Funcionários públicos podem ser demitidos mesmo sem “justa causa”

Funcionários do governo também podem perder a vaga que ocupam

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Funcionários do governo também podem perder a vaga que ocupam

Em meio ao quadro de constante fechamento de vagas de emprego formais, com a persistência da recessão, é compreensível que a estabilidade do serviço público tenha cada vez mais apelo para os brasileiros. O que nem todos sabem é que tal garantia é relativa: funcionários do governo também correm o risco de perder a vaga que ocupam. E isso pode acontecer mesmo sem o que se chama de “justa causa”, quando há um procedimento de afronta ou claramente irregular.

“As pessoas enxergam a estabilidade como uma garantia quase insuperável. Mas não é bem assim”, alerta o advogado especialista em serviço público Márcio Sequeira, sócio-diretor da PPCS Advogados. A Constituição Federal prevê três situações para que o funcionário perca o cargo: após sentença judicial transitada em julgado, por processo administrativo ou, ainda, por insuficiência de desempenho — possibilidade que foi incluída pela emenda nº 19, de 1998. “Isso pode ocorrer em decorrência de grande insatisfação social com a prestação de serviços públicos”, afirma a advogada trabalhista Silvia Seabra de Carvalho, do escritório Advocacia Maciel.

Na prática, essa possibilidade só tem sido aplicada aos servidores que ainda estão em estágio probatório — ou seja, nos primeiros três anos depois de empossados, quando precisam ser obrigatoriamente avaliados pela chefia. Nesse caso, para mandar um servidor embora, o superior hierárquico precisa seguir um processo administrativo criterioso e garantir a ampla defesa do subordinado.

Se ele for estável, no entanto, o procedimento muda de figura. Nessa situação, não é viável demiti-lo sob a justificativa de desempenho abaixo do esperado, apesar de constitucionalmente aceito, por falta de uma lei complementar que explique os critérios desse tipo de demissão. “A emenda que incluiu essa possibilidade deixou claro que é preciso, para isso, seguir um procedimento de avaliação de desempenho, que deve ser instituído por uma lei complementar”, explica Sequeira. Quase 20 anos depois de sancionada a emenda, essa legislação ainda não existe.

Por falta de respaldo legal, a conclusão de muitos chefes é que, na maioria das vezes, não vale a pena demitir com essa justificativa, explica o professor de direito público Carlos Ari Sundfeld, da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Se o fizerem, há grandes chances de o processo de demissão ser revertido no Judiciário”, comenta. Relatório da Corregedoria Geral da União (CGU) aponta que pouco mais de 5 mil funcionários públicos do Executivo Federal — que inclui servidores da Presidência da República, da CGU e dos ministérios — foram demitidos nos últimos 13 anos.

Contraste

Em empresas privadas, é outra história. Só nos últimos 12 meses, foram registradas 1,6 milhão de demissões, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número de sanções é muito menor na administração pública porque demitir, nessa esfera, é visto como punição. “É mais difícil demitir na administração pública. A iniciativa privada, mesmo nas empresas com processo de seleção, pode demitir por perda de mercado, ou inadequação do funcionário no serviço ou redução de gastos, por exemplo, sem necessidade de procedimento administrativo. Não precisa garantir a defesa da pessoa, o que é obrigatório no serviço público”, afirma Sequeira, da PPCS Advogados.

Qualquer processo que a pessoa sofrer na administração pública necessariamente precisa respeitar contraditório e ampla defesa. Mesmo se for suspensão ou advertência, explica Sequeira. “O processo tem que ser muito bem instruído para provar o que aconteceu. Dependendo da situação, o servidor recorre na Justiça”, diz.

Quando isso acontece, a chance de a demissão ser revertida é, segundo o professor Carlos Ari Sundfeld, da FGV, “muito alta”. “O Judiciário é muito sensível a essas questões, tem uma certa tendência a olhar os casos com desconfiança. Há medo de que haja perseguições, porque esse tipo de demissão não é comum”, destaca.

Muitos dos demitidos voltam à ativa. Em 2015, 3,7% dos servidores desligados do cargo no Executivo Federal foram reintegrados ao quadro de pessoal, número que corresponde a 20 dos 541 que perderam o emprego. Na Presidência da República, esse índice chegou a 21,4% — ou seja, mais de um quinto dos funcionários expulsos no ano passado voltaram a exercer as atividades.

