É embaixo do pé de manga com os galhos cortados, no quintal da residência no Bairro Tijuca, onde a costureira Ilma Cardoso, de 54 anos, nos recebe às vésperas dos quatro anos da morte de sua caçula, Mayara Amaral. O local é o mesmo, entre uma roseira e o pequeno lago artificial recém-criado para servir de água aos pássaros, em que Mayara tirou sua última foto antes de ser assassinada com oito marteladas na cabeça e ter seu corpo carbonizado na região da cachoeira do Inferninho, na MS-060, pelo então “namoradinho” – como define a mãe – hoje preso por feminicídio, Luís Alberto Bastos Barbosa. No mesmo espaço onde costumavam fazer almoços aos domingos, Mayara tocou sua última música para a mãe, enquanto ela preparava o almoço do dia 23 de julho de 2017.

Um mês após a morte de Mayara, Ilma se separou do então marido, com quem conviveu durante 33 anos. Entre as cidades que passaram, Mayara nasceu em Sete Quedas, município com 10 mil habitantes no sul do Estado. A irmã mais velha, Pauliane Amaral, nasceu em Iguatemi, três anos depois da caçula de Ilma com o oficial de justiça Alziro Lopes do Amaral, de 65 anos. As irmãs viveram a maior parte da infância em Ponta Porã, após Ilda passar em um concurso da prefeitura municipal, e Alziro em outro do fórum da cidade.

O casamento, que já não andava bem, terminou definitivamente após a morte da jovem. Segundo Ilma, as divergências aumentaram já após o assassinato, quando a costureira insistia para que o caso fosse tratado com feminicídio. “Na cabeça do meu ex-marido ‘os caras’ mataram para roubar, mas foi ele [Luis] quem matou, ele fez tudo sozinho”, afirma.

Foto de Mayara carregando violão foi a última feita pela mãe, dois dias antes do feminicídio. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

No início das investigações, Ronaldo da Silva Olmedo e Anderson Sanches Pereira, amigos de Luis, chegaram a ser presos em flagrante por envolvimento no crime – que à época era tratado como latrocínio, roubo seguido de morte. Após a conclusão das investigações, foi constatado que Luis agiu sozinho, roubando R$ 17,3 mil em bens da vítima, incluindo o notebook, celular, carro VW Gol 1992 e o violão de Mayara – que o pai levou da casa após a separação.

Ilma lembra que, quando a filha comentou que estava saindo com “um rapaz branquinho e loiro”, pedia para que ela não saísse com o carro recém-comprado pelos pais, um Renault Duster. “Ela foi em uma festa com o Luis 15 dias antes e demorou para voltar. No outro dia, ela contou que foi com a amiga que tocava guitarra na banda e ele ficou bravo, porque pediu para ela ir sozinha. Ela disse ‘mãe, só tinha homem na festa’, e eu não desconfiei. Na minha imaginação era o carro que eles estavam querendo, e não matar ela. 15 dias depois ela sai com nosso outro carro, um Gol antigo, e ele mata ela do mesmo jeito”.

Luís Alberto foi condenado a 27 anos e dois meses de prisão em regime fechado, no dia 29 de março de 2019, após sentença proferida pelo juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri, Aluísio Pereira dos Santos. Em seguida, a defesa entrou com apelação em primeira instância, mas a sentença foi mantida. O advogado de defesa, Conrado Passos, ainda entrou com recurso especial em segunda instância, que foi negado pelos desembargadores do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).

A defesa, então, entrou com agravo da decisão do TJMS no STJ (Supremo Tribunal de Justiça), onde também foi negado. O processo retornou para a 2ª Vara do Tribunal do Júri na Capital, quando Luís foi intimado, no dia 19 de abril, a pagar a multa a que foi condenado, no valor de R$ 1.249,33. O réu foi intimado no IPCG (Instituto Penal de Campo Grande), onde cumpre pena.

Aluna exemplo

No dia 25 de julho de 2018, último dia de férias da violonista, a mãe relembra que também seria o último ensaio da banda recém-criada por Mayara com três colegas de turma. O grupo foi montado durante o mês de férias, e lançaria um CD ao final das gravações, com composições feitas por Mayara. “Aquele dia era o último de ensaio. Eu nem cheguei a ver a banda, conheci as meninas depois. Ela falou ‘mãe, eu estou tão feliz. Agora já estudei bastante e preciso pôr para fora o que aprendi, para começar meu doutorado’”, lembra.

