Para evitar perda de gado, onças ganham carne na beira do rio e ‘desaprendem’ como caçar no Pantanal

Homens presos recentemente deram origem à investigação, que trouxe à tona denúncia de possível matança e também ceva dos felinos para apreciação de turistas

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Onça no pantanal de MS. (Luiz Mendes/Arquivo Pessoal)

A prisão recente e em flagrante de dois peões, acusados de receberem dinheiro para matarem onças no pantanal sul-mato-grossense, trouxe à tona uma investigação policial e a denúncia de que “os novos donos de terras” não querem ter prejuízo com “uma novilha sequer” e, por isso, estariam pagando funcionários para promoverem a matança ou o envenenamento de felinos, principalmente se algum gado da fazenda já foi abatido.

E o problema vai além: as onças, no ambiente delas e “na casa delas”, sem os abrigos que antes tinham e que se perderam com inúmeras áreas desmatadas, estariam recebendo todo tipo de alimento para permanecerem na beira dos rios e servirem de atrativo aos turistas que se instalam em hotéis-fazenda no Pantanal e pagam caro para ver este animal.

Peões estariam recebendo ‘valor por cabeça’, diz denunciante

O Jornal Midiamax recebeu denúncias de pantaneiros nascidos e criados na região e que possuem muita experiência e contato com peões, os quais falam até em “valor por cabeça” que cada um recebe ao matar onças e assim “agradar o patrão”.

Neste caso mais recente, a Polícia Civil de Rio Verde inclusive instaurou inquérito e apura se há e quem seriam mandantes, ou seja, as pessoas que ordenaram os peões a matarem este tipo de animal.

Onça conhecida como “vovó” no Pantanal de MS. (André Bittar/Arquivo Pessoal)

“Estamos com a investigação em curso e testemunhas sendo ouvidas. Foi pedida a quebra de sigilo telefônico dos presos, o que foi deferido pelo judiciário e agora vamos verificar mensagens de texto, vídeos e todo conteúdo que tiver para corroborar com o que foi produzido até agora”, afirmou o delegado Edson Leandro Caetano dos Santos, responsável pelo inquérito.

No momento da prisão, segundo o delegado, os peões teriam confessado que receberam ordens dos patrões, já que as onças teriam matado bezerros da propriedade onde trabalham. No entanto, em depoimento formal, falaram que caçaram e mataram os animais por vontade própria.

Pena máxima por perseguir, matar e caçar onça é de um ano

“Os casos que estão acontecendo mostram a gravidade deste crime. Em abril houve a prisão de uma pessoa, a qual tinha um vídeo cortando a cabeça da onça, isso no pantanal do Mato Grosso. São casos em que a pena é ínfima, com dano irreparável ao meio ambiente. E a onça está no topo da cadeia alimentar, então, é algo seríssimo. Este crime, assim como os que envolveram a prisão dos dois homens aqui, incidem no artigo 29, que é matar, perseguir e caçar animais silvestres, com pena máxima de um ano”, argumentou Santos.

Um guia turístico de 56 anos, com quatro décadas de experiência trabalhando no pantanal e que ajudou a “nomear” 25 onças, fala que, desde sempre, ouviu histórias sobre a matança. Ele informou o nome e permitiu a publicação, porém, a reportagem decidiu preservá-lo.

“Já vi muita onça morta perto da carcaça de boi. Vi milhões de vezes. Só que não adianta fazer denúncia porque os caras [donos das terras] têm dinheiro, então, não acontece nada. A represália fica em cima de quem fez a denúncia. Há muitos anos, mais de décadas isso, já ouvia histórias de patrão que pagava mil reais por onça morta. Tenho muito contato com peões, falo com eles direto”, afirmou o denunciante.

Onça bebendo água no Rio São Lourenço, na divisa entre Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. (Gustavo Figueirôa/Arquivo Pessoal)
Onça bebendo água no Rio São Lourenço, na divisa entre Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. (Gustavo Figueirôa/Arquivo Pessoal)

Na região do Abobral, conforme o guia, já foram flagradas onças envenenadas. “Já vi uma porção morta ali. Tinha a carniça, o resto de vaca lá e aí foi só andar um pouco e achamos a onça morta e até filhotes. E daí morre toda a cadeia, urubu, carcará, tudo envenenado também, então a gente vê tudo isso e não aceita. Ali no pantanal é a casa delas. Este tipo de coisa não pode acontecer e agora tem uns que querem retirar da beira do rio também. Eu não concordo. Ali elas ficam tranquilas e não atacam animais da fazenda”, disse.

Amante do Rio Miranda, o guia fala que leva, com muita frequência, turistas americanos e espanhóis para passearem de barco e avistarem animais silvestres. “Muito pescador profissional é orientado a limpar e largar a tripa ali na beira, daí as onças vão lá e comem. São mantidas ali na margem e ficam comendo esse resto de peixe. Mesmo assim, nunca houve ataque de onça, mesmo o pessoal dormindo nas proximidades. E enquanto preservadas, a população aumenta muito, como é o caso do Morro do Azeite. E esses dias estavam discutindo sobre transferir as onças. Eu acho errado. É um animal territorialista e, em cada região, tem o macho dominador”, afirmou.

