Sempre ouvi dizer que Política e Religião não se discute e o que mais se debate hoje em dia é a política na religião, a religião na política, tudo é política, tudo é religião e assim vai em um debate infindável, que me deixa atordoado e confuso e não é para menos, cresci em plena militar onde nada se conversava, opinava ou debatia, muito menos Política e Religião.

Pois bem, o que se pretende aqui é trazer um entendimento meramente Histórico/Jurídico a respeito de quando a Religião se torna ré na Política e despretensioso de qualquer verdade absoluta a respeito da religiosidade de cada um, porque realmente religiosidade, fé, crença ou descrença não se discute, este é um assunto que só vamos saber mesmo é depois que formos desta para melhor, ou pior.

A nossa origem grego, romana, judaica, cristã, a Religião sempre esteve presente e, por muito tempo, muito tempo mesmo, absoluta e foi determinante na formação do modo de vida social e política do estado ocidental, exemplo desse domínio religioso, era que os grandes reis, conquistadores, generais, imperadores, para serem grandes tinham que ter na sua genealogia uma entidade divina, como foi o caso de Alexandre, o Grande, Rei da Macedônia, que, conforme sua mãe, era descendente de Zeus, na cultura Romana, Júlio César, Ditador absoluto de Roma, por sua vez descendia da Deusa Vênus, sem se esquecer dos descendentes do Deus Romano Marte, Rômulo, fundador de Roma, e Remo e por aí vai.

Porém, dois momentos na História ocidental onde a relação Religião e Estado/Política houve uma ruptura, deixando a Religião fora dos assuntos do Estado e, consequentemente, da Política. A Revolução Francesa foi o primeiro movimento que assegurou ao Homem e ao Cidadão Liberdade de Pensamento e de Religião, em 1789, os da América, foi o segundo, depois da Guerra de Independência, Tomas Jefferson, em 1802, se referiu a separação entre Igreja e Estado como “muro de separação entre Igreja e Estado”. Estava aí o surgimento do Estado Laico, onde nos Estados Democráticos, a Liberdade de Pensamento e de Religião são princípios inalienáveis.

E no Brasil? Aqui só ocorreu após a queda do Império em 1889, que deu lugar ao regime republicano e com a República os laços entre Igreja e o Estado foram rompidos. Benjamin Constant e Rui Barbosa, influenciados pelas mudanças ocorridas na França e nos Estados Unidos (Estado Laico), contribuíram com a elaboração do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que já no seu art. 1º deixa claro como seria a relação do Estado Brasileiro com a Religião, in verbis:

“É proibido à autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas” (como no original)

Então, a partir de 1890, o Estado Brasileiro se torna um estado laico, assegurando a todas as pessoas a ampla liberdade religiosa e de pensamento e a liberdade do Estado Democrático de Direto sem a interferência da Religião, garantias presentes, desde então, em todas as Constituições e confirmado pelo Constituinte originário de 1988, que assegura a condição de Estado Laico, art. 5º, VI, no mesmo sentido que os ideólogos Republicanos de 1890 já tinham instituídos.

A partir de 1988 o Estado Brasileiro passa por transformações radicais na política e na vida social, deixando de ser um estado de exceção para ingressar em um Estado Democrático de Direto, que tem como base uma Constituição Cidadã e o Povo Brasileiro como única fonte do Poder Político, que exercerá periodicamente nas escolhas de seus representantes, por meio de Eleições diretas em todos os níveis e de forma livre e soberana.

E o Abuso de Poder Religioso, como crime eleitoral?

Com a instituição de Eleições Diretas para todos os níveis, a garantia do voto para todos maiores de 16 anos, com mesmo valor para todos, um cidadão 1 voto, e a liberdade e a soberania da escolha do eleitor/eleitora, que era impensável e proibido antes de 1988, agora é uma realidade e a única ferramenta disponível para organizar as Eleições era o que é até hoje o Código Eleitoral, instituído pela Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.

A primeira Eleição Direta no Brasil, após a redemocratização foi em 1989 e, diga-se de passagem, sem nenhuma experiência nesse assunto e sem nenhum controle contra os abusos/crimes eleitorais, como o abuso de poder econômico, abuso de poder político e dos meios de comunicação social, o que foi regulamentado o art. 14, § 9º, da Constituição Federal de 1988, em 1990, pela Lei Complementar 64/90, art. 22, tornando inelegíveis, proibidos de serem votados/eleitos, aqueles que abusarem do Poder Econômico, Abusarem do Poder Político/Autoridade e dos Meios de Comunicação Social.

Em 1997, mais precisamente em 30 de setembro de 1997 é publicada a Lei das Eleições, agora a Justiça Eleitoral possuía um arcabouço jurídico capaz de organizar, disciplinar e regular legalmente as Eleições no Brasil, definindo as condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais, evitando, com isso, o uso indevido da “máquina estatal” em favor de determinado candidato/candidata ou Partido Político.

A Lei das Eleições de 1997, também definiu o que o Candidato/Candidata e os Partidos Políticos podem e o que não podem receber como doação em dinheiro ou estimáveis em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, art. 24.

É de se notar que tanto na Constituição de 1988, no Código Eleitoral, Lei nº 4.737/65, na Lei de Inelegibilidade, nº 64/90, e na Lei das Eleições, nº 9.504/97, o Legislador não menciona o Abuso de Poder Religioso e muito menos como conduta vedada os atos praticados por Instituições Religiosas ou por Líderes Religiosos, capazes de interferir no processo eleitoral, desequilibrando as oportunidades isonômicas que a Constituição Federal de 1988 e as demais leis infraconstitucionais asseguram a todos os Candidatos e Candidatas.

