Em uma esquina da rua Lourenço da Veiga, no bairro Campo Belo, em , há uma construção nas cores amarelo e vermelho, onde funcionam dois estabelecimentos lado a lado como se dessem as mãos. Administrados pelo casal formado por uma brasileira e um marroquino, na parte esquerda está uma lanchonete e, na outra, uma loja que conserta eletrônicos. Mas, no mesmo endereço, há dois anos, ali não havia prédio e nem casal.

Zildene de Lima, hoje com 45 anos, é do Ceará e mora há mais de 20 anos em . Vivia quase reclusa, enlutada pela morte precoce do marido após ter sido soterrado em uma construção no Bairro Monte Castelo, em 2016. El Youssef Houari, atualmente com 48 anos, morava em Agadir, a 549 km de Rabat, capital do Marrocos, país na costa norte da África. 

Estavam separados por um oceano, idioma, culturas diferentes, mas uma mensagem nas redes sociais e ajuda do Google Tradutor permitiu que se conhecessem, se apaixonassem e que o marroquino se mudasse para Campo Grande há pouco mais de um ano para poder viver com “o amor da sua vida”.

Youssef mandou uma mensagem para Zildene pelo , em abril de 2020, após ler seu post de homenagem ao falecido. Ficou comovido pelas palavras da mulher que lamentava a partida do pai de seus dois filhos. A distração dela era conversar pelas redes sociais. O sobrinho que a visitava frequentemente jogava no celular da tia e convidava estrangeiros para disputar partidas de sinuca online. Quando retomava o smartphone para suas mãos, estava cheio de solicitações de amizade e de mensagens de estrangeiros que queriam bater papo.

Assim, passou a conversar com pessoas de outros países, que a distraíam e a aproximavam de outras culturas, fugindo nesses momentos da realidade daqui, imersa no luto. “Eu estava muito deprimida na época e conversar me distraía até que encontrei meu amorzinho”, conta entre sorrisos e segura a mão do marido.

O marroquino já dominava o amazigh (língua nativa do Marrocos), árabe (idioma oficial do Marrocos), inglês, francês (segunda língua oficial do Marrocos) e espanhol, mas no português não se arriscava e contou com a ajuda do Google Tradutor para mandar a primeira mensagem para a brasileira. No terceiro dia de conversas, a pediu em casamento. A cearense ficou em choque e pensou que era brincadeira, mas, por também querer brincar, aceitou. Sim. Foram oito meses de conversas, videochamadas e declarações pelo Facebook até que Youssef decidisse se mudar para Mato Grosso do Sul para viver com Zildene.

marroquino
Certificados de capacitações que Youssef trouxe do Marrocos. (Foto: Marcos Ermínio / Midiamax)

Foram meses de preparação de documentos e testes de para que o muçulmano pudesse embarcar para o Brasil, em fevereiro de 2021. Chegou ao aeroporto de Marrakesh, mas foi barrado pela companhia aérea Air France. A empresa oferece a rota com escalas menores, porém mais difícil para estrangeiros pelo receio de não continuarem a viagem e permanecerem ilegalmente na França. A outra opção seria viajar com a Turkish Airlines, com uma escala de 11 horas em uma das paradas, uma longa espera que tinha rejeitado inicialmente, mas que precisou aceitar se quisesse pegar o avião. 

Ele, então, foi orientado a viajar 243 km até Casablanca (Marrocos), para tentar trocar o bilhete entre as companhias, mas sem sucesso. Youssef voltou para casa com as malas, as duas passagens (era obrigatório comprar ida e volta) para tentar novamente no mês seguinte. Com mais dois bilhetes em mãos, em nove de março, após passar por Casablanca e Paris (França), chegou a São Paulo, e depois seguiu para Campo Grande. Ao todo, a viagem durou 23 horas e percorreu mais de 7 mil quilômetros.

marroquino
Viagem de Youssef cruzou o Oceano Atlântico e durou quase um dia. (Elaborado por Midiamax. Todos os direitos reservados)

O custo da viagem ficou em torno de R$ 20 mil e, das quatro passagens que comprou, o marroquino utilizou apenas uma. Duas ele tenta recuperar o valor pago por ter sido erro da companhia aérea, mas uma de volta ficou perdida, pois nunca considerou utilizá-la quando decidiu mudar-se para morar com a amada brasileira. “Eu tive muita dificuldade para chegar aqui, brinco que amo mais”, declara o muçulmano.

