Sandra Silva gosta de dizer que os anos na prisão, apesar de todos os percalços, mudaram sua vida para melhor. Foi através de projetos e pessoas dentro do local que ela conseguiu qualificação profissional e um emprego de costureira na ONG Tem Quem Queira, que funciona apenas com mão de obra prisional, confeccionando bolsas a partir de lonas usadas em eventos.

Hoje, em regime semiaberto, não se arrepende das escolhas que fez. “É o que é. As condições na prisão são horríveis, mas hoje tenho uma formação, uma profissão e posso criar meus filhos com dignidade, sem ter vergonha do que eu passei. Se isto não tivesse acontecido, com certeza ainda seria aquela jovem ‘sem nada na cabeça’”, conta.

Condenada a mais de sete anos de reclusão por tráfico de drogas, seus planos agora são terminar os estudos – ela parou no quarto ano do ensino fundamental – e voltar a morar com os filhos, de 8 e 6 anos, que deixou para trás quando ainda eram bebês. “O mais novo não me reconheceu direito quando eu fui visitá-lo, assim que passei pro semiaberto. Mas, graças a Deus, isso passou. Hoje em dia, toda vez que dá a hora para eu voltar ao presídio, ele chora, fica triste. Dá pena, mas fazer o quê? Tenho que ir”, lembra, enquanto examina lonas para uma nova bolsa.

A história de Sandra não é comum. O Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo e, dos mais de 500 mil reclusos, são poucos os que conseguem reinserção na sociedade. As taxas de reincidência são altas e, segundo especialistas, muito por conta da falta de oportunidades de qualificação e emprego dentro e fora da prisão. Em entrevista a BBC Brasil, o holândes Matti Joutsen, diretor do Instituto Europeu para Prevenção e Controle ao Crime (Heuni), órgão consultivo da ONU, questiona as políticas do governo brasileiro para reinserção na sociedade.

“Como você ensina uma profissão a uma pessoa, provê educação básica, promove valores básicos e prepara ela para voltar à comunidade em liberdade, pronta para encontrar um emprego, estabelecer uma família, encontrar uma casa e se adequar à sociedade. E quando o governo já tem restrições em seus gastos e não há aparentemente vontade política de gastar os recursos limitados com os prisioneiros?”, questiona.

Reincidência é indicativo de poucas oportunidades

Para o especialista, apenas com políticas de educação, qualificação e acompanhamento será possível diminuir o número de carcerários no país e reduzir as taxas de reincidência, que chegam a 70%, segundo o ex-ministro Cézar Peluso. “O Estado e a sociedade organizada devem criar e fomentar políticas públicas que permitam meios para esse recomeço e, paralelamente, propiciem a conscientização daquele que errou, de modo que caiba a ele entender qual sua função, seus deveres e direitos diante da coletividade na qual passará, novamente, a conviver”, afirmou Peluso.

Sérgio dos Santos sabe bem do que se trata. Atualmente em liberdade, chegou a ser condenado por duas penas de 4 anos, depois de reincidir no mesmo crime, enquanto cumpria o regime semiaberto. Para ele, que hoje é oficial de bombeiro hidráulico e trabalha em uma empresa de engenharia, as oportunidades de estudar e trabalhar, sem preconceitos, foram fundamentais para que recuperasse sua vida. “Minha família fala que eu mudei, hoje tenho a cabeça erguida na hora de ensinar valores para os meus filhos. Aprendi mesmo”, conta, orgulhoso.

Santos fez parte de um dos poucos projetos públicos para egressos, o Começar de Novo, criado e promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O programa, segundo descrição no site oficial, “visa à sensibilização de órgãos públicos e da sociedade civil para que forneçam postos de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário”.

Uma das ferramentas para a promoção de empregos é o Portal de Oportunidades, que cadastra empresas interessadas nesta mão-de-obra. “O que fazemos, com a ajuda de outras instituições, é a intermediação entre quem procura emprego e quem oferece as vagas. Há empresas que colocam a vaga mais para ‘fazer bonito’, mas, no fundo, não contrata. Porém também conseguimos muitos empregos”, afirma Célia Pereira, assistente social e uma das organizadoras do projeto no CNJ do Rio.

Uma das empresas cadastradas é o próprio Tribunal de Justiça (TJ) da cidade. Jaider Coelho, mineiro de 34 anos, não quis contar o motivo por ter sido condenado a uma pena alternativa onde morava, em Juiz de Fora. Massoterapeuta, ele chegou ao Rio em busca de oportunidades e acabou encontrando uma nova formação no Começar de Novo. “Eu fiquei sabendo do projeto, fui selecionado e entrei. Aprendi funções administrativas, que eu adoro e quero continuar fazendo quando sair daqui”, conta.

“Sair dali” é uma das regras do programa. Cada egresso pode trabalhar por, no máximo, 2 anos. Depois, deve deixar a vaga para que a oportunidade chegue a outros ex-detentos. É o que conta Marilena Lemos, assistente social do TJ e uma das entusiastas do projeto. “Temos histórias muito bonitas aqui, de muito sucesso, como do Sérgio”, afirma. O reconhecimento do seu trabalho é visto enquanto caminha pelos corredores do fórum e é cumprimentada por todos os que participam dos projetos sociais organizados por ela.

Mão de obra pouco qualificada atrapalha

O preconceito existe sim, mas uma das principais barreiras para a reinserção social dos egressos é a baixa qualificação de mão de obra e a pouca experiência no mercado de trabalho, principalmente o formal. Uma pesquisa desenvolvida pelos responsáveis do programa, tanto no TJ quanto no CNJ, exemplificam bem este cenário.

No momento da entrevista, quase metade dos candidatos não havia completado o Ensino Fundamental. E menos de 1% frequentou ou terminou qualquer graduação, enquanto 36% não tinham qualquer experiência no mercado de trabalho formal. Além disso, dos 68 candidatos que se registraram à procura de emprego, 41% não compareceram à entrevista.

“Normalmente, estas pessoas não têm altos níveis de instrução e possuem pouca experiência no mercado profissional, não sabem nem como funciona a lógica do mercado. E isso acaba os prejudicando. O que a gente oferece aqui é apoio para os estudos e até o aprendizado de uma ética profissional importante, de chegar na hora, de não enrolar, de fazer o trabalho de maneira correta”, conta Marilena.

Apoio familiar: fundamental

Outra importante aliado na recuperação destes detentos é o apoio familiar. “O que a gente percebe é que, sem este apoio, muitos acabam desistindo, mesmo com as oportunidades na mão. A gente cria, nós mesmos, laços, pois sabemos da importância que é para este trabalhador ter consciência de que sua esposa e seus filhos estão bem e os apoiam. É fundamental que haja esta base em casa”, destaca Marilena.

“Sem eles, não teria conseguido”, confirma Sérgio dos Santos, que agora, se prepara para um curso de formação técnica em uma das melhores instituições do país. “Posso dizer que eles têm orgulho de mim e isso é o mais importante”.