É ela! Transfobia contra Linn da Quebrada é retrato da violência de gênero em Campo Grande

Transfobia praticada em reality show legitima a violência diária vivida por pessoas trans e travestis no Brasil

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Linn da Quebrada tem sofrido ataques transfóbicos dentro do reality show
Linn da Quebrada tem sofrido ataques transfóbicos dentro do reality show

O Big Brother Brasil 22 começou há pouco mais de uma semana, no último dia 17, e bastou apenas um curto período de tempo para que um problema social saísse das sombras e ficasse sob os holofotes: os episódios de transfobia sofridos por Linn da Quebrada, renomada artista que se identifica como travesti. Mesmo com a grande visibilidade, durante horário nobre e em canal aberto, a violência de gênero reina entre a ignorância e a crueldade daqueles que a praticam.

Não é novidade para ninguém que esse tipo de episódio se expande para além da televisão. A diferença é que Linn está sendo vista por milhões de brasileiros, enquanto várias outras pessoas trans sofrem ataques às escuras. O que todas elas têm em comum? A falta de iniciativas da própria sociedade para reverter esse cenário, que, por sinal, não fica tão longe da nossa realidade. Assim, a transfobia contra Linn da Quebrada, no BBB22, é um retrato da violência de gênero que acomete várias outras vítimas em Campo Grande.

Linn da Quebrada no BBB22
Linn da Quebrada no BBB22 (Foto: Reprodução/Rede Globo)

Nem mimimi, militância ou chatice. A transfobia é crime desde 2019 no Brasil, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) passou a criminalizar a homofobia e transfobia. Linn da Quebrada se refere constantemente como ‘ela’ e tem, inclusive, a palavra tatuada na testa. Mas, pelo visto, isso não foi o suficiente para que os ‘brothers’ deixassem de usar pronomes masculinos.

Desde “traveco” a “amigo”, os participantes se sentem à vontade para praticar a transfobia em meio ao reality show mais famoso do Brasil, legitimando a violência diária que milhares de pessoas trans vivem todos os dias no país.

Precisa estar sempre maquiada

As mesmas angústias vivenciadas por Linn da Quebrada são situações recorrentes para Pamella Yule, professora e produtora cultural, de 34 anos. Ela se entende como mulher desde muito cedo, mas assumiu a identidade perto dos 30 anos, quando atingiu a sua independência financeira. Para a família, esse tempo durou um pouco mais.

Enquanto alguns não conseguem absorver a identidade de Pamella, outros ainda a tratam no masculino sem mostrar remorso e, quando mostram, se desculpam o tempo todo.

Pamella Yule em filme 'Madalena'
Pamella Yule em filme ‘Madalena’ (Foto: Divulgação)

“Todas nós passamos por isso, e é horrível a sensação de ser desrespeitada o tempo todo, não tem como descrever. Pra mim, eu preciso sempre estar maquiada para as pessoas na rua, ou no comércio, para me tratarem no feminino. Parece que se eu saio de cara lavada, não basta estar de vestido, saia e unhas pintadas. Se não tiver maquiada, as pessoas não tratam no feminino”, contou a produtora ao Jornal Midiamax.

O mesmo é observado em outras cidades. Recentemente, Pamella viajou ao Rio de Janeiro, onde percebeu os mesmos preconceitos de gêneros em relação ao tratamento de pessoas trans. Dessa forma, é um grupo marginalizado em todos os âmbitos sociais.

“É muito raro você ver mulheres trans vivendo na nossa cidade. Uma mulher trans ou travesti como frentista de um posto de gasolina, te atendendo na padaria ou tomando um sorvete com um rapaz e sendo cortejada na calçada de uma sorveteria. E quando isso acontece, que já é raro, quase sempre vem acompanhado de um episódio onde tratam a situação com chacota”, afirma.

Até mesmo no trabalho artístico a transfobia é legitimada. Para a produtora cultural, apesar de ser um segmento que tenta se esforçar para se atualizar no tratamento das pessoas, ainda está longe de ser uma área acolhedora.

“Para mim, o problema maior é a construção de histórias que sejam boas sobre nós, sem cair em estereótipos, sem contar histórias já contadas… talvez porque não temos ainda mulheres trans ou travestis roteiristas ou diretoras”, comenta Pamella.