‘Fazendeiro mandar matar onça é tradição antiga no Pantanal’, diz empresário

Onça se alimentando de bezerro. (Pousada Aguapé/Arquivo Pessoal)

Um pantaneiro e empresário do turismo, que também não será identificado, diz que sempre ouviu histórias da matança de onças, mas as denúncias pararam um tempo e voltaram a ocorrer recentemente.

“Ainda mais agora, nesta situação financeira, com a novilha valendo entre 3 a 4 mil reais. Eu nasci e cresci nas fazendas do Pantanal. Só me distanciei um tempo para estudar e agora voltaram a falar da matança e que também estão cevando as onças na beira do rio para os turistas ficarem vendo e tirando foto. De todo lado, todo mundo só almeja o lucro”, opinou o denunciante ao Jornal Midiamax.

De acordo com o denunciante, o ir e vir destes felinos, na beira do rio, sempre ocorreu quando iam tomar água e também caçar jacarés, mas ultimamente estão permanecendo porque encontram comida. “Assim, perdem a essência de caçar, de buscar o alimento. O que precisa ser mostrado é o turismo natural e não algo forçado como alguns locais estão fazendo. Outra coisa necessária são placas. Falo com turistas, eles até acham estranho não ter nada, porque é bem diferente dos locais que conhecem no exterior”, comentou.

Outro guia turístico, com 23 anos de experiência no pantanal sul-mato-grossense, fala que alguns fazendeiros compram venenos e orientam peões a matarem as onças, quando encontram vacas mortas. “Este ano eu ainda não vi nenhuma. Mas, eu acredito que isso tudo parou porque muita gente ameaçou de denunciar, de avisar a polícia. No ano de 2017, lembro que um grupo tirou fotos de onça morta e chegou a entregar para as autoridades”, comentou.

Segundo o denunciante, o desmatamento também é algo prejudicial para estes animais. “O fazendeiro tem ali um campo aberto, em que consegue monitorar até as onças. E esta é uma cultura nova no pantanal, de meter trator, correntão e gradear tudo. É uma interferência na natureza tremenda”, lamentou.

Polícia ambiental diz que faz visita em fazendas e conversa sobre este tema

Placa instalada falando sobre a proibição de ceva de onças-pintadas. (Imasul/Arquivo Pessoal)

A PMA (Polícia Militar Ambiental) diz que, frequentemente, recebe denúncias de crimes ambientais, entre eles a matança de onças. Neste caso mais recente, que culminou na prisão de dois homens, uma equipe de São Gabriel do Oeste foi até o local e fez campana, conseguindo localizar os suspeitos no segundo dia de abordagens.

“Houve o flagrante porque ambos estavam com armas, então, configurou no porte ilegal de armas. Eles foram questionados sobre o que tinha acontecido e realmente confessaram que mataram duas onças, nos mostrando inclusive onde estava uma das carcaças. A polícia ainda não acredita que seja um caso isolado e por isso está ocorrendo uma investigação”, disse ao Jornal Midiamax a capitã e assessora da PMA, Thamara Moura.

Conforme a capitã, equipes fazem visitas rotineiras e conversam sobre temas diversos com proprietários de terras no Pantanal. “Isto, infelizmente, é uma cultura que ainda existe em algumas fazendas, mas, nós orientamos inclusive em relação ao próprio manejo do gado, que inibe ataques de onças, não é custoso e não vai gerar problema. E não vai ser matando que o problema será resolvido, até porque os animais estão no habitat deles e aí geraria um declívio ambiental”, finalizou Moura.

Ibama diz que denúncia é muito grave

A superintendente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em Mato Grosso do Sul, Joanice Battilani, ressaltou que a denúncia é muito grave. “Há cerca de dois anos tivemos a morte de uma onça-pintada monitorada. E muitos outros animais que comeram um novilho morto com veneno. Até os urubus morreram. É algo muito sério mesmo”, afirmou.

Já o Imasul (Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul) comentou que a autorização para manejo de fauna silvestre em vida livre é de competência do Ibama/ICMBio. Além disso, explicou que a legislação ambiental é bastante clara no que trata de crimes ambientais envolvendo a caça ou envenenamento para fauna silvestre.

Equipe médica fez Raio-x em onça dentro do Pantanal, pela primeira vez, neste mês de junho. (Imasul/Arquivo Pessoal)

Ainda conforme o Imasul, recentemente uma onça-pintada macho, com menos de dois anos de idade, foi sedada e submetida a exames de Raio-x e ultrassom em um ambulatório móvel, montado dentro do Pantanal.

O atendimento ocorreu nos dias 24 e 25 de junho, por pesquisadores e policiais militares ambientais e se trata de um fato inédito, segundo afirmou o professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), o médico veterinário Gediendson Ribeiro de Araújo. “Exames de ultrassom já fizemos, mas Raio-x foi a primeira vez. Até eu fiquei admirado de ver”, afirmou.

O motivo, segundo ele, foi o recebimento de um vídeo mostrando que um pescador jogou um peixe ainda fisgado no anzol, para uma onça que estava na margem do rio Miranda. Desta forma, a equipe concluiu que o anzol poderia estar preso no estômago do animal e assim a onça poderia morrer.

O fato ocorreu perto de uma pousada no Morro do Azeite, município de Miranda. Em seguida, sem qualquer gravidade, foi solta.

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