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Após morte da caçula, Ilda autorizou gravação de músicas compostas por Mayara. (Foto: Leonardo de França/ Midiamax)

Mayara havia sido convidada para fazer doutorado em música na Unicamp (Universidade de Campinas), onde foi aprovada, e se preparava para mudar para o estado de São Paulo, quatro meses após finalizar o mestrado, também em música, na UFG (Universidade Federal de Goiás). A violonista chegou a cursar seis meses de Artes Visuais na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), mas afirmou para a mãe que não iria concluir porque o sonho era viver da música. “Ela passou em segundo lugar em Artes, mas combinou com um professor, que deu aula de graça para que ela fizesse a prova prática, que faria o vestibular para música. Ele veio um domingo almoçar com a gente e disse ‘a Mayara tem muito talento, ela é minha aluna exemplo’”.

Ilda se lembra do sonho da jovem em continuar estudando e trabalhando. “Ela começou a dar aula de música aos 15 anos em uma escola perto de casa. Ganhava R$ 120 por mês e falou para mim que era pouco, na época. Eu expliquei, falei “minha filha, você está começando, tem que estudar mais”. Depois da faculdade, ela passou no concurso para ser professora da rede estadual e continuava dando aula. No dia do velório, eu vi uma aluna dela que insistiu para que a mãe a levasse, e disse para mim que ela era mais que professora, era amiga”, lembra.

A costureira ainda via a caçula como uma menina, e se preocupava com a “nova vida” que Mayara levava após terminar o casamento de seis anos. A violonista já tinha relatado à família que não estava preparada para lidar com o público, e se sentia assediada com alguns olhares da plateia. Na tentativa de ajudá-la, Ilda convenceu a filha a fazer terapia psicológica após a separação, ocorrida três meses antes da morte.

“A Mayara estava se descobrindo como mulher, apesar de ter 27 anos. Ela tinha os sonhos e as ideias de uma menina porque só estudava e trabalhava. Todo mundo conhecia ela, mas ela não conhecia todo mundo. Uma vez ela me disse ‘quando eu subo no palco e toco, e todo mundo olha para mim, isso me incomoda’, e eu dizia que ela tinha que se preparar porque tinha escolhido isso para a vida”, afirma Ilda.

Junto às fotos de Mayara, Ilda guarda cartilhas de violência contra a mulher. (Foto: Leonardo de França/ Midiamax)

 

Após a morte da violonista, as composições que deram origem ao seu projeto de mestrado foram gravadas pela também violonista e compositora Thaís Nascimento, no disco “Expressivas – Mulheres Compositoras para Violão”. A obra foi gravada em Bonito, com a presença da mãe e irmã da Mayara. “Eu autorizei a gravação porque não podia ficar dentro da gaveta. E toda vez que a Thaís faz alguma apresentação ela sempre fala sobre a violência contra a mulher e a importância de combater”, afirma.

Promessa do violão brasileiro

O professor do curso de música da UFMS, e ex-orientador  do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de Mayara, Marcelo Fernandes, lembra que ela entrou muito jovem na universidade, com apenas 17 anos. Ainda no período de preparação para o vestibular, o professor deu aulas práticas para Mayara e a acompanhou durante a graduação, até o ano de 2011.

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Fotos do arquivo de Ilda mostram Mayara com o professor Marcelo, no canto esquerdo, durante apresentação. (Foto: Leonardo de França)

“A Mayara era uma promessa para o violão clássico solista brasileiro. Todos os alunos se destacavam, mas ela era genial. Na idade dela, a Mayara figurou entre os grandes nomes desse país. O talento dela era extraordinário”, afirma. Com o passar dos anos, a proximidade entre os dois foi aumentando. A jovem fazia aulas de violão com o professor na residência dele, era convidada para almoços e chegou a levar presentes antes do natal para Marcelo, acompanhada do ex-marido, que também era músico e professor. “Os alunos das aulas de violão geralmente são mais próximos mesmo. As aulas são individuais e consegui acompanhar o crescimento dela. Não nasceram muitos músicos como a Mayara”, elogia.

Com a repercussão da morte da filha, a costureira tinha esperanças de que os casos de feminicídio no país diminuíssem. “A sociedade vê o machismo. A sociedade sabe desse tipo de comportamento, mas ninguém, nem a família, faz nada. O violão, por exemplo, não foi feito para mulheres, e até hoje as pessoas olham com ‘olhinhos’ não bem vistos. A mulher ‘foi feita para tocar piano’, violão é visto como brega”, alega Ilda.

Nos quatro anos que se passaram após a morte de Mayara Amaral, foram registrados 149 feminicídios em Mato Grosso do Sul, segundo dados da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública). O ano com maior número de mortes foi 2020, totalizando 39. Em 2021, já foram registrados 20 casos no Estado. Além disso, segundo dados do Anuário de Segurança Pública de 2020, disponibilizado neste mês de julho, o percentual de vítimas de feminicídio em relação aos homicídios com vítimas mulheres é de 38,7%. O relatório ainda aponta que, no Brasil, 89,5% dos autores de feminicídio estão dentro das residências das vítimas: 81,5% são companheiros ou ex-companheiros e 8,3% parentes.