Reconhecida em sua essência

As mesmas violências são observadas por Cris Stefanny Vidal Venceslau, que assumiu sua travestilidade aos 15 anos de idade. Atualmente com 42, ela afirma já ter sido tratada igual a Linn durante a chamada na escola, em lojas, delegacias e unidades de saúde.

Para ela, é muito importante a troca de nome e gênero nos documentos civis, uma vez que a identidade de gênero é um direito à dignidade humana para que as pessoas trans sejam reconhecidas na sua essência.

“A sensação de ser chamada de ‘ele, o travesti, dos travestis, Senhor, etc.’ é horrível e angustiante, porque temos duas impressões: ( I ) parece que ser mulher resume-se a uma vagina e não a toda uma essência; e ( II )  parece que travestis são seres desprezíveis fora do padrão de normalidade”, desabafa.

Sobre a participação de Linn da Quebrada no BBB, Cris afirma se sentir representada, especialmente porque a sister não higieniza o termo ‘travesti’.

“Travesti é um termo carregado de preconceitos, de rótulos e marginalização com drogas, prostituição, roubos, etc. Mas o que não se dizem é que esses estigmas se deram por anos devido à exclusão social vivenciada, à violência sofrida e às explorações de cafetões, policiais indisciplinados, traficantes e também por outras travestis mais antigas que viviam lei da selva”.

Na hora de ver a transfobia sendo praticada ao vivo, a assessora executiva diz ficar revoltada. “É indignante saber que, até hoje, as pessoas se colocam como coitadinhas para dizer que é tudo muito novo, só para discriminar por puro ódio e vontade de atingir mesmo”, explica Cris Stefanny.

Transfobia no BBB: reflexos de uma sociedade preconceituosa

João Vilela, 29 anos, trabalha como psicólogo e se identifica como um homem trans desde os 25. Em Campo Grande, ele afirma que 90% dos seus pacientes são trans e chegam ao consultório com demandas envolvendo a transfobia e opressão social. Assim, ele afirma que os ataques sofridos por Linn são mais um reflexo de como a sociedade brasileira é preconceituosa.

Vilela percebe isso dentro do próprio núcleo familiar, onde sofreu muita resistência por parte dos parentes, especialmente os mais idosos e religiosos, na hora de ensinar como deveria ser tratado. Mesmo com nome do cartório trocado, alguns continuavam usando o nome morto – anterior ao da transição. Assim, criar confiança para impor sua identidade foi a maneira encontrada para sair dessa posição.

João Vilela com a bandeira trans
João Vilela com a bandeira trans (Foto: Stanke fotografia)

“As pessoas, muitas das vezes, sofrem a transfobia e ficam caladas ou não têm a instrução para saber que transfobia é crime. Então, é muito importante que a gente fale sobre isso e consiga elucidar as pessoas para que não cometam mais esses atos”, contou o psicólogo.

Casado com a pedagoga Luara, ele lembra de como a sua esposa sofreu muitos ataques por ela não ter se envolvido com um ‘homem de verdade’. Segundo João, isso também se enquadra como violência.

“Quando você se coloca na disposição de viver em sociedade, você tem que estar disposto a mudar, aprender e respeitar o que o outro tem para ele”, comenta João.

Questionado sobre o que está achando sobre a participação da Linn, ele afirma estar muito contente por ter uma concorrente que está ressignificando o termo ‘travesti’ de forma política, igual mencionado pela Cris acima, e tirando essa identidade do submundo imposto pelas conjunturas histórico-sociais.

“Eu espero que com essa visibilidade da Linn no BBB, a gente consiga falar mais ainda sobre a questão de pronome, sobre a questão da travesti – que é uma figura feminina, latino-americana, que é uma representação daquilo que Linn mesmo colocou: não é homem e nem mulher, é a travesti”, afirma.

Mas afinal, por que as pessoas erram tanto?

Bolha: sair é opcional

A bolha social é uma demarcação de espaço para se distanciar de pessoas e ambientes que são diferentes ao grupo que você, normalmente, participa. Essa questão tem sido amplamente discutida nas últimas edições do BBB, especialmente entre as minorias que se incomodavam com atitudes ignorantes de quem vivia numa situação privilegiada e não tinha iniciativa para sair da ‘bolha’.

