Um ano após tragédia em Santa Maria, segurança em boates avançou pouco

Logo após a tragédia na Boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu centenas, no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria (RS), houve uma grande mobilização de empresários, políticos e governos em torno do tema. Um ano depois, especialistas afirmam que o Brasil avançou pouco no sentido de melhorar a segurança em […]

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Logo após a tragédia na Boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu centenas, no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria (RS), houve uma grande mobilização de empresários, políticos e governos em torno do tema. Um ano depois, especialistas afirmam que o Brasil avançou pouco no sentido de melhorar a segurança em locais de reunião.

Na cidade de São Paulo, onde o esforço imediatamente após a tragédia foi intenso, a maioria das casas noturnas está irregular, afirma Silvio Antunes, arquiteto e diretor da empresa FireStop, de prevenção de incêndio. Na época, a prefeitura e o corpo de bombeiros fizeram uma operação que resultou na intimação de 131 casas noturnas, com 35 interdições e 58 regularizações.

Ele relata que, logo após a tragédia, o número de clientes dobrou na sua empresa, mas a demanda já se normalizou. Alguns meses depois, o especialista visitou estabelecimentos para verificar se as normas estavam sendo seguidas. “A maior parte não tinha o Auto de Vistoria do Corpo dos Bombeiros (AVCB, documento que atesta condições de segurança contra incêndio), algumas nunca pediram. Principalmente nas casas menores, há muita irregularidade.”

A professora da USP Rosaria Ono, especialista em segurança contra incêndio , avalia que o empenho inicial de inspeção em São Paulo não se manteve. “Várias casas se regularizaram naquele período. Mas muitas não fizeram nada e reabriram da mesma forma”, afirma.

O promotor José Carlos de Freitas, da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo, também considera que houve “um relaxamento” passado um ano do acidente. “Depois que esfria o assunto, nós notamos que tudo volta à normalidade, continua a fiscalização deficiente e muitas vezes a corrupção, também. Existem inúmeros estabelecimentos em São Paulo sem alvará de funcionamento”, explica.

Alguns poucos avanços

Entretanto, o promotor avalia que ficou mais fácil fechar uma casa noturna por questões de segurança. “Isso evoluiu um pouco, e os proprietários equiparam melhor os estabelecimentos”, afirma.

Segundo Joaquim Saraiva, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), as casas noturnas mais frequentadas do país – em torno de 600 – têm o AVCB. Para ele, o acidente em Santa Maria serviu para conscientizar os empresários. “No geral, a segurança nas casas melhorou”, diz.

Um avanço, afirma Silvio Antunes, é que o Corpo de Bombeiros passou a ser mais exigente nas suas vistorias. “Hoje eles pedem laudo de inflamabilidade dos tecidos e revestimentos, o que não costumava ser requerido antes.”

Para o presidente da Associação dos Profissionais de Fiscalização do Estado de São Paulo (Aprofisc-SP), Alexandre Silva Rodrigues, a probabilidade de ocorrer outro acidente como o da Boate Kiss diminuiu. Segundo ele, a fiscalização e a regularização na capital paulista
aumentaram, mas ainda restam casas noturnas irregulares que conseguiram liminares na Justiça para funcionar.

Problemas na fiscalização

Apesar de um esforço inicial, a fiscalização em São Paulo ainda é muito deficiente. Na capital paulista, há menos da metade do número de agentes vistoriadores estabelecido por lei, afirma Rodrigues. “Em 1986, ano de criação da lei, havia a determinação para criar 1,2 mil cargos”, diz. Hoje, segundo a prefeitura, há apenas 561 fiscais.

Levando em consideração o crescimento populacional desde aquela época, lembra o presidente da associação, há uma defasagem de  mil agentes vistoriadores na cidade. Desde 2002 não é realizado um concurso público para o cargo. Para ele, a fiscalização está sobrecarregada e, por isso, é pouco eficiente.

A opinião é partilhada pelos especialistas, que apontam a falta de fiscais como um dos principais desafios para elevar a segurança em casas noturnas. “As subprefeituras estão sucateadas em termos de agentes vistores, e o quadro é cada vez menor, porque uns ficam doentes e outros se aposentam”, afirma o promotor José Carlos de Freitas, que também defende um maior investimento em fiscalização.

“O corpo de profissionais é pequeno e eles acabam trabalhando apenas com base em denúncias, sem conseguir fazer visitas espontâneas e inesperadas”, diz Rosária Ono.

Autonomia para bombeiros

Além disso, a professora defende maior autonomia para os bombeiros. Eles inspecionam os locais, mas não podem multar. Silvio Antunes, da FireStop, concorda. Ele afirma que o bombeiro deveria ter o poder de embargar uma casa noturna. “O bombeiro faz a vistoria, identifica um problema, mas não pode cobrar a solução. Ele deveria poder dar um prazo para o proprietário fazer a mudança necessária.”

Segundo Silvio Antunes, o bombeiro só retornará ao local caso os donos peçam a revistoria. “Caso contrário, fica sem resolver. Na verdade, depende da boa vontade do proprietário”, explica.

Lei nacional

Outra grande dificuldade para a regularização é falta de uma lei nacional sobre segurança em locais de reunião. Logo depois da tragédia em Santa Maria, a Câmara dos Deputados anunciou a criação de uma comissão externa para acompanhar a investigação e apresentar uma proposta legislativa sobre o tema. O projeto de lei ficou pronto na metade do ano passado, mas, apesar de tramitar em regime de urgência, ainda não foi votado.

“Uma lei nacional seria importante porque há muitas normas estaduais e municipais. Isso deveria ter sido votado no mês seguinte ao incêndio”, diz o promotor José Carlos de Freitas. Ele critica a ausência de uma cultura preventiva: “O brasileiro só coloca a tranca na porta depois que ela foi arrombada. Exemplo disso é o Congresso Nacional, que ainda não votou essa lei.”

Rosária Ono, da USP, avalia que o Brasil não aprendeu a lição com a tragédia. “Quando acontece algo grave como a tragédia de Santa Maria, as pessoas reivindicam soluções, e os políticos tentam responder ao clamor popular com leis e normas. Mas, com o tempo, isso deixa de ser prioritário”, lamenta.

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente – dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3 horas do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência – as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas – quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro – este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele – as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

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