Enquanto conversam, é perceptível o carinho que sentem um pelo outro, pelas mãos que se tocam constantemente e pelo amor que sobe aos olhos e abre um sorriso no rosto de ambos enquanto narram a história dos dois últimos anos. “Quando você se conhece só no virtual não é fácil sair do país e buscar esposa do outro lado do mundo, mas estou feliz”, revela Youssef.

Mudanças

“Você está louca, o cara vai largar tudo para trás?”, as pessoas diziam para Zildene quando contava que o “namorido” marroquino se mudaria para Campo Grande. O “tudo” ao que se referiam inclui, especialmente, os filhos que teve com a ex-esposa e a microempresa na área de técnica em eletrônico, que foi fechada depois que chegou ao Brasil. 

Youssef trabalha com o conserto de smartphones, TVs, computadores e notebooks. Exibe com orgulho na parede da loja a certificação que fez no Marrocos com os especialistas coreanos da empresa LG, além de outros diplomas que conquistou na área. Sobre os filhos, que são adolescentes, afirma que os três o apoiaram na mudança de país e conversam com frequência com o pai, que faz repasses da pensão para a mãe deles.

Do lado de Zildene, a principal mudança veio através da religião. Mesmo não sendo obrigatório que se convertesse para casar, ela, que era adventista do sétimo dia, preferiu mudar a devoção. A doutrina permite que um homem se case com uma mulher não muçulmana, mas não o contrário, conforme o casal explica. 

marroquino
Alcorão, livro sagrado do Islã, que ganharam no dia do casamento. (Foto: Marcos Ermínio/ Midiamax)

Ela fez cursos online para aprender sobre o Islã e casou-se com Youssef na mesquita de Campo Grande. “Para ele ficar comigo só casando. Muçulmano só encosta na mulher depois que casa. Fiz a confissão da Shahada e disse que acredito nos profetas, em Deus, no Profeta Maomé”, ela relembra.

Antes da chegada de Youssef, havia resistência de familiares e amigos sobre o relacionamento, e Zildene até ouvia comentários preconceituosos. Os dois filhos ameaçaram sair de casa e as colegas de trabalho perguntavam “quando o homem bomba iria chegar”. “Hoje a minha família adora ele, só a minha mãe que tem dificuldade em entender o que ele diz”, ela confessa.

Próximo à escola estadual do bairro, o casal construiu na frente da casa de Zildene os dois comércios. Os planos, de acordo com a mulher, era abrir a lanchonete visando atender os alunos. Nos horários de entrada e saída dos estudantes, Youssef fecha a loja quando é preciso e ajuda a esposa nos atendimentos e na fritadeira dos salgados. 

Além de um companheiro, a chegada de Youssef e a decisão de abrirem os estabelecimentos trouxe mudanças na socialização na vida de Zildene, que trabalhava como costureira em casa para poder ficar próxima dos filhos. Quando o movimento era fraco, fazia diárias em fábricas de costura. “Eu gosto de mexer com pessoas, a gente não se sente sozinha, apesar que agora não me sinto mais sozinha [se referindo ao marido]. Eu costurava lá no fundo, então as pessoas que eu via eram os clientes, não via mais ninguém. Aqui eu tô conversando toda hora, tô vendo gente”, conta empolgada.

marroquino
Youssef mostra as passagens de avião que comprou para vir ao Brasil. (Foto: Marcos Ermínio/ Midiamax)

A esposa o ajuda a conversar e traduzir o que não compreende. Enquanto fala, é possível notar o sotaque espanhol e o esforço para aprender o português, idioma que ganhou familiaridade durante as videochamadas com a brasileira. “Aqui eu faço um serviço em que não tenho muito contato com as pessoas, mas às vezes tenho dificuldades na comunicação”, admite o estrangeiro.

O casal já tem planos para o futuro. O próximo passo é o casamento civil para que Zildene possa conhecer as tias de Youssef que moram na França e insistem em conhecê-la. Outra viagem planejada é conhecer as praias brasileiras, mas esta com a família inteira. “Eu sempre falo que tenho vontade de levar meus filhos, eu conheci na infância com o meu pai”, relembra.

Cuidado redobrado nunca é demais – Se você se encantou com a história de amor contada nesta reportagem, vale o alerta. Diferentemente da história de Youssef, muitos estrangeiros entram em contato com brasileiras prometendo amor, mas na verdade atraindo as mulheres para golpes.

Autoridades em segurança na internet alertam para que pessoas que mantenham contato online nunca transfiram dinheiro ou forneçam detalhes da sua vida pessoal, como endereço, até se certificar de que do outro lado da conversa está uma pessoa real e com boas intenções. Neste link você pode conferir mais detalhes de como se proteger de golpes em relacionamentos virtuais.