A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Esse e mais tantos questionamentos são postos em evidência na série “Maid”, lançada recentemente pela e que faz os telespectadores questionarem o que, de fato, é considerado um relacionamento abusivo dentro de uma esfera social que tange a vida da principal vítima de toda essa história: a mulher. Muito mais do que apenas uma superprodução norte-americana, a trama representa a realidade de milhões de brasileiras que buscam refúgio e suporte após algum episódio de violência doméstica. Em um Estado onde o alto índice de feminicídio revela um cenário tenebroso para a segurança das mulheres, a série “Maid” é fundamental para entender que o pior nível de violência de gênero começa com pequenos ruídos ocultos nas paredes das casas sul-mato-grossenses.

Mas antes da gente abordar esse paralelo, é importante entender a mensagem que a série busca retratar. Vale ressaltar que essa matéria não é 100% livre de spoiler, apesar de todas as informações serem de cunho informativo para contextualizar o leitor sobre a narrativa. Mas, se mesmo assim você não se sente seguro(a) para continuar, indico que deixe a leitura de lado por algum tempo e retome novamente quando estiver com a série em dia. Vamos lá?

Sobre o que a série Maid aborda?

“Maid”, a grande nova aposta da Netflix, é baseada em fatos reais e vem despertando críticas positivas de quem assiste por ser um tema muito recorrente na sociedade. Cheia de lições poderosas, a série gira em torno da protagonista Alex (Margaret Qualley), uma mãe jovem, disposta a tudo para se livrar de um relacionamento abusivo e criar a filha Maddy (Rylea Nevaeh Whittet) longe do terror que vivenciava.

Série Maid
Sean (Nick Robinson) é um abusador na série “Maid” (Foto: Reprodução/Netflix)

Na intenção de conseguir criar a filha e construir um futuro melhor, Alex foge de Sean (Nick Robinson), ex-namorado que praticou diversas violências contra ela, ao mesmo tempo em que procura pela mãe desaparecida, conseguindo abrigo em um local para jovens vítimas de abuso. No decorrer, verdades avassaladoras sobre a violência doméstica vem à tona. A violência doméstica, infelizmente, é a realidade de muitas mulheres no Brasil.

“Maid” aborda o tema através de Alex e Sean e ainda escancara uma verdade que há muito tempo era ignorada: não é preciso que exista agressão física para que ocorra violência doméstica. O parceiro de Alex, por exemplo, ainda que não tenha encostado nela diretamente, praticou vários episódios de agressão psicológica.

É nesse cenário que a trama se desenvolve, mostrando as dificuldades de Alex na hora de ser acolhida pelo Estado e pelo Tribunal na hora de provar que foi uma vítima, mesmo sem ter “apanhado”. Parece absurdo, né? Mas vale lembrar que é um tema discutido há anos por cientistas sociais e líderes de movimentos feministas. Tanto é que, no Brasil, um país altamente violento contra as mulheres, a violência psicológica virou crime há poucos meses. Assunto que você vai entender mais abaixo.

Realidade em Mato Grosso do Sul

Como introduzido no início do texto, Mato Grosso do Sul é um dos Estados brasileiros onde se registram maiores índices de feminicídio. E, como todo mundo sabe, o assassinato de mulheres no âmbito domiciliar é apenas o estopim de anos de violências praticadas por parceiros. Elas começam silenciosas e acabam da pior forma.

DEAM
Campo Grande foi a cidade de MS que mais registrou feminicídio em 2020 (Foto: Arquivo/Midiamax)

Os números estão aí para provar. Em 2020, ano em que começou a pandemia de Covid-19 no Brasil e os casos se alastraram em território regional, as medidas de segurança mantiveram as mulheres isoladas com seus respectivos parceiros.

Embora essas medidas tenham sido extremamente importantes e necessárias, a situação de isolamento domiciliar trouxe reflexos muito cruéis para mulheres que viviam em situação de violência doméstica, pois além de estarem afastadas da rede de apoio e obrigadas a permanecerem em casa com seus agressores, encontraram maiores barreiras no acesso às denúncias e aos órgãos de atendimento. Foi o que alegou o Mapa do Feminicídio, desenvolvido pelo Governo de Mato Grosso do Sul. Ao todo, o crime teve aumento de 33,33% em 2020 em comparação a 2019.

