As investigações sobre uma rede de espionagem clandestina que envolveu servidores da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) durante o mandato de Jair Messias Bolsonaro (PL) podem implicar um médico de Campo Grande. Ele é pai de um agente da Abin e sócio do filho numa empresa no bairro Monte Líbano que seria usada no suposto esquema de arapongagem ilegal.

O otorrinolaringologista tem escritório no centro da capital de Mato Grosso do Sul, e aparece como sócio-administrador de uma empresa de serviços de tecnologia da informação. O CNPJ, na verdade, teria sido aberto pelo filho do médico, que pertenceu ao alto escalão da Abin no governo Bolsonaro.

O agente é apontado por membros da própria agência como integrante de grupo que cometia ilegalidades por meio de programas de computador usados para espionagem de adversários do então presidente. Segundo as investigações, na lista dos alvos estariam políticos, jornalistas, magistrados e até membros do STF (Supremo Tribunal Federal).

A empresa de consultoria em tecnologia da informação foi criada em 2012. Segundo apurou o Jornal Midiamax, as informações cadastrais na Receita Federal apontam que o médico é sócio-administrador desde 12 de junho de 2013.

A sede da empresa sob suspeita tem endereço em Campo Grande, no bairro Monte Castelo. Nos telefones que constam em cadastros oficiais, a reportagem foi atendida por pessoas que se identificaram como funcionários de um escritório de contabilidade e disseram sequer conhecer sobre a existência do CNPJ.

Apesar de não aparecer mais nos cadastros, o agente da Abin seria o fundador do estabelecimento de inteligência. Assim, servidor público federal ‘contornaria’ a Lei nº 8.112/90, que proíbe os servidores de “participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio”.

Contudo, a regra tem exceção para “qualidade de acionista, cotista ou comanditário”. Ou seja, o agente da Abin poderia participar de sociedade com o pai na empresa de inteligência.

Softwares e arapongagem clandestina

Até o momento, o filho do médico de Campo Grande não está na lista já conhecida de alvos da operação Última Milha, que investiga softwares usados para espionagem clandestina durante a gestão do ex-presidente do Brasil.

Os softwares que seriam usados pelo grupo para espionagem são o FirstMile e o Augury. O possível uso por grupo de dentro da Abin é investigado pela PF (Polícia Federal).

A investigação aponta que as ferramentas teriam sido utilizadas de maneira ilegal para rastrear e monitorar dados de geolocalização de aparelhos celulares. Membros do STF (Supremo Tribunal Federal), jornalistas, advogados e políticos seriam alvo de espionagem.

Produzido por uma empresa israelense, o FirtMile é o principal investigado na operação Última Milha. Em 20 de outubro, dois oficiais da Abin foram presos, outros cinco dirigentes foram afastados da Agência.

Sócio

O pai do agente da Abin tem um consultório com CNPJ registrado em Campo Grande, mas a situação cadastral aponta que a empresa já foi ‘baixada’. O Jornal Midiamax tentou contato pelo telefone cadastrado no escritório de atendimentos do otorrinolaringologista, mas não houve retorno até a publicação desta matéria.

O médico otorrinolaringologista possui ainda outro consultório cadastrado em um site de consultas médicas em Campo Grande. Na recepção do local, a reportagem foi informada de que o médico teria se aposentado há aproximadamente dois anos.

Além da empresa sob suspeita no esquema de arapongagem clandestina, o médico de Campo Grande também aparece como sócio de uma sorveteria aberta em 2020, junto com outros dois proprietários, de mesmo sobrenome.

‘Não virou nem processo’

Em reportagem do The Intercept Brasil, o agente foi questionado sobre a existência da empresa, e se era sócio do CNPJ voltado para serviços de tecnologia em nome do pai, que é médico. Ele rebateu dizendo: “Um médico não pode ter um McDonald’s?”

Além disso, o membro da Abin disse que a existência da empresa já foi alvo de denúncia dentro da Agência. “Não virou nem processo administrativo. Arquivaram por falta de indícios, obviamente”, disse.

Os indícios de participação do funcionário da Abin no grupo de inteligência de espionagem e a existência da empresa foram tema de reportagem do Intercept, publicada nesta semana.

Segundo o Intercept, o número do membro da Abin aparecia em uma das páginas da empresa. Contudo, as páginas oficiais, bem como o site da empresa, foram retirados do ar após a publicação da reportagem que denunciou as suspeitas de vínculo com o suposto esquema de arapongagem ilegal.

Confira na íntegra a nota da defesa

A defesa do servidor da Abin entrou em contato com a reportagem do Jornal Midiamax. Confira a nota na íntegra:

“1 – Ele não trabalha na ABIN;

2 – Ele nunca ocupou qualquer cargo de alto escalão na ABIN, mas tão somente cargos baixos e técnicos de suporte em tecnologia da informação – e não cargos de “espionagem”, como a reportagem faz crer. Nunca ocupou, portanto, gerência, diretoria ou posições altas de comando;

3 – O pai dele nunca foi investigado, nunca respondeu a nenhum tipo de processo e sua empresa nunca foi investigada ou acusada por qualquer tipo de ato ilícito ou imoral. Em hipótese alguma, por nenhum tipo de “arapongagem ilegal”. Esta acusação, além de falsa e leviana, não foi acompanhada de qualquer embasamento, e configura ofensa à honra e à integridade dele e de seu pai;

4 – Não existe e nunca existiu qualquer investigação que aponte-o como integrante do grupo que “cometia ilegalidades” e que “investigava políticos, jornalistas, magistrados e até membros do STF”. Ao contrário, participou de espécie de sindicância no âmbito da ABIN, a qual concluiu que o mesmo não possui e nunca possuiu qualquer envolvimento com estas atividades. Por isso e por várias outras razões é que ele não consta em nenhuma lista de envolvidos;

5 – A empresa, repita-se, não está e nunca esteve sob suspeita qualquer, e ele (funcionário da Abin) sequer figura como sócio da mesma. Ainda que figurasse, consoante exposto em resposta da própria ABIN, em procedimento interno, e em atenção à legislação, ele poderia sim ser sócio de empresas, contanto que não fosse sócio administrador. Ressalta-se que o mesmo nunca desenvolveu qualquer atividade de direção ou comando da empresa, o que sempre ficou a cargo de seu pai, apenas apoiando e tomando decisões técnicas, em horários e de forma que não convergisse com as atividades que desenvolvia na ABIN;

6 – Ele nunca utilizou e nunca teve acesso ao software First Mile, o que já foi e pode ser novamente confirmado pela ABIN. Ainda, nunca “espionou” nenhum indivíduo, não sendo esta sua atribuição. Ele foi apenas consultor técnico, realizando serviços de suporte tecnológico e não de coleta de informação;

7 – Ele está de licença não remunerada desde fevereiro e não possui qualquer relação com os envolvidos em supostas atividades ilegais, nunca tendo respondido nenhum processo administrativo ou judicial.”

*Após a publicação da reportagem, a defesa do servidor da Abin entrou em contato para enviar posicionamento.