Toque. A partir desse sentido as pessoas têm a capacidade de tocar a realidade à sua volta, seja para dar o primeiro beijo ou até sentir o tecido de uma roupa. No entanto, para outra parcela da população, o toque é a verdadeira porta de entrada para experimentar a vida. É o caso dos cegos que veem o mundo com as pontas dos dedos. No entanto, isso só é possível a partir do momento em que esses indivíduos são alfabetizados em braille e contam com uma estrutura de inclusão na sociedade. Neste Dia Nacional do Cego, o Jornal Midiamax te convida a conhecer o cenário da educação sul-mato-grossense e como, apesar dos bons avanços, os cegos ainda enfrentam reflexos do capacitismo na sala de aula.

Dentre as principais dificuldades apuradas pela equipe de reportagem, destacam-se a falta de preparo dos professores, dificuldade de acesso a materiais e baixos investimentos efetivos na área de educação para cegos e pessoas com baixa visão.

Para suprir essa demanda na sociedade, o Ismac (Instituto Sul Mato Grossense para Cegos Florivaldo Vargas) tem um papel fundamental de guiar os alunos cegos para que eles conquistem a plena alfabetização. Local é uma sociedade civil sem fins lucrativos fundada em 1957, na Capital, destinada à educação, reabilitação e assistência social às pessoas com deficiência visual.

Segundo o diretor-presidente, Márcio Ximenez Ramos, o Ismac conta com o centro educacional especializado que atua no apoio aos estudantes de todas as idades – ensino fundamental, médio e até EJA. Ele explica que, enquanto as escolas ficam encarregadas de realizar a alfabetização em braille para os cegos e baixa visão, o Ismac trabalha no contraturno com apoio pedagógico.

Márcio Ximenez, presidente do Ismac, vestido com camiseta vermelha e com soroban em mãos
Márcio Ximenez Ramos, presidente do Ismac (Foto: Nathália Rabelo/Midiamax)

Dessa forma, as equipes ensinam braille e dão os equipamentos necessários, como bengala, a punção (como se fosse a ‘caneta' para os cegos) e até soroban (instrumento de cálculo manual) a esses alunos, quando necessário.

Portanto, o Ismac atende uma média de 120 a 130 pessoas na área de apoio à educação, enquanto outras 700 pessoas nos demais serviços. Toda a assistência prestada é gratuita.

Maiores dificuldades em MS

Conforme pontuado por Márcio, as maiores dificuldades encontradas na educação especializada para cegos em Mato Grosso do Sul é a disponibilização de materiais em braille. Segundo o especialista, muitas vezes, o material escolar demora para chegar porque sua confecção é extensa.

“A gente tem o CAP (Centro de Apoio Pedagógico para Atendimento às Pessoas com Deficiência Visual) para preparar esse material e esse material nunca chega a tempo para o aluno, especialmente do interior, porque é muito moroso de fazer, de passar para o braille, fazer a transcrição, a conferência, imprimir de novo. Então, o aluno não consegue acompanhar ao mesmo tempo do restante da turma porque muitas vezes esse material não chega”, explica Márcio.

Assim, esse processo já influencia em todo um aprendizado pedagógico e quem sofre as maiores consequências são os alunos, que muitas vezes não conseguem seguir no mesmo ritmo da turma.

Falta participação ativa na sala

Para entender melhor como funciona dentro das escolas, a equipe de reportagem entrevistou uma que já atuou como apoio de alunos com deficiência e também como coordenadora de uma instituição de ensino, no município e no Estado.

Aos 66 anos de idade, ela ressalta que grande parte da sua vida foi passada dentro da sala de aula. Segundo ela, as escolas precisam ampliar as mentes para conseguir atender os alunos PcD. Assim, o sistema de ensino tem uma mentalidade muito fechada e não vê o aluno em sua amplitude, nem em seu desenvolvimento global.

“Nesse cenário brasileiro de educação é muito difícil porque a escola não quer essa população, mas ao mesmo tempo as políticas públicas forçam essas escolas a ensinar. A escola matricula a criança, mas ela fica ali na sala de aula no cantinho dela, não tem participação ativa em nada, por isso a aprendizagem fica defasada. Quando chega no Ismac com 10 ou 11 anos, já na 6ª e 7ª série, tem criança que ainda não sabe uma letra. Não tem como ensinar o braille sem a criança estar alfabetizada, então tem que ter harmonia nesse processo”, explica.

