Fazendeira de 83 anos que teve terra ocupada em MS discorda de ‘guerra’ contra índios

Dona de fazenda instalada em terra indígena na fronteira de Mato Grosso do Sul durante cinquenta anos, a idosa reclama do Governo e diz que a culpa pela crise é de ‘brancos que vivem nas costas dos índios’.

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Dona de fazenda instalada em terra indígena na fronteira de Mato Grosso do Sul durante cinquenta anos, a idosa reclama do Governo e diz que a culpa pela crise é de ‘brancos que vivem nas costas dos índios’.

Virgelina Pereira Lopes tem 83 anos de idade e conta que foi fazendeira na região de fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai desde que ‘se entende por gente’. Agora, ela está refugiada na casa de uma filha na cidade de Paranhos, a 477 quilômetros de Campo Grande, e não sabe se voltará a entrar na fazenda da qual foi dona nos últimos 50 anos.

A fazenda dela, Campina, fica a poucos quilômetros da cidade e está instalada sobre a área de Arroyo Corá, ‘retomada’ pelos índios guarani-kaiowá no último dia 10 de agosto. Eles alegam que cansaram de esperar o poder público resolver o problema da demarcação das terras, declaradas como indígenas pelo Governo Federal desde 2009.

Apesar de revoltada, a fazendeira octogenária garante que não concorda com os discursos inflamados de outros fazendeiros da região. Mesmo assim, ela admite que a situação é tensa e “está muito fácil de acontecer uma desgraça sem igual nessas terras”.

Vizinhos chegaram a declarar ‘guerra’ contra os índios e prometeram partir para o conflito armado. Um produtor rural da região foi indiciado pela Polícia Federal por incitação ao crime após afirmar, em entrevista gravada, que compraria armas para atacar os índios e que os ‘jogaria para os porcos comerem’.

Segundo a Funai, na segunda-feira (10) ocorreu novo ataque com armas de fogo contra os guarani, que tiveram barracos destruídos e fugiram para escapar dos tiros. Ninguém se feriu.

“Eu já estou velha e nem sei se vale mais a pena lutar. Meu pai era gaúcho e a mãe era daqui mesmo. Eu nasci aqui e comprei aquela terra pra deixar pros meus filhos. Todos os seis nasceram lá dentro e foram criados com o suor que derramamos naquelas terras. Agora, será que vão me devolver?”, lamenta.

Incerteza e medo

Segundo Virgelina, desde que começaram as ‘conversas’ sobre a devolução da terra para os índios, a vida dos fazendeiros na região tem sido de incerteza e medo.

“Em 98 eu já tinha sido atacada. Na época meu marido estava vivo e nós sofremos muito. Chegaram quebrando tudo e machucaram até o braço dele. Fomos salvos por um neto que chegou lá e conseguiu tirar a gente aqui pra cidade. Desde aquela vez já fiquei muito triste, porque entrei lá em 1962 e vi tudo quebrado, tudo destruído”, relembra.

Há cerca de três anos, segundo a fazendeira, quando antropólogos visitaram a região realizando estudos históricos sobre a ocupação indígena, a situação ficou ainda pior.

“É um medo direto. A polícia parece que só dá apoio para os índios, e a gente fica sem ação. Eu fico triste, porque a gente paga sindicato, paga imposto caro, gasta pra produzir, e agora parece que não temos direito a nada, que somos uns bandidos”, diz a idosa.

“Muita gente já desistiu da região. A gente teve essa decisão judicial lá em Brasília que segurou um pouco, mas agora nem isso os índios estão respeitando. Ela devia ter vendido a terra antes, porque agora, ninguém quer comprar nada por aqui e vai perder é tudo”, conta uma filha da fazendeira.

Culpa dos brancos

Calma, porém firme na indignação, a dona da fazenda retomada pelos índios diz que são as pequenas perdas do episódio que mais machucam.

“O prejuízo não é brincadeira. Foi tudo que era meu. Eu tinha lá minhas galinhas, uns porcos e nove cavalos tão bons”, diz na frase que interrompe engolindo um soluço. A senhora de 83 anos não chora, e cerra os lábios enquanto torce as mãos.

Questionada sobre quem culpa pela situação que enfrenta, a fazendeira surpreende: “A culpa disso tudo é dos brancos que vivem nas costas dos índios. O índio é prevalecido mesmo, mas é da natureza deles. Agora, estão fazendo tudo isso porque tem muita gente atiçando porque vivem nas costas deles. Eu nunca fiz isso. Paguei por essa terra e sempre trabalhei duro. É uma tristeza que acabe assim”.

‘Fazendas dos políticos’

Para a fazendeira, a intenção do Governo Federal de indenizar os donos das fazendas instaladas sobre terras indígenas pelas benfeitorias é injusta. “Onde já se viu. Eu sempre paguei imposto, tenho escritura que o Governo mesmo me deu, trabalho quase que pra pagar esses impostos só, e agora vou entregar tudo só pelo que eles acharem que eu fiz de benfeitoria lá dentro?”

“Isso de indenizar pelas benfeitorias pode servir pras fazendas dos políticos, de latifundiário, que só tem luxo, piscina, pista de pouso pra avião, coisa chique. Agora, pras nossas fazendas aqui da região, de gente honesta que trabalha o ano inteiro só pra pagar imposto, as contas, e criar os filhos, isso é uma gozação. A gente tem o necessário pra produzir nas fazendas e o resto é nosso suor”, indigna-se um parente da idosa.

