– Quer fazer um sexo gostosinho?
– Quê?
– Um sexo gostosinho, eu e você.
– Ah, não, hoje não, obrigado. Quem sabe amanhã…
– Amanhã isso aqui vai estar fechado, amor.

Assim fui recepcionado por uma prostituta de seus 50 anos quando visitei, na tarde da última segunda-feira (26), o prédio do Centro Comercial Condomínio Terminal do Oeste, a Estação Rodoviária Heitor Eduardo Laburu, ou simplesmente ‘' de , inaugurada em outubro de 1976 e desativada em janeiro de 2010 devido à construção  de um novo e moderno prédio na saída para São Paulo. Após o fim das atividades rodoviárias, o prédio, que já foi o principal centro comercial da cidade, seguiu no abandono e descaso. Restaram no local apenas alguns lojistas que agonizam a inércia do Poder Público e que sobrevivem da fidelidade de clientes de décadas.

Após ter sido interditado pelo Corpo de Bombeiros em agosto de 2015 por falta de itens de segurança, o MPE (Ministério Público Estadual) determinou o fechamento do local. Lojistas foram notificados na última semana e logo menos, às 9h, deverá ter início o processo de desocupação do prédio. Em decorrência disso, os cidadãos mais nostálgicos da cidade estão em lamúrias. Mas dor nenhuma se compara a das pessoas que insistem em acreditar no retorno dos tempos áureos, na formação de nova clientela e no aumento do parco sustento que vem do comércio no local. Após tantas ameaças de interdição, o fechamento determinado pelo MPE parece ser a pá de cal sobre seus sonhos.

Haverá esperança para o prédio que já abrigou o maior centro comercial de Campo Grande?
O que já funcionou neste grande salão de portas fechadas e tomado pela sujeira? | Foto: Guilherme Cavalcante | Midiamax

E não há a quem recorrer. Diversas administrações municipais já anunciaram investimentos pesados para o prédio, mas nada se concretizou. O ex-prefeito Nelson Trad Filho chegou a instalar no local a sede da Guarda Municipal, uma universidade e a Central do Passe Cidadão, na tentativa de restabelecer fluxo de pessoas e assim estimular o consumo. Muitas outras ideias nem sequer saíram do papel, como a transferência de uma central do Tribunal de Justiça, da Fundac (Fundação Municipal de Cultura), da Funsat (Fundação Social do Trabalho) e até da Câmara Municipal – cogitada pelo atual prefeito Alcides Bernal e descartada pelos vereadores. A justificativa cai sempre nos altos custos para reforma das instalações, estimados em R$ 56 milhões. O discurso de que é mais fácil construir algo do zero ignora que o abandono do prédio recai sobre um grave problema social.

O retrato de Dorian Gray

Desenhado pelo arquiteto Adyr de Moura Ferreira, a construção da rodoviária durou quase 9 anos e teve início em 1967. Primeiro, foi autorizado o uso do cais de embarque e desembarque interurbano, em 1973. Dois anos depois, uma plataforma urbana foi entregue. Às 20h do dia 16 de outubro 1976, com direito à pompa e presença dos ilustres da cidade, o prédio foi oficialmente inaugurado. Nele, funcionavam dois cinemas, Cine Center e Cine Plaza, e dezenas de lojas com produtos variados. Eram os anos dourados de Campo Grande, em que a elite da cidade frequentava com fineza os clubes e a cidade era rodeada por chácaras, atualmente novos bairros que foram surgindo.

Com o passar dos anos, o prédio foi caindo no descaso. Nunca recebeu a manutenção devida e, na década de 1990, com a novidade do primeiro shopping center da cidade, deixou de ser o local preferido dos campo-grandenses para os passeios aos fins de semana. Enquanto a cidade se rendeu ao mármore dos banheiros do shopping, a rodoviária começava a experimentar seu desprestígio.

Atualmente, em dissabor, a antiga rodoviária é cenário dos que procuram profissionais do sexo. Os hotéis e pousadas das imediações, que serviam de suporte aos viajantes, sobrevivem fazendo as vezes de motel. As ruas das imediações são tomadas por dezenas de dependentes químicos e o consumo e venda de drogas ocorre a céu aberto. É como uma equação que não fecha em uma complexa equação matemática. A antiga rodoviária é como o retrato de Dorian Gray, enquanto a cidade, que cresceu para outras direções, encarna o papel do dândi no clássico de Oscar Wilde.

Haverá esperança para o prédio que já abrigou o maior centro comercial de Campo Grande?
As sacadas generosas oferecem uma vista interessante da cidade, mas seguem vazias | Foto: Guilherme Cavalcante | Midiamax

Resistência

No entanto, a antiga rodoviária é muito mais que um depósito da decadência pela qual passa a cidade que cresce linda após um tipo de trincheira do esquecimento. Além dos invisíveis que são empurrados para baixo do tapete, lá ainda resistem poucos lojistas, que depositam confiança de que os podem mudar de direção. O projeto de revitalização do Centro, aprovado em 2009, foi um dos apoios ao qual herdeiros e proprietários de salas no local se apegaram. Mas o projeto demora a sair do papel, não se sabe como a região será afetada – pode até ser uma catástrofe aos moldes da Orla Ferroviária – e a região continua esquecida.

