O governo prepara uma ofensiva para titular milhares de ocupações feitas décadas atrás na região amazônica, todas hoje em situação irregular, por meio de sistemas e vistoria a distância. A ação é uma das principais respostas que o vice-presidente Hamilton Mourão pretende dar ao crescimento do desmatamento na região, tema que voltou a ganhar repercussão dentro e fora do País, dada a escalada da devastação na floresta

Sob o argumento de que é difícil punir o responsável pelo desmatamento, porque não se sabe quem é o “dono” da terra, o governo vai acelerar a titulação de propriedades, a partir do cruzamento de uma série de bancos de dados. O jornal O Estado de S. Paulo apurou que um decreto sobre o assunto já foi preparado pelo Ministério da Agricultura e enviado à Casa Civil, para publicação nos próximos dias.

Esse decreto vai regulamentar que as vistorias das terras e o processamento dos dados poderão se basear em sistemas de “sensoriamento remoto”, com apoio de imagens de satélite.

Ao todo, 97,4 mil propriedades com tamanho de até quatro módulos fiscais – o que equivale a, aproximadamente, 280 hectares – terão suas informações analisadas para receber escritura definitiva. Esses imóveis, se somados, atingem área total de 6,374 milhões de hectares. É como se toda a área dos Estados do Rio de Janeiro e Sergipe fossem regularizadas por meio de sistemas, sem vistoria presencial. Pelos dados do governo, esse volume equivale à 40% de toda a área passível de ser regularizada na região.

Foram definidas 13 áreas com maior concentração de propriedades para serem priorizadas. Boa parte dessas áreas está no entorno da rodovia Transamazônica (BR-230), em regiões que concentram queimadas e desmatamento ilegal.

O que o governo quer fazer é usar uma série de bancos de dados disponíveis para filtrar a situação dessas propriedades e, se não for encontrada nenhuma pendência, entregar a escritura. A exigência básica é que o proprietário tinha que estar no local em 2008 ou em anos anteriores.

Esse marco temporal utiliza dados do IBGE para ser comprovado, além de informações dos ocupantes e bases anuais sobre desmatamento, como o Serviço Florestal Brasileiro. A verificação passa por uma série de camadas de análise, como a checagem se a terra requerida está sobreposta a áreas militares, terras indígenas ou quilombolas, unidades de conservação federal, assentamentos do , áreas já embargadas por órgãos federais, região de conflitos agrário ou já cadastrados por meio proprietários. Tudo isso será feito a distância, por meio de imagens de satélite e cruzamento de dados.

Há uma verificação ainda sobre o CPF de quem solicita a terra e se está em situação regular e não apresenta nenhum tipo de pendência. Confirmada a regularidade, a escritura poderá liberada em poucos dias.

A avaliação do governo é que esses casos podem ser acelerados sem necessidade de se mexer nas atuais que tratam do processo de regularização fundiária.

O Palácio do Planalto foi derrotado em sua principal investida sobre o assunto, com a perda de validade da Medida Provisória 910, a chamada “MP da Grilagem”, que caducou em maio e que previa regularização, nos mesmos critérios, para terras com até 15 módulos fiscais. A resistência ambiental no Congresso conseguir segurar o avanço da MP.

Hoje, a cúpula do governo Jair Bolsonaro trabalha para que o conteúdo da medida provisória migre para um projeto de lei (2 633) que tramita no Congresso, mas o entendimento é que, enquanto essa discussão não se desenrola, é possível fazer as titulações em áreas menores, sem alteração legal.

A base legal a qual o governo se refere é a Lei 11.952, editada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2009, a lei que implementou o programa Terra Legal e que Bolsonaro pretendia alterar, por meio da MP 910, que caducou. A regularização a distância tem como alvo as ocupações feitas por colonos até 2008 ou antes, e não projetos assentamentos tratados pelo Incra.

A lei do Terra Legal permitia a vistoria a distância em propriedades de até quatro módulos fiscais, mas o governo entende o novo decreto é necessário para regulamentar pontos em aberto desta lei, como o uso do sensoriamento remoto como plataforma para análise das informações.

Na semana passada, o vice-presidente Hamilton Mourão, pressionado pelos índices recordes de desmatamento na , chegou a declarar que o governo vai realizar uma ação de regularização fundiária na região antes mesmo da mudança na lei sobre o tema, em discussão no Congresso Nacional.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal, coordenado por Mourão, deve discutir o assunto nesta quarta-feira, 15, em reunião em . “É uma linha de ação inicial para regularização fundiária com os meios disponíveis. Mesmo sem aprovação do PL, temos algumas áreas que a gente pode avançar e resolver o problema das pessoas que estão lá”, disse Mourão, na ocasião.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, diz que a medida vai ajudar a combater o desmatamento. “Como fiscalizar e autuar um crime se não temos como apontar o responsável por ele? Com a titulação da terra, isso está resolvido”, afirmou.

Para a pesquisadora do instituto Imazon, Brenda Brito, especialista no tema, há fragilidades no processo de regularização. “É comum, na Amazônia, pessoas fazerem o fracionamento de grandes áreas, com o uso de outras pessoas como laranjas, para apresentar posses de até quatro módulos. Uma vistoria remota não consegue captar isso, por exemplo”, comentou Brenda.

Ela chama a atenção que, no ano passado, as regularizações de terras praticamente pararam. Entre 2009 e 2018, a média anual de regularizações de terras foi de 3 mil propriedades. “As informações que recebi do Incra, por meio da Lei de Acesso, é que ocorreram seis regularizações no ano passado”, disse a especialista do Instituto Amazon.

Ambientalistas entendem que há necessidade de enfrentar o problema da situação fundiária na Amazônia, mas que o governo tem a intenção de dar um tipo de salvo conduto para a grilagem de terras, principalmente no momento em que pretende estender a vistoria a distância para propriedades maiores que quatro módulos fiscais.