Ele ou ela? Neutro ou não binário? A incógnita do gênero perpetua gerações diante da busca pelo autoconhecimento, respeito à identidade e à criação de um mundo inclusivo. No Dia do Orgulho LGBTQIA+, ou ainda LGBTQIAPN+, comemorado nesta sexta-feira (28), histórias refletem que o rótulo da identidade, até encontrar “seu lugar no mundo”, estagnam jornadas até a libertação na personalidade.

Uma dessas é da professora sul-mato-grossense, advogada e futura servidora pública no Amazonas, Fabi Diniz de Queiróz Pilate, que reconheceu a transexualidade após quase 40 anos. Além do protagonismo na carreira, será a primeira promotora de Justiça transgênero no país.

Fabi nasceu em Paranaíba, estudou em escola pública e mudou-se para Campo Grande aos 17 anos para ingressar no curso de Direito da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Foram estágios e assessoria jurídica no Ministério Público por quase 10 anos. Ela não se identificava como trans, mas como um homem cis, gay “afeminado”.

”(Nessa época) era uma grande dificuldade, porque pouco se falava em transgeneridade. Quando fazia terapia, essa não era uma opção, mas nunca me conformei com a identidade que tive que viver durante quase toda minha vida, como um homem cis, gay afeminado, que era a expressão usada na época. Sempre me senti absolutamente deslocada, sempre faltando algo, e isso atrapalhou muito no meu desenvolvimento profissional, porque, apesar de perceber que eu tinha um grande potencial, eu acabava procurando trabalhos que me fizessem atuar nos bastidores, era uma forma de me esconder e me sentir segura, pois se nem eu mesma compreendia bem minhas questões, quanto mais os outros”, relata.

Crença enraizada

A sociedade ainda predominante reconhece apenas dois gêneros e três orientações sexuais: homem ou mulher, gay, lésbica ou heterossexual. Contudo, a segregação na representatividade impedia Fabi de reconhecer seu próprio lugar nas posições sociais. Por exemplo, ela acreditava que um posicionamento de liderança e considerável não era visível para transgêneros.

“Tinha a crença de que lugares de poder não eram para pessoas como eu, isso atrasou muito minha vida em termos profissionais e espero mesmo que essa nova geração de pessoas transgênero não precise passar por uma vida inteira até encontrar o seu lugar. Mas a questão da invisibilidade e de não se sentir nem ao menos existindo; não tinha muita vaidade com a aparência e apenas mentia para mim mesma que era só meu jeito de ser, mas não era, eu não via necessidade de trabalhar aquele corpo que não refletia exatamente o que eu sou”, relembra.

Por mais que a transgeneridade a acompanhasse, Fabi ainda não estava preparada para lidar com as mudanças no corpo, na mentalidade e no reflexo da sociedade ao redor. Apesar dos constantes autoquestionamentos, o rótulo a deslocava. A inquietação em se reconhecer levou-a a buscar auxílio terapêutico, entretanto, sem sucesso, já que o primeiro tema da consulta foi o gênero, que ela sequer entendia.

“O que ela (terapeuta) disse ecoou e fez todo sentido, mas eu não estava pronta para trabalhar aquilo, até porque a área do Direito é extremamente conservadora e eu já brigava para sobreviver frente às vulnerabilidades que já eram conhecidas; partir para uma próxima luta era cansativo demais e naquele momento inviável”.

Reconhecimento da transgeneridade

Em algum momento, Fabi decidiu deixar o trabalho para se dedicar ao estudo para concurso público em tempo integral. Ali, sutilmente, começou a transição. Foram anos de viagens para fazer provas e estudar, até que ela passou a fazer mestrado na UFMS.

Em 2019, começou a lecionar na universidade, com a transição caminhando, mas ganhando celeridade. Foi durante a pandemia que Fabi começou a vivenciar situações que a “encurralavam” para “assumir” a identidade de gênero.