Portanto, a educadora ressalta o quanto a educação ainda tem uma visão muito capacitista sobre os alunos cegos. “Para você ter uma ideia, eu já atendi um aluninho cego que ia começar a aprender os ângulos na aula de matemática. A professora ficou com medo de ensinar na época, mas eu ajustei o material, peguei papelão e ajudei ele. Ele foi o único da sala a tirar 10”, recorda.

Braille é sinônimo de autonomia

Todas essas barreiras no sistema educacional são vividas pela servidora pública Leia Rodrigues. Ela tem baixa visão e o filho de 14 anos ficou cego completamente quando estava nos primeiros anos da escola, algo que mudou completamente seu processo de alfabetização a partir de então.

Ela afirma que percebeu maior desempenho do filho na escola quando levou ele para o Ismac, onde o adolescente aprendeu a ler e escrever, de fato, em braille.

Papel com alfabeto em braille
(Foto: Nathália Rabelo/Midiamax)

“A partir do momento que ele aprendeu o braile, isso trouxe muita autonomia para ele. As coisas estão melhores, mas tem muita coisa a ser avançada, especialmente para os professores regentes que precisam ver a capacidade desses alunos dentro da sala de aula. Eles [professores] deixavam muito a responsabilidade para o profissional de apoio. Mas a partir do momento que o professor regente entender o espaço do PcD na sala, especialmente os cegos, eles vão ver que essas crianças e jovens têm pleno desenvolvimento”, afirma Leia.

O filho de Leia tem 14 anos e estuda na Escola Municipal Prof. Arlindo Lima, considerada a escola modelo em ensino de braille e para cegos em . Prestes a encerrar o ensino fundamental, a preocupação do adolescente é ir para o ensino médio e trocar de instituição, visto que agora irá para uma escola da rede estadual.

“Vai ser bem desafiador porque eu não sei para que escola ele estará indo e a forma como as matérias serão trabalhadas”, comenta a servidora.

Ensino para cegos nas escolas municipais

A legislação institui que as escolas com alunos cegos são responsáveis por oferecer processo de educação especializado. Então, o Jornal Midiamax também entrou em contato com as redes municipal e estadual de ensino. Segundo a Reme (Rede Municipal de Ensino), atualmente são 24 alunos cegos e 92 com baixa visão matriculados nas escolas municipais de Campo Grande. A Reme recebe alunos a partir dos seis meses nas Emeis, sejam deficientes ou não.

Em nota, a prefeitura afirma que a Reme oferece alfabetização no sistema Braille nas unidades escolares, com profissionais de apoio graduados e pós-graduados. Os profissionais recebem formação em Braille, oferecida pela equipe técnica da Deficiência Visual, da Divisão de Educação Especial (DEE).

Os alunos cegos e com baixa visão estudam em sala comum com os demais alunos, algo que promove a inclusão dos alunos PcD.

“Além disso, a Reme tem sala de recurso especializada para os alunos cegos e com baixa visão, que funciona na EM Professor Arlindo Lima. Todo o trabalho educacional e pedagógico desenvolvido prevê a inclusão e o ensino-aprendizagem adequado dos alunos cegos e com baixa visão, no dia a dia da rotina escolar, atividades e avaliações. Além da atuação dos profissionais de apoio e da alfabetização em Braille, a Reme oferece adequação das atividades e livros com aplicação e transcrição em Braille”, disse, em nota, a Reme.

Ensino para cegos nas escolas estaduais

As mesmas adaptações também são pontuadas pela SED (Secretaria de Estado de Educação) nas escolas estaduais.

Todo estudante cego é matriculado na Rede Estadual de Ensino em salas de aula comuns, conforme idade e etapa da educação básica. Atualmente, 301 estudantes com deficiência visual estão matriculados, sendo 42 cegos e 259 com baixa visão nos 79 municípios de MS.

Dessa forma, o Centro de Apoio Pedagógico aos Deficientes Visuais do MS (CAP/DV/MS) realiza avaliação desses alunos, presta assessoramento e formação necessária para inclusão escolar. Ainda segundo a SED, a equipe é formada por especialistas em educação especial.

“Além do trabalho do CAP/DV/MS os estudantes com deficiência visual também frequentam o Atendimento Educacional Especializado (AEE) nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) das escolas, onde um professor especialista em educação especial realiza um trabalho complementar junto aos estudantes tanto com relação ao currículo como com relação ao uso de estratégias e tecnologias para acesso visual (como uso do Braille para leitura, Soroban para números, e outros recursos de tecnologias) que podem ser utilizadas no contexto geral da turma na sala de aula e na escola. Em caso de comprovada necessidade, outros profissionais também poderão atuar de forma a favorecer o processo de inclusão do estudante cego na escola estadual”, diz, em nota.