O homem prefere não se identificar porque também é produtor rural em Paranhos e acha arriscado ‘se envolver’.

Mesmo assim, questiona a demarcação das terras indígenas com argumento comum entre os fazendeiros da faixa de fronteira sul-mato-grossense: “Se vão nos tirar daqui porque a terra já pertenceu aos índios antigamente, então devemos desocupar o Brasil inteiro. Porque não demarcam o Rio de Janeiro, então, que também era a terra onde viviam índios quando os europeus chegaram?”

Fazendeiros pobres

Para ele, a condução que o poder público tem dado para a questão fundiária ligada aos índios no Brasil prejudica os fazendeiros por causa de preconceitos.

“O problema é que tem muita gente achando ainda que os fazendeiros aqui são podres de rico, desses que trocam de camionetona todo ano. Isso aí não existe na realidade não. Pode ter lá na capital, onde moram os filhos dos fazendeiros ricos ou que querem só viver de aparência. Aqui, a gente anda é no lombo do cavalo ou de uma motoquinha mesmo, pra economizar na gasolina”, diz.

Na Famasul (Federação da Agricultura de Mato Grosso do Sul), o perfil descrito pelo pequeno produtor é confirmado.

“Quando olhamos o perfil do produtor em MS, na verdade, de 60 mil propriedades em MS. Desse total, mais de 40 mil são da classe D e E de geração de renda, ou seja, apenas 20 estão na classe A e B, que têm mais de quatro mil de renda. A própria Federação, tem a imagem de que só defende o grande produtor, e isso não é verdade”, explica o presidente da entidade, Eduardo Correa Riedel.

Quando falou com a reportagem, Virgelina tinha acabado de conversar com um advogado que procurou para saber como agir na tentativa de reaver a posse da fazenda. “Ele cobrou cinquenta mil reais só pra começar a mexer. Isso aí a gente não tem de onde tirar. Vai pagar com o quê, se tudo que tenho está lá”, lamentou.

Pouco depois, os índios solicitaram a retirada do gado que estava na tekohá (lugar onde se vive, no idioma guarani) retomada. Os animais foram entregues aos donos com acompanhamento da Polícia Federal.

Onda de ‘retomadas’

Os povos indígenas de MS prometem novas ‘retomadas’ de fazendas que funcionam nas áreas já consideradas terras indígenas em Mato Grosso do Sul. Eles protestam contra a publicação da Portaria 303/2012 da AGU (Advocacia-Geral da União), que é comemorada pelos ruralistas sul-mato-grossenses como uma forma de barrar as demarcações de terras indígenas no território estadual.

A portaria deve entrar em vigor no próximo dia 24, mas recentemente o Ministro da Justiça disse em MS que vai pedir o adiamento do prazo.

As lideranças indígenas consideram que a Portaria foi uma ‘declaração de guerra do Governo Federal contra os índios’ e a informação é de que os protestos pela revogação da Portaria devem se intensificar nos próximos dias.

Enquanto os indígenas protestam, os fazendeiros comemoram a decisão do Governo Dilma. Eles consideram as ocupações das fazendas pelos índios como atos criminosos de invasão.

Segundo a Famasul, caso a portaria seja respeitada, mais de 90% das demarcações em andamento em MS podem ser questionadas.

Com a normatização proposta pela AGU, o Governo Federal passa a seguir entendimento parcial do STF (Supremo Tribunal Federal) no julgamento do caso Raposa Serra do Sol como modelo para atuação dos advogados públicos e procuradores em processos judiciais envolvendo a demarcação de terras indígenas em todo o país.

Golpe nas demarcações

Para as lideranças indígenas sul-mato-grossenses, a Portaria 303 seria a prova de que o Governo Dilma teria ‘pactuado com a bancada ruralista’. Segundo Lísio Lili, membro do povo terena, “se a Portaria não for revogada, o Estado Brasileiro está declarando guerra aos povos indígenas”.

Segundo a Advogacia-Geral da União, no entanto, a Portaria 303 é uma tentativa de assegurar a estabilidade jurídica em ações sobre o tema e evitar que as demarcações sejam questionadas na justiça, enrolando o processo durante anos.

Dois pontos básicos definidos na decisão específica do Supremo no caso Raposa Serra do Sol interessam aos representantes do agronegócio.

Com a Portaria, há uma brecha para proibição de novas demarcações, além de permitir a revisão de processos administrativos sobre terras indígenas consideradas inadequadas à decisão do STF relativa à demarcação da terra indígena no estado de Roraima.

Os índios reclamam que não foram ouvidos pelo Governo Federal antes da elaboração do documento, e acusam a AGU de ‘ceder aos interesses do agronegócio predatório’. Para eles, a Portaria é um ‘golpe nas demarcações’.

A Famasul admite que, para o setor ruralista, a Portaria 303 é uma conquista. “Estão fomentando as invasões para derrubar a portaria. Estão contra o arcabouço jurídico da nação. Se seguirem o que está na Portaria 303, mais de 90% das demarcações em Mato Grosso do Sul são totalmente ilegais”, explica Riedel.

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