A Justiça Federal considerou inconstitucional uma lei de Ladário –a 419 km de Campo Grande– que, em 2020, suspendeu a cobrança de empréstimos consignados de servidores municipais. Proposta pelo prefeito Iranil Soares (DEM), a norma barrou a cobrança por 90 dias para “dar fôlego” ao funcionalismo na de Covid-19.

Conforme divulgado à época pela Prefeitura de , a proposta chegou à Câmara Municipal em 16 de abril de 2020 e teve aprovação já no dia seguinte. Ela previu a “suspensão dos cumprimentos financeiros referentes aos empréstimos consignados efetuados pelos servidores municipais”.

A suspensão seria “pelo tempo necessário ao restabelecimento a normalidade”. Contudo, o texto previa a paralisação nos pagamentos por 90 dias, prorrogáveis por igual período “ou enquanto durar os efeitos da pandemia”. Com tal redação, em regime de urgência especial, o texto se tornou a Lei Complementar Municipal 125/2020.

Pandemia levou à suspensão do pagamento de consignados

“O presente projeto é resultado direto dos efeitos sofridos pela Pandemia do Covid-19 na vida das pessoas. O que causou o agravamento do sacrifício financeiro a todos. Altas de preços, aumento na demanda de produtos de higiene, pessoas ficando mais dentro de suas casas, gerando assim maior consumo de alimentos e a inflação do mês de março que impactou diretamente a saúde financeira da população, são os norteadores de nossas ações perante nossos servidores”, justificou Iranil.

“Desta forma, os servidores municipais poderão utilizar os recursos que anteriormente seriam destinados ao pagamento de empréstimos consignados para a aquisição de itens obrigatórios para a sobrevivência e necessários para a qualidade de vida”, prosseguiu o prefeito Iranil. As parcelas sem pagamento seriam acrescidas ao final dos contratos, sem juros ou multa, conforme a lei.

Banco cobrou empréstimo diretamente de servidores

Contudo, o não seguiu a lei e o caso chegou à Justiça Estadual e, em 2022, à 1.ª Vara Federal de Corumbá. Em ação civil pública, a informou que a instituição financeira cobrou os consignados diretamente na conta-corrente dos servidores. Além disso, alegou que a norma, benéfica ao consumidor, integraria o microssistema de defesa do consumidor.

Assim, a prefeitura apontou que o Banco do Brasil violou norma de proteção ao consumidor e apontou dano moral coletivo. Pela ação, pretendia que os descontos deixassem de ocorrer e os nomes dos servidores não parassem nos órgãos de proteção ao crédito. Além disso, pleiteou a devolução dos valores cobrados.

Prefeito Iranil previa fôlego para servidor com suspensão do pagamento de consignados (PML, Divulgação)
Prefeito Iranil previa fôlego para servidor com suspensão do pagamento de consignados (PML, Divulgação)

Pedido liminar acabou indeferido. Em contestação, o Banco do Brasil apontou que a lei de Ladário é inconstitucional. Isso porque ela tratava de matéria que não era de competência da prefeitura. A Justiça Estadual remeteu a ação para a Justiça Federal, diante do interesse da União –sócia do Banco do Brasil– na causa. Já o Ministério Público Federal foi contra a pretensão da prefeitura.

Lei invadiu competência privativa da União, aponta juiz

O juiz substituto Daniel Chiaretti pontou que o cerne da questão é a inconstitucionalidade da lei complementar municipal 125/2020 e seus efeitos. Para ele, houve “inconstitucionalidade forma subjetiva” na aprovação da legislação.

Isso porque, com a lei, não se seguiu normas que distribuem competência legislativa entre as unidades da federação. No caso, o artigo 22 da Constituição Federal prevê que cabe “privativamente à União” legislar sobre direito civil e políticas de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores. Isso só caberia aos Estados, mas por meio de lei complementar.

“Ao suspender a exigibilidade da obrigação dentro da noventena legal, inegável que o Município de Ladário interferiu diretamente no conteúdo do contrato de empréstimo consignado celebrado entre as partes, isto é, invadiu o regime de direitos e obrigações assumidos livremente no contexto da relação jurídica celebrada entre terceiros, matéria que somente pode ser tratada pela União, por versar sobre direito civil”, anotou o juiz.

“O só fato de ser responsável pela retenção dos valores do empréstimo na folha de pagamento, com o respectivo repasse ao credor, não lhe autoriza a ingerir no destino do numerário que não integra seu patrimônio jurídico e tampouco está sob o seu domínio direito e imediato”, prosseguiu.

Medida interferiu em obrigação de relação jurídica

Ainda de acordo com o juiz, “ao contrário do que alega a parte autora, não se trata de norma de proteção ao consumidor, a permitir a atuação do legislador local, porquanto interfere no núcleo dos direitos e obrigações de relação jurídica alheia, que somente integra na qualidade de intermediador do repasse das prestações contraídas pelo mutuário”.

Chiaretti citou decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) que seguem nessa direção. “Os precedentes da Corte Suprema tornam claro a impossibilidade de o legislador municipal legislar sobre a suspensão da exigibilidade das prestações de empréstimo consignado contraído por servidor, por usurpar a competência da União para legislar sobre direito civil e política de crédito”.

Além disso, advertiu que, “ao afastar o cômputo dos juros e demais multas, flagrante a invasão da política de crédito instituída em âmbito nacional, subvertendo o caráter uniforme que se lhe deve imprimir o legislador nacional por intermédio do sistema financeiro nacional”.

Assim, diante da atribuição judicial de controle difuso da constitucionalidade, o juiz declarou a inconstitucionalidade da Lei Complementar Municipal 125/2020. Além disso, afastou conduta ilícita do Banco do Brasil por não seguir a norma, “por se tratar de vício portador de nulidade absoluta”. Por fim, atestou que a cobrança nas contas-correntes seguia o previsto em contratos. Cabe recurso.