O resultado, segundo Sundfeld, é “desastroso” para a administração pública: caso reverta a demissão, é como se o servidor nunca tivesse saído. Ou seja, ele recebe todos os salários do período em que esteve afastado. “Com esse risco alto, o órgão não apenas não retira o servidor ruim como ainda tem que pagar caro por ele”, ressalta o professor. Conviver com funcionário reintegrado, depois, seria ainda mais desagradável.

Por haver poucos incentivos para fazer processos disciplinares passíveis de demissão — e grande chance de que os demitidos retornem —, esse tipo de processo acontece pouco. “Quando são problemas menores, que pudessem ser punidos com demissão, a tendência é nem abrir o processo. Fazem mais em casos de corrupção ou problemas muito graves, que são mais difíceis de serem revertidos”, resume Sundfeld. Segundo a CGU, os motivos mais frequentes para demitir um funcionário são corrupção, em 65,4% dos casos, e abandono de cargo, inassiduidade ou acumulação ilícita de cargos, em 24%.

Para o advogado Márcio Sequeira, a possibilidade de exoneração do servidor por não ter cumprido os critérios da avaliação periódica, mesmo depois do estágio probatório, é muito positiva. Ele acredita que a norma precisa ser regulamentada o quanto antes. “Entendo essa previsão constitucional como uma evolução. O servidor público concursado tem que continuar se esforçando ao longo do tempo de trabalho. Não pode achar que, por ter passado no concurso, adquiriu a estabilidade. Ser demitido é uma punição por não ter cumprido com os requisitos, por não prestar um serviço decente ao público”, explica.

Acomodação

Sundfeld, da FGV, também acredita que o processo administrativo visando a demissão deve ser aplicado a servidores estáveis. Ele acrescenta que, sabendo que a possibilidade de isso acontecer é praticamente nula, alguns servidores se acomodam e passam a demonstrar desempenho abaixo do esperado com o passar dos anos. “Acabam deixando de se esforçar. Passam a fazer o trabalho de qualquer jeito e a chegar com atraso, porque não acreditam que serão punidos por isso”, explica.

Para Washington Barbosa, especialista em direito empresarial do Ibmec, a justificativa de falta de lei complementar para deixar de aplicar o preceito constitucional que permite a demissão por insuficiência de desempenho não se sustenta. “A lei que rege o funcionalismo público (Lei 8.112/90) já prevê que pode haver demissão em 13 situações. Entre elas, está bem clara a possibilidade de demitir porque a pessoa não cumpre com as funções esperadas. Não precisa de lei complementar para isso”, explica.
 

A lei citada por ele torna possível a demissão de servidores que “procederem de forma desidiosa”, ou seja, com negligência ou desleixo no trabalho. Esse foi o motivo de 166 demissões feitas nos últimos 13 anos no Executivo Federal, segundo a CGU. Apesar de ter sido o terceiro mais alegado, é um número baixo, no entender dop professor dp Ibmec. “Existe uma falta de vontade, não de ferramentas”, declara ele, que define a situação como “um pacto da mediocridade”: os chefes fingem que avaliam e os servidores fingem que são avaliados.

“Temos que começar a cobrar dos administradores uma avaliação adequada, que não dê margem para o medo da judicialização”, acredita Barbosa. Mas mudar para um sistema no qual os colegas avaliam os outros, para ele, não resolveria o problema. “Na administração pública, um servidor não é chefe, ele está chefe. Há uma rotatividade muito grande. Amanhã, o subordinado pode assumir a chefia”, explica.

A inconstância causa temor de ser rigoroso e a consequente leniência. “O serviço público é uma roda gigante. Quem está em cima hoje e avalia mal o subordinado, depois estará embaixo e será mal avaliado por essa mesma pessoa por motivos que não se justificam. Se os critérios de avaliação forem subjetivos, invalidam o processo todo”, acrescenta o professor Jorge Pinho, da UnB. Ele acredita que, para que as avaliações sejam eficientes, é preciso revisar todo o sistema. “Os meios de avaliação adotados hoje pelos órgãos públicos não servem para absolutamente nada”, critica.