Porém, a Lei 11.300, de 10 de maio de 2006, que acrescenta o inciso VIII, no art. 24, da Lei nº 9.504/1997, proíbe as Instituições Religiosas de beneficiarem Candidatos/Candidatas e Partidos Políticos com recursos financeiros, estimáveis em dinheiro e, inclusive, por meio de publicidade de qualquer espécie, dando início ao grande debate que nos encontramos atualmente, qual o limite da Religião (Instituição Religiosa e Líderes Religiosos) nas Campanhas Eleitorais? Até que ponto o uso das Instituições Religiosas e a influência dos Líderes Religiosos desequilibram o processo eleitoral a ponto de infringir o princípio da isonomia entre candidatos e desvirtuar o estado laico, assegurado no art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988?

A atual Ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, Maria Claudia Bucchianeri, leciona no sentido de inclusão dessa nova figura de Abuso de Poder, uma vez que as práticas ilegais cometidas por entidades e líderes religiosos não podem ser enquadradas como Abuso de Poder Político, segue parte da entrevista, in verbis:

“Como a realidade não é estática, é natural que surjam situações novas”, ponderou. Maria Claudia citou, então, que os TREs e o TSE vêm lidando, há pouco mais de dez anos, com casos que envolvem abusos praticados por líderes religiosos ou instituições religiosas, visando influenciar o voto de grupos de eleitores. Como eventos religiosos em que um candidato tem espaço para falar sobre seus projetos. E também situações em que líderes permitem o acesso de apenas um ou alguns candidatos às suas comunidades durante o período de campanha”. https://www.tre-mg.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Dezembro/ministra-do-tse-fala-sobre-novas-modalidades-de-abuso-no-processo-eleitoral

Assim, mesmo que a figura de Abuso de Poder Religioso não apareça objetivamente no ordenamento jurídico, não quer dizer que ele não exista e que não cause danos irreparáveis ao processo eleitoral e a própria Democracia, uma vez que qualquer tipo de abuso deve ser considerado uma anomalia jurídica e consequentemente reprimido pelo poder estatal.

No caso do Abuso de Poder Religioso não está restrito somente e simplesmente no ato de influenciar o eleitor ou a eleitora, mas, também, em financiar indevidamente em dinheiro ou não ou por meio de qualquer espécie de propaganda, art. 24, VIII, Lei nº 9.504/1997, como disponibilização de estruturas físicas, cadastros de fieis/eleitores, transmissão do ato ilegal pelas redes sociais e pelos meios de comunicação social, rádio e/ou televisão, e de transformar o ato religioso em ato de campanha eleitoral.

Como já lembrado antes, a união entre Estado e Religião, onde não se sabia quem era quem, ficou no passado longínquo e não mais aceitável o uso da Religião como instrumento de manipulação do eleitorado, na interferência direta nas práticas de governo e na vida social do Povo.

O Abuso de Poder Religioso, se escora na proibição que o Legislador determinou que as Instituições Religiosas estão proibidas de financiar por qualquer espécie Campanhas Eleitorais, onde o simples descumprimento do dispositivo legal pode ser considerado crime eleitoral por ato abusivo de instituições religiosas, como bem asseverou o Desembargador, Relator, Fabiano Abel de Aragão Fernandes, TRE/GO, Recurso Eleitoral nº 8289, Luziânia – GO, 12/12/2017, in verbis:

“A realização de discurso, direcionado a cooptar a simpatia de eleitores/fiéis feito nas dependências de templo religioso caracteriza abuso de poder religioso, independentemente do número de presentes no evento”.

O , Mateus Henrique de Carvalho, chama atenção para a consequência do não enfrentamento do Abuso de Poder, para a
Democracia, in verbis:

“O poder, enquanto fenômeno social, pode unir ou separar uma nação, controlar a vida e a morte de um ser humano e destruir ou desenvolver uma sociedade. Assim, o exercício do poder econômico, político, militar, religioso, cultural, de autoridade, entre outros, em determinados casos, devem estar afetos ao controle jurisdicional e ao ordenamento jurídico pátrio, sob pena de a própria ideia de democracia tornar-se inócua e meramente formal”. (Abuso de poder e perda de mandato/Luiz Fux, Luiz Fenando Casagrande Pereira, Walber de Moura Agra (Coord.); Luiz Eduardo Peccinin (Org.) – Belo Horizonte: Fórum, 2018, p.366)

Como se percebe o Abuso de Poder Religioso é uma realidade, juridicamente está maduro, com base doutrinária sólida, entendimento jurisprudencial consolidado e esperando o posicionamento dos Tribunais Superiores, TSE e STF e dos Legisladores, para que, como já se questionou a Ministra substituta do TSE, Maria Claudia Bucchianeri: “Tenho aí uma nova figura de abuso de poder?”.

A resposta é sim e estamos diante de uma nova figura de abuso de poder, o Religioso, que deve ter o seu controle legal assegurado, para que a liberdade religiosa e de pensamento continuem sendo princípios inalienáveis e pilares do Estado Democrático de Direito.

*Fernando Baraúna, Advogado é sócio proprietário do Escritório BARAÚNA, MANGEON e Advogados Associados, Ex-Procurador Geral do Município de – MS, Especialista em Direito Eleitoral e Tributário, Ex-Membro Consultor da Co missão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB, Membro da Comissão de Direito Eleitoral OAB/MS, Membro da Comissão Advogado Publicista OAB/MS,  pós-graduando em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário – PUC/RS e assessor jurídico em várias administrações municipais.