oposto do nosso mundo ocidental, e histórias que são contadas e recontadas, todos os dias.
Felizmente a Netflix tem proporcionado para nós uma “espiada” nessa janela etnográfica de outros mundos, outros costumes, outras vivências. Esse talvez seja um dos ganhos tanto do serviço quanto do filme “Tempestade de Areia”, da cineasta Elite Zexter, que estreou na Netflix há pouco. E há muito para se ver e sentir no longa, embora seja uma história que tem sido perseguida ao longo do tempo: o papel da mãe, da esposa, da filha, em um mundo opressor.
“Tempestade de Areia” é um filme sensível, de olhares por trás dos tantos lenços e camadas de roupas que as mulheres retratadas usam, mulheres muçulmanas. Seus sentimentos, aspirações e tendências são sutilmente sendo carregados ao redor da tela, e a agonia das consequências de um único fato – serem mulheres em uma aldeia de beduínos em Israel – pesa sobre os ombros também dos espectadores. Isso pela direção simples, que de vez em quando lembra um documentário, e do cuidado em retratar o desenrolar dos fatos com sensatez. Na história, acompanhamos a jovem Layla, que divide seu tempo com o pai aparentemente amoroso, as irmãs, a mãe e a faculdade. Sua mãe Jalila está infeliz. Ela precisa preparar a celebração do casamento do seu marido com a segunda mulher, muito mais jovem.
Ao descobrir o envolvimento de Layla com um rapaz, os sentimentos de frustração e abandono explodem e começa a repetição de conflitos. Porém, Layla acredita que a despeito do que pensa sua amarga mãe, a justiça e o amor estão ao seu lado, e ela quer falar com seu pai. Sua mãe Jalila se vê presa entre o trauma de lidar com o casamento e com a descoberta sobre sua filha mais velha.
Tradições e opressão
Jalila é uma mulher dura nas expressões e nas decisões. Espiar pela janela dessa personagem é doloroso. Ela vive em um casebre sem quase nada, criando as filhas e fazendo o melhor que pode. Ser ela deve ser causticante: é ela que monta a cama que seu marido e a nova esposa vão usar na noite de núpcias, e é obrigada a fazer isso usando um bigode, como se fosse um homem, porém os homens estão do outro lado numa espécie de despedida de solteiro, comemorando. Depois do casamento ela depara com uma casa montada totalmente diferente da sua, muito mais luxuosa que a sua. As negligências do marido vão crescendo no decorrer da trama, já que ele simplesmente parece ignorar a existência da primeira família após casar de novo. Mesmo assim, ela não quer nada diferente para a sua filha Layla, já que é contra o envolvimento dela com o jovem. Porém, ela é contra por uma proteção, medo dessas tradições criadas por homens, que não dão ouvidos às vozes das mulheres, ou por simples egoísmo?
Somos guiados pelo olhar de Layla no filme, que vê o pai de forma branda até certo momento e a mãe de forma raivosa. Porém, todo e qualquer opressão feita às mulheres no filme é decidida pelo pai, agarrado às tradições em vigor. Mas o filme faz a proeza de sair do ambiente macro para mostrar o impacto dessas tradições nos indivíduos. Em determinado momento, Jalila diz que o marido “não precisa” fazer nada. Na verdade, o patriarca da família, visto no início como um homem justo, bondoso e tranquilo, utiliza os paradigmas sociais impostos para justificar as próprias ações e agir da forma que for mais fácil e cômoda para ele. Ao ser confrontado por Jalila sobre isso, já que ele inventa um casamento para Layla com um homem ruim, apenas para não lidar com o fato de que ela se apaixonou por outro, ele simplesmente decide banir a mulher.
É interessante também observar que, em meio ao deserto, onde a vida parece ter parado no tempo, a tecnologia e a globalização chegaram lá, não do modo como é vista por aqui, mas estão lá, na camionete toyota do pai de Layla, o iPhone da moça, na máquina de lavar automática. Mas não há luxo nem ostentação, apenas um deserto e muitos véus cobrindo os cabelos das mulheres.
É difícil ser mulher e assistir “Tempestade de Areia”. Essa olhada através do véu da cultura nos apresenta nuances muito variadas de um estereótipo que nós ocidentais criamos. Mas é uma experiência enriquecedora, sob um deserto opressor e sentimentos confusos de liberdade e tradição.
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