“Aquela transição que estava ocorrendo de forma silenciosa começou a gritar, e eu comecei a falar sobre gênero e sobre transgeneridade com as pessoas e comigo mesma. Apesar de não ter ‘assumido’ minha identidade de gênero, eu já vivia dentro de um papel social feminino. Depois de um processo de sofrimento interno enorme, em 2023 eu comecei a hormonização. Não cabia mais apenas uma transição interna; eu precisava viver e, finalmente, aparecer. Foi nesse momento que passei na primeira etapa do concurso para Promotora de Justiça do Amazonas e depois de Santa Catarina”.

Hormonização

Fabi também começou a dar aulas no curso de Direito da UEMS (Universidade Estadual de MS) de Aquidauana. Entretanto, os primeiros impactos da hormonização surgiam, como a variação de humor, os efeitos psicológicos do estrogênio, as etapas dos dois concursos e a rotina. No começo do processo de transição, Fabi revelou a algumas pessoas o que passava dentro de si.

“Mas decidi que não iria suspender a hormonização; foram quase 40 anos de espera para de fato existir. Fui mesmo assim e continuei fazendo as provas; às vezes me pegava no meio de uma prova chorando do nada, mas eu precisava passar; como o concurso do Amazonas estava mais adiantado, eu me voltei totalmente a ele e não consegui prosseguir no concurso de Santa Catarina, mas não me importei porque adorei o Amazonas”.

Para ela, o processo externo é um ato de afirmação social do gênero, uma vez que a sociedade foi construída numa base binária, na qual corpo e gênero necessariamente devem corresponder. Portanto, muitos transgêneros acabam optando pela transgeneridade médica.

“Apesar de o processo de transição, assim chamado, ser normalmente referente à hormonização e outros processos médicos, é importante apontar que uma pessoa transgênero pode não sentir necessidade desses processos médicos e vivenciar sua transição interna, reconhecendo seu real papel social. O processo, eu diria, é mais interno do que externo. Posso dizer que esse processo de transição interna é muito mais profundo do que eu imaginava; é um processo de autoconhecimento e de construção de uma pessoa que por muito tempo foi escondida do mundo. Trazer essa pessoa à tona é lindo, mas também muito sofrido”.

A incompreensão de gênereo machuca

Fabi é casada há 15 anos, com o companheiro acompanhando as mudanças. Contudo, o carinho e a compreensão em casa eram contrários aos olhares de confusão de desconhecidos que machucavam.

“As pessoas que nem ao menos nos conhecem. Eu mesma percebi muita diferença na forma como as pessoas me viam e me tratavam; uma vida inteira e, de repente, me tornei uma estranha; vou ao shopping e todos me olham, pelo simples fato de transgredir a norma social e viver quem eu sou de fato. Nisso, a transgeneridade vem sendo tratada de forma muito inadequada por vários setores, inclusive pessoas transgênero. Precisamos sair daquela simples explicação de ‘nasci com a cabeça de mulher num corpo de homem’; não é algo tão simples assim, e a explicação não é biológica”.

“Ninguém discute a biologia. Nasci do sexo masculino, mas desde cedo, não cumpria com as expectativas sociais atribuídas aos homens. A biologia não explica isso; quem pode nos dar algumas explicações serão a sociologia, antropologia, psicologia. O que acho cômico é que aqueles que sempre me chamaram de ‘mulherzinha’, lá na infância, quando me assumo mulher, eles se levantam e me esfregam um compilado de biologia na minha cara. Mas pense bem, por que essas crianças me chamavam de ‘mulherzinha’? Porque viam um padrão de comportamento de gênero que não correspondia ao meu sexo. E transgeneridade é exatamente isso”.

Primeira promotora de Justiça trans

Em breve, Fabi deve assumir a aprovação como promotora no Amazonas, sendo assim, a primeira Promotora de Justiça transgênero no país.

“Ainda tenho alguns questionamentos sobre o uso da expressão mulher, mas enquanto não discutimos e buscamos conhecer mais sobre nossa identidade, continuo usando a expressão mulher para me designar. É a caixinha mais próxima do que eu sou, até porque o mundo não oferece outra; talvez tenhamos que criar. Mas é importante as pessoas se atentarem que não buscamos ser mulheres, somos mulheres trans, não mulheres como as outras mulheres, as mulheres cis, biologicamente mulher; somos mulheres trans e, sobretudo, pessoas, e só por isso já merecemos respeito”, finaliza.