A maior variação foi em Campo Grande: mais de 120%, a DEAM registrou 12 feminicídios em 2020, contra 5 em 2019. Dos 40 feminicídios analisados, 28 ocorreram nos municípios do interior, o que corresponde a 70%. Além disso, os dados da pesquisa mostram que dos 79 municípios sul-mato-grossenses, 56 já registraram ao menos um feminicídio no período de 2015 a 2020. 

Feminicídio em MS
Dados de feminicidio em 2020 no Estado (Foto: Mapa do Feminicídio/Gov MS)

 

Outras violências também foram amplamente registrados no ano passado:

  • Feminicídio: 40 mulheres foram mortas por seus respectivos parceiros e 66 sobreviveram. Das 40 mulheres mortas, 30 eram mães;
  • Estupros: 1.424 mulheres registraram BO por estupro, uma média superior a 118 BOs por mês;
  • Violência doméstica: 17.286 mulheres registraram BO de violência doméstica e familiar. Por dia, mais de 47 mulheres procuraram uma Delegacia de Polícia no Estado, segundo estudos. Veja:
Violência doméstica MS
Violência doméstica em MS (Foto: Mapa do Feminicídio/Gov MS)

 

Os dados são alarmantes, mas vale ressaltar que mesmo em um ano atípico quando o número de denúncias reduziu por conta do isolamento social e dificuldades de contato com as autoridades de segurança, o índice desses crimes em Mato Grosso do Sul permaneceu alto. Mas afinal, onde a violência psicológica – o tema principal de “Maid” – entra nesse contexto regional? A gente te explica.

Violência psicológica: um longo caminho até virar crime

A Lei 14.188/2021, que foi publicada e promulgada em julho de 2021, trouxe algumas inovações legislativas no combate à violência contra mulher, entre elas a criação do Programa Sinal Vermelho, que configurou no aumento de pena no crime de lesão corporal contra mulher, por razões da condição de sexo feminino, e, enfim, a criação do tipo penal de violência psicológica contra mulher.

De acordo com a Ana Noriler da Silva Carneiro, 32 anos, delegada de polícia na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), o início da violência doméstica e familiar contra a mulher geralmente se complementa com a violência psicológica, sendo cada vez mais frequentes os casos envolvendo esse tipo de crime em território regional.

Antes da vigência da Lei 14.188/21, a violência psicológica estava inserida nos delitos contra a honra ou ameaças. Após a alteração, o novo artigo no Código Penal diz que o ato consiste em:

“Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação, com pena de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.”

De acordo com os dados da delegacia que atua em Campo Grande, foram registradas 17 ocorrências do delito de violência psicológica contra mulher após a vigência da Lei. Desse total, até o momento, um autor foi preso em flagrante na Capital. Assim, os principais casos que chegam à DEAM são de humilhações, desrespeito a mulher, manipulações, ações que visam prejudicar e perturbar o emocional das vítimas. A inclusão da violência psicológica contra a mulher como crime é considerada um avanço para as autoridades. 

“Muitas das vezes nos deparávamos com situações em que a mulher era tratada como objeto do homem a quem detinha o poder de humilhar, de constranger e perturbar, no entanto tais condutas não se enquadram nos tipos penais existentes e com isso a sensação de insegurança tomava conta da seara psicológica da mulher que não via uma saída para sua situação. Hoje, a partir de qualquer ato que importe tal violação, a mulher está amparada legalmente, podendo se dirigir a uma Delegacia de Polícia e registrar uma ocorrência policial bem como solicitar uma medida protetiva de urgência”, afirmou a delegada.

DEAM funcionamento
A DEAM funciona funciona 24 horas por dia durante a semana (Foto: Arquivo/Midiamax)

Se “Maid” acontecesse no Brasil, Alex estaria amplamente amparada pelas instituições legais. Falando nelas, inclusive, foi com o apoio das ações do governo que a protagonista conseguiu se livrar das antigas amarras do relacionamento abusivo. No entanto, vale ressaltar que ela teve que percorrer um longo caminho para conquistar serviços que a ajudassem a retomar a independência, como auxílios financeiros, creches para a filha e assim por diante.

E é justamente nesse cenário que a Casa da Mulher Brasileira – instituição especializada no atendimento de violência doméstica contra mulheres em Mato Grosso do Sul é referência no Brasil inteiro – também atua. Lá são oferecidos diversos serviços como atendimento psicossocial, alojamento de passagem, encaminhamento a de emprego, serviços de assistência social e brinquedoteca para crianças. 

Estão localizadas dentro da Casa: 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, DEAM, Ministério Público e Defensoria Pública. Assim, em um único ambiente, a vítima consegue ser atendida em todas as demandas necessárias a partir do momento em que ela sai de casa.