Diversos agentes culturais da cidade também articularam movimentações no lugar. O objetivo era promover a ocupação do prédio, de forma que ele voltasse a ser prestigiado. O projeto Luz na Rodô movimentou muitas festas e eventos culturais, com público interessante, mas o movimento perdeu força e ainda não se manifestou diante do fechamento das lojas.

Na noite da última segunda-feira, o corpo de bombeiros efetuou nova vistoria no local, a pedido da administração do prédio. Nada mudou, a antiga rodoviária deverá ser fechada às 9h. Comerciantes não poderão abrir as portas e nem retirar mercadorias sem autorização judicial. Muitos saiam do local com malas repletas de produtos, mas a síndica do prédio convocou quem puder a participar de uma força-tarefa para que as exigências dos bombeiros e do MPE sejam atendidas e nova vistoria possa acontecer. “Será como um dia de feriado, a gente não abre, mas vem trabalhar aqui dentro”, dizia com o rosto visivelmente abatido Rosane Nely Lima, administradora.

Paredes que falam

Na antiga rodoviária, as paredes são história. Não têm ouvidos, mas falam por meio das diversas placas com nomes de estabelecimentos desativados, ou de ‘aluga-se' e vende-se'. Elas acolhem a poeira do quase não visitado segundo pavimento e denunciam que há muito tempo ninguém quer passar por ali. O outrora suntuoso Cine Center, que já foi transformado até num cinema pornô, tem vidros quebrados e portas fechadas. Em nada, a não ser pelo nome, lembra o que já foi. Pôsteres denunciam a decadente função, quando a entrada para menores de 18 anos era proibida. Em todo o andar, há um silêncio sepulcral que toma contraste com frisson ocorrido há 39 anos.

Da generosa sacada, é possível observar uma vista simpática da cidade, com os prédios suntuosos da Avenida Afonso Pena, que parecem rir de longe do estado da antiga rodoviária. O sol já brilha e esquenta, mesmo com a manhã de chuva e temperatura amena. Nos corredores, entretanto, o prédio chora. Literalmente. Há goteiras por toda parte e o piso está alagado. Latas de tinta vazias ajudam nos locais onde a situação é mais grave. É como se o telhado já quase inexistente expressasse sua tristeza com o descaso generalizado e sintomático com as regiões abandonadas da cidade, separadas por uma trincheira, onde o ‘progresso' não deu bom dia.

Haverá esperança para o prédio que já abrigou o maior centro comercial de Campo Grande?
Em umas há cores, em outras, placas de venda e aluguel. É assim que as paredes falam na antiga rodoviária | Foto: Guilherme Cavalcante | Midiamax

Vistas cerradas e medo

Na segunda, após as primeiras matérias sobre o fechamento do Terminal do Oeste, em que comerciantes tagarelaram o infortúnio que vivem, houve uma espécie de decisão coletiva pelo silêncio. Ninguém quis falar com a reportagem e os poucos que aceitaram pediram a não identificação. Tinham receio de que o que dissessem pudesse piorar mais ainda a situação. Estavam tensos, desgostosos.

“Não sei o que fazer… Se levo minhas coisas ou se coloco uma placa na porta com meu telefone. Estou aqui há mais de 20 anos, sobrevivo disso. Não sei se tenho força para recomeçar”, lamentou uma comerciante que nem o nome quis dizer. Perguntei se tinha medo e ela disse que sim. Mas não sabia dizer de que. “Acho que tem gente grande interessada que isso aqui não dê certo. Nada explica esse abandono. Vou tirar toda minha mercadoria, porque os ‘drogados' vão invadir isso aqui, você vai ver”, disse outro lojista.

Passear pelos corredores com caneta e um bloco de papel denunciou quase que imediatamente minha atividade como jornalista. Além da prostituta simpática, também fui recebido com vistas cerradas, desconfiança e uma sutil hostilidade. “Vai escrever que aqui só tem drogado e prostituta? Assim ninguém vai querer vir”. Neguei. Prometi uma matéria humana, e disse a verdade: estava ali para me despedir. Tantos anos em Campo Grande e tão poucas visitas a um lugar tão rico de história… Escrevo para me redimir, para que, por meio da leitura, as pessoas aceitem que todos têm culpa no destino nebuloso do prédio.

Fim da e uma clara conclusão. O crescimento da cidade decidiu esquecer das pessoas que ali estão neste momento, talvez, desacreditadas, soltando lágrimas pelo incerto, pelos sonhos que desabaram. Se há esperança para o prédio da antiga rodoviária? Torço que sim. Espero que essa mensagem deixada numa lixeira vandalizada faça algum sentido. Logo menos, às 9h, o prédio encerrará as atividades e fechará as portas. “Ainda há tempo”, diz na lixeira. Haverá?