A SED ainda ressalta que trabalha com a educação especial na perspectiva de escola comum e inclusiva.

Toda necessidade educativa do estudante cego é suprida e providenciada com adequação de materiais diários em Braille ou áudio descrição, adequação de provas e uso de estratégias favorecedoras de convívio social (orientação para atividades de vida diária, orientação e mobilidade) de forma autônoma”, explica.

Pessoas cegas nas universidades

O acesso ao ensino acadêmico também deve ser facilitado para os estudantes cegos e de baixa visão. Assim, todos os recursos de acessibilidade e materiais devem ser disponibilizados pela instituição.

A UEMS (Universidade Estadual de MS), por exemplo, afirma que não há matrículas ativas de acadêmicos cegos no momento, mas que há uma cota de 5% para Pessoa com Deficiência e que os processos seletivos são organizados por empresas terceirizadas com essa finalidade.

No campus de Campo Grande, a instituição conta com o Laboratório de Pesquisas em Educação Especial, Acessibilidade e Inclusão (LAPIS), que atende todo acadêmico que procura os serviços oferecidos, como, por exemplo, impressão em Braille para reprodução de livros e textos, um scanner com voz e computadores com programas livres que são conversores de texto.

Mãos com equipamento e punção para escrever em braille
(Foto: Nathália Rabelo/Midiamax)

“A UEMS por meio da Divisão de Inclusão e Diversidade (DID) está sempre à disposição para auxiliar no que tange a processos seletivos para Atendimento Educacional Especializado e o pensar das políticas de acesso, permanência e terminalidade dos acadêmicos PCDs. O Setor de Atendimento Educacional Especializado lida diretamente com a demanda dos pedidos de AEE por parte dos acadêmicos e a mediação entre o profissional contratado e os setores competentes”, diz por meio de nota.

O Jornal Midiamax também procurou a UFMS, que não se manifestou sobre o assunto até o momento.

Conforme pontuado por Márcio, presidente do Ismac de Campo Grande, que também é deficiente visual e passou por todas essas fases do ensino, nem todas as universidades prestam o apoio necessário.

“Muda o ambiente [da escola para a universidade], mas as dificuldades praticamente são as mesmas. Às vezes a gente também precisa brigar para conseguir material em algumas universidades. O Brasil é o país que mais tem legislação que garante os direitos para as pessoas com deficiência, mas na prática em educação, saúde, e cultura, a gente tem o direito a esses acessos, mas a gente não consegue alcançar muitas vezes”.

Existe esperança na ‘escuridão'

A melhora para esse cenário, então, são investimentos em tecnologias para educação de cegos e aplicabilidade das políticas públicas destinadas aos deficientes visuais. É com isso, então, que o Ismac trabalha: ao oferecer oportunidades àqueles que tiveram as portas fechadas.

“A gente faz esse trabalho de estímulo, principalmente com crianças que já nasceram cegas, para que elas consigam enxergar o mundo de outra forma. Mesmo com as dificuldades financeiras, é muito bom ver as pessoas vivendo, praticando esportes, se desenvolvendo. Motiva a gente a continuar o trabalho. Estamos aqui para abrir as portas, mostrar que a vida continua mesmo na escuridão e que existem inúmeras coisas que podemos fazer”, conclui Márcio, emocionado.

Miguel tem apoio pedagógico no Ismac
(Foto: Nathália Rabelo/Midiamax)

A vida é feita de passos ou, para os deficientes visuais, é feita de toques. Esse menininho, por exemplo, celebrou uma grande conquista durante a minha ao Ismac. Bastaram alguns minutos para ele sentir nas mãos o que cada letra em braille representava. Foi assim que ele, sozinho, montou o nome e se apresentou como Miguel, um vislumbre muito especial do quanto ele pode ser o seu próprio super-herói no futuro. Assim como os demais, Miguel pode até não enxergar, mas com certeza vê o mundo.

Miguel escreve o nome com braille
Miguel escreveu o nome com braille (Foto: Nathália Rabelo/Midiamax)

Serviço

Vale ressaltar que, mesmo recebendo ajuda do governo municipal e estadual, a principal fonte de renda do Ismac para manter os serviços gratuitos são as doações. Portanto, se você se solidariza com a causa, pode visitar a instituição e encontrar a melhor forma de contribuir.

O Ismac (Instituto Sul Matogrossense para Cegos Florivaldo Vargas) fica localizado na Rua Vinte e Cinco de Dezembro, 262, e pode ser contatado pelo telefone (67) 3325-0997. Conheça mais detalhes sobre a instituição pelo site.