Outras ações que amparam vítimas de violência doméstica em MS

  • Medida protetiva online

Vítimas de violência doméstica podem pedir medidas protetivas pela internet. A mulher que for vítima desse tipo de violência e deseja denunciar seu abusador deve preencher o formulário de avaliação de risco no site do Tribunal de Justiça (https://sistemas.tjms.jus.br/medidaProtetiva/), no local destinado à solicitação de medidas protetivas de urgência e o pedido será encaminhado para análise do juízo da Vara de Medidas Protetivas: simples, rápido e de fácil acesso a todos.

  • Acompanhamento psicossocial

A Casa da Mulher Brasileira, por meio do Serviço Psicossocial Continuado (Conti), oferece suporte e auxílio para mulheres vítimas de violência doméstica superarem o trauma sofrido e resgatarem a sua autoestima e autonomia financeira.

No local, é realizado o acompanhamento com atendimento oferecido durante a denúncia, monitorando o caso até que a assistida tenha sua autonomia emocional e financeira para seguir em frente.

As vítimas são acompanhadas através de visitas domiciliares, monitoramento via telefone e contatos institucionais dentro e fora da Casa da Mulher Brasileira.

  • Auxílio aluguel

Foi sancionado pela Prefeitura de Campo Grande lei que prevê concessão de auxílio-aluguel às mulheres em situação de violência doméstica e familiar no início deste ano. A medida prevê a possibilidade do pagamento e será regulamentada.

 O auxílio será previsto para mulheres que possuem medida protetiva, mas também àquelas que, pelas circunstância de violência e risco, foram obrigadas a deixar a moradia, com ou sem dependentes, após passar por análise técnica qualificada. 

O recurso poderá ser concedido para família com renda mensal de até três salários mínimos, pelo prazo de até 12 meses, podendo ser prorrogado. A lei aponta a permissão para criação do auxílio, ainda sem detalhes da execução.

Vale ressaltar que essas e outras assistências podem ser conferidas com as autoridades de segurança, como a Casa da Mulher Brasileira, para o encaminhamento adequado da vítima.

Casa da Mulher Brasileira
Casa da Mulher Brasileira é o principal ponto de acolhimento de vítimas de violência doméstica em Campo Grande (Foto: Arquivo/Midiamax)

 

Paralelo entre a vida e a arte

Apesar de “Maid” ser uma obra fictícia, a própria criadora Molly Smith Metzler afirmou que a trama foi baseada em fatos reais. Além disso, não é preciso ir muito longe para perceber que os assuntos abordados, como violência doméstica, relacionamentos abusivos, alcoolismo e tantos outros, não ficam restritos somente às telas.

Dentre inúmeras discussões que a obra pode proporcionar, destaco aqui a importância de uma rede de apoio para acolher mulheres que sofreram violência. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, o Estado oferece várias iniciativas – diretas e indiretas – para amparar essas vítimas como você viu acima. Outro fator fundamental é entender que, cada vez mais, assuntos como esses estão sendo abordados na mídia a fim de promover maior conscientização. 

Partindo desse princípio, a série “Maid” pode servir de ponto de partida para que muitas mulheres se sintam encorajadas a buscarem ajuda. Até porque, como aqui não é conto de fadas ou ficção, nem todas as mulheres têm o mesmo final feliz que a protagonista, então é importante quebrar ciclos tóxicos o quanto antes. Em Campo Grande, são vários os espaços especializados em ouvir essas pessoas.

Assim, o MidiaMAIS encerra essa análise com o veredito final: todas as mulheres e todos os homens deveriam assistir “Maid” para que, quem sabe, ela consiga sensibilizar ainda mais pessoas e trazer à tona a conscientização de que o controle, o soco na parede, a ameaça e o medo se configuram, sim, como violência psicológica. Agora, esse tipo de atitude no Brasil é crime e resulta em cadeia (viva!). Mais do que isso, inclusive, a obra da Netflix promove uma grande reflexão social ao oportunizar que classes mais desprovidas de informação consigam entender o que é e como se configura a violência doméstica. A informação traz conhecimento e, respectivamente, a ação.

Denuncie

A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher-DEAM funciona 24 horas por dia, sete dias da semana, situada na Casa da Mulher Brasileira na Rua Brasília 85 Jardim Imá em Campo Grande -MS.  

 Em casos de urgência, ligue no 190 e acione a Polícia Militar. Em casos de denúncias anônimas, ligue 180.