Brasileiros acham indícios de que DNA pode ter hélice tripla
Sempre que alguém se põe a recontar a saga da descoberta da estrutura do DNA, volta à baila a mancada histórica do genial Linus Pauling (1901-1994), Nobel de Química e da Paz. Ele chegou a publicar um estudo propondo que a molécula da hereditariedade era uma esquisitíssima hélice tripla, com as “letras” químicas A, T, […]
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Sempre que alguém se põe a recontar a saga da descoberta da estrutura do DNA, volta à baila a mancada histórica do genial Linus Pauling (1901-1994), Nobel de Química e da Paz.
Ele chegou a publicar um estudo propondo que a molécula da hereditariedade era uma esquisitíssima hélice tripla, com as “letras” químicas A, T, C e G apontando para fora da molécula. No mesmo ano, 1953, James Watson e Francis Crick sepultaram o modelo maluco: o DNA só podia ser mesmo uma hélice dupla, simples e icônica. Ou não?
Depende, sugere o trabalho de uma equipe brasileira. Os dados obtidos por eles, durante a análise do material genético de duas espécies de moscas, indicam que o DNA talvez forme triplas hélices em células vivas, afinal de contas. A configuração pouco ortodoxa da molécula apareceria em locais muito específicos, influenciando a maneira como o material genético funcionaria nessas regiões.
“É bom ressaltar que a gente não está tentando ressuscitar o modelo do Pauling”, explica Eduardo Gorab, do Instituto de Biociências da USP. “A estrutura que ele propunha era totalmente estrambólica. Mal dá para entender como um gênio do calibre dele se saiu com aquele negócio, que nem ácido é [tanto o DNA quanto o RNA, seu “primo” molecular, são classificados quimicamente como ácidos nucleicos]”, afirma o pesquisador da USP.
Pista antiga
Se não reabilita o ganhador do Nobel duplo, o trabalho de Gorab e seus colegas segue uma pista que é quase tão antiga quando a publicação da estrutura “correta” do DNA. No final dos anos 1950 e durante todos os anos 1960, experimentos mostraram, inicialmente, que o RNA, mais conhecido como o transmissor da informação do DNA para a maquinaria das células, podia formar triplas hélices. “Mais tarde, houve a constatação de que isso também podia acontecer em fitas híbridas de RNA ou DNA, e mesmo apenas com DNA”, afirma Gorab.
Os dados vinham, é verdade, de análises in vitro dos ácidos nucleicos, em contextos bem diferentes da atuação natural das moléculas no organismo, mas eram intrigantes, nem que fosse como curiosidade bioquímica.
A capacidade de identificar hélices triplas, seja de RNA, seja de DNA, tornou-se mais apurada nos anos seguintes graças ao trabalho de Bernard David Stollar, da Universidade Tufts (Estados Unidos), que criou anticorpos capazes de se ligar a essas moléculas.
Trata-se, grosso modo, de um sistema de fechadura e chave: os anticorpos se adaptam ao formato das hélices triplas, grudando-se nelas e denunciando a presença das ditas cujas. “O trabalho do Stollar foi muito importante, e por isso a gente insistiu para que ele assinasse o artigo conosco”, diz Gorab, referindo-se ao estudo em edição recente da revista científica “Chromosome Research”.
Apesar da importância histórica de seus anticorpos, Stollar acabou não avançando no estudo das triplas hélices. Por sorte, contudo, outro coautor do estudo, José Mariano Amabis, também da USP, havia passado uma temporada no laboratório do americano durante os anos 1980, e o grupo resolveu tirar da geladeira os anticorpos de Stollar, por assim dizer.
Para a análise, o grupo usou cromossomos (as estruturas enoveladas que abrigam o DNA) da mosca Drosophila melanogaster, velho burro de carga dos laboratórios de biologia, e também o de outra mosca, a Rhynchosciara americana, famosa na ciência brasileira e mundial pela maneira peculiar como regiões específicas do seu genoma são multiplicadas. “É possível obter dela cromossomos gigantes, politênicos [formados por material genético multiplicado e emendado, que não se separou por divisão da célula, como ocorreria normalmente], com dimensões excepcionais”, diz Gorab.
Isso facilita o estudo do material cromossômico. Um dos pioneiros da genética brasileira, Crodowaldo Pavan (1919-2009), fez grande parte das suas descobertas graças à mosca. “Aposto que ainda temos coisas importantes a aprender com ela”, afirma o pesquisador.
A aposta parece ter sido bem calibrada. O que o grupo viu realmente indica a presença de regiões com hélices triplas no material genético das duas moscas. “A grande pergunta que todo mundo quer responder é: será que as triplas hélices estão presentes in vivo [no organismo em seu estado vivo]? Nossos dados mostram que isso é possível”, afirma Gorab. Mas ainda há alguns senões.
Preparadas
O mais importante deles envolve um problema metodológico. Para poder examinar os cromossomos das moscas, os pesquisadores precisaram fixá-los, procedimento que envolve o emprego de álcool e ácido acético.
A fixação leva a mudanças no estado natural do DNA, o que poderia, em tese, ser uma explicação alternativa para as triplas hélices.
Por isso, o objetivo da equipe agora é tornar a análise menos invasiva, de modo a refletir o que acontece no organismo dos bichos. Se as hélices triplas estiverem mesmo presentes ao natural, Gorab diz que elas poderiam “emperrar” processos envolvendo o DNA.
“Elas seriam um impedimento para uma série de eventos, como transcrição [passagem da informação do DNA para o RNA] e replicação [multiplicação do material genético]”, avalia. Seria, portanto, mais um nível de sofisticação no processo já complicadíssimo de ativação e desativação dos genes.
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