Relação entre patrões e empregados é o tema do documentário “Doméstica”

Gabriel Mascaro conversou com a reportagem na semana passada, pouco antes de embarcar para a Europa, onde foi mostrar seu documentário de curta-metragem “A Onda Traz o Vento Leva”. Mascaro pertence à novíssima geração de cineastas do Recife. É o diretor de “Um Lugar ao Sol”, sobre o redesenho da orla da capital de Pernambuco […]

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Gabriel Mascaro conversou com a reportagem na semana passada, pouco antes de embarcar para a Europa, onde foi mostrar seu documentário de curta-metragem “A Onda Traz o Vento Leva”. Mascaro pertence à novíssima geração de cineastas do Recife. É o diretor de “Um Lugar ao Sol”, sobre o redesenho da orla da capital de Pernambuco pela especulação imobiliária – e, mais que isso, sobre a elite que habita o alto dos condomínios de luxo. “Acima de mim, só Deus”, diz a socialite que não quer nem saber do que se passa lá embaixo, e menos ainda com os menos favorecidos, que compõem a base da pirâmide social. Mascaro também assina “Doméstica”, que estreou na sexta passada, reinaugurando a Sessão Vitrine.

O filme estreia em meio à polêmica provocada pela regulamentação da função de trabalhadores do lar. “É um assunto que mexe com as pessoas porque a doméstica, afinal de contas, se instala na casa delas. A relação não é só de trabalho como envolve afeto, mas a doméstica, seja faxineira, cozinheira ou babá, não pertence à família e a relação é marcada pela tensão social.” “Doméstica” segue a vertente de “Pacific”, de Marcelo Pedroso. Em ambos, os diretores trabalham com imagens que não captaram. Em “Pacific”, Pedroso utiliza os filmes domésticos feitos pelos passageiros de um cruzeiro a Fernando Noronha. Em “Doméstica”, Mascaro trabalha com outro tipo de registro doméstico – as imagens e sons captados por 15 jovens de 17 anos, que filmaram as empregadas de suas casas.

Mascaro fala muito em ‘jogo’. Esses jovens, escolhidos pela produção em diversas capitais, receberam um kit (câmera, som etc). E foram instados a filmar o que o diretor chama de relação de amor e violência durante uma semana. O material colhido somou 120 horas. Parece muito, mas houve um momento, de cara, em que o montador Eduardo Serrano chegou a se perguntar se, de fato, eles teriam filme para trabalhar. Havia, com efeito, um filme, esse que agora você pode ver e que está longe de ser uma unanimidade. Um crítico (!) escreveu que Mascaro reabre a vertente oportunista de Marcelo Pedroso em “Pacific”. A “resignificação”, como define Mascaro, não é uma via muito tranquila.

Implica em descobrir novos significados num material produzido por outro, ou outros. Os jovens de “Doméstica”, como os turistas de “Pacific”, lançam seu olhar sobre um tema (as empregadas, a viagem). O diretor, partindo desse material, o ordena segundo seu olhar. Cria uma montagem que busca relações – de amor e ódio, de dominação e submissão. O oportunismo está na ressignificação, na ideologização do material? Na apropriação do olhar alheio? Dziga-Vertov fazia isso no alvorecer da Revolução Russa. Sergei M. Eisenstein, que não era exatamente um admirador de seu cinema-olho, chamava-o de formalista. Mas, oportunista?

É um procedimento que não é inédito nem mesmo raro. Além de Dziga-Vertov e Marcelo Pedroso, Andrea Tonacci também fez isso em “Serras da Desordem” e esse é o princípio por trás dos vídeos nas aldeias de Vincent Carelli. Tonacci deu sua câmera aos índios. Gabriel Mascaro dá sua câmera não às domésticas, mas aos filhos dos patrões. E há um caso muito interessante – o da doméstica que trabalha para outra doméstica. Através desses olhares velados (e cruzados), o que “Doméstica” faz é levantar o véu de um longo silêncio.

Desde a regulamentação da profissão, na imprensa escrita, no rádio e na TV, no Facebook, surgiram interrogações perturbadoras Quase sempre as domésticas comem no emprego, mas agora as patroas falam em cobrar a refeição, em cronometrar o horário do descanso obrigatório. Essa tensão que a lei fez explodir já está em “Doméstica”. O velho conceito da luta de classes subsiste, embora tenha sido formalmente enterrado nas novas economias globais. E “Doméstica” extrapola a questão social. Há outra, estética, e ética, muito interessante. Como se faz o filme sem filmagem, sem direção? Sem câmera? Claro – existem a câmera, a filmagem, a direção, mas elas não são tradicionais. Dependendo do olhar (o seu), “Doméstica” pode ser perturbador.

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