Para Pamella, essas pessoas participam da bolha e também não fazem questão de sair, uma vez que o acesso à informação é fácil. De novelas a programas de debate, só não aprende a tratar pessoas trans quem, realmente, não quer. 

bolha social
Bolha social na era da informação (Foto: Ilustrativa/Reprodução)

 

“Não é possível que as pessoas ainda alegam não conhecerem ou não saberem. Não acho que fazem por maldade, mas a falta de convívio com pessoas trans, ou até a vontade de conviver com essas pessoas, é o que mais atrapalha nos casos de tratamentos”, afirma a artista.

Já a Cris acredita que, quem insiste no erro, é por maldade. “É mais fácil as pessoas se fingirem de ‘moscas mortas’. Por que quando é para usar termos chulos e depreciativos, aprendem com tanta facilidade?”, questiona.

Enquanto isso, João alega que não dá mais para as pessoas ficarem errando. “A mudança tá aí e acontece para todo mundo […] não saber, não é mais uma justificativa, porque o respeito e a empatia estão aí para serem colocados a todo momento. Não dá mais pra gente ficar passando pano para essas situações”, conclui o psicólogo.

Além disso, todos alertam: não sabe qual pronome usar? É simples, pergunte como a pessoa gosta de ser tratada.

Fim da transfobia: realidade ou utopia?

Será que um dia a transfobia vai acabar? Uma pergunta difícil de ser respondida, mas que, para os entrevistados, a resposta está na educação primária e na aplicação das leis para um futuro próspero à comunidade.

A educação social dentro das escolas e nas faculdades é de extrema importância para mudar os preconceitos que existem há gerações. É necessário, também, maior aplicabilidade das leis por parte do Poder Judiciário.

Além disso, os entrevistados alegam a importância da comunidade LGBTQIA+ ter consciência política da sua cidadania, deveres cívicos e assumir, de fato, espaços no poder.

Mês da Visibilidade Trans

Janeiro é o mês da Visibilidade Trans, especificamente comemorado no dia 29. Apesar da importância da causa, vale ressaltar que ela existe porque o Brasil é um dos países que mais mata travestis e transexuais no mundo. Dessa forma, o direito à vida dessas pessoas é constantemente ameaçado. Violências e discriminações ainda são realidade nas suas rotinas. Não acredita? Confira esses números.

Janeiro é mês da Visibilidade Trans
Janeiro é mês da Visibilidade Trans (Foto: Reprodução)

De acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a média da expectativa de vida dessa população é de 35 anos no Brasil. Ainda segundo a Antra, em 2019, foram registrados 124 assassinatos. Em 2020, mesmo em meio à pandemia de Covid-19, o país registrou 129 assassinatos de pessoas trans de 1º de janeiro a 31 de agosto, resultando num aumento de 70% em relação ao mesmo período do ano anterior.

Conforme o relatório de 2021 da TGEU (Transgender Europe), que monitora dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos os assassinatos registrados aconteceram na América do Sul e Central, sendo 33% no Brasil, seguido pelo México, com 65 mortes, e pelos Estados Unidos, com 53. 

Dessa forma, os números mostram como a violência de gênero não é um caso isolado e precisa ser tratado, sim, como um problema social. Como os entrevistados mencionaram acima, a educação na escola é fundamental para que essa realidade se transforme ao longo dos anos.

Isso porque, em uma pesquisa feita pela Secretaria de Educação da ABLGBT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), 45% dos estudantes afirmaram que já se sentiram inseguros devido à sua identidade de gênero no ambiente escolar. E ainda, com pequenas variações, de 70% a 85% da população trans já teriam abandonado a escola pelo menos uma vez na vida.

Enfrentando tamanho preconceito no ambiente escolar e, por vezes, na própria família, a evasão escolar é recorrente. Isso fortalece o ciclo vicioso de exclusão social e no mercado de trabalho pela falta de acesso à educação e, especialmente, pelo preconceito das empresas. O que sobra, no fim de tudo, é a prostituição como um dos poucos meios de sobrevivência para 90% da população trans no país, segundo os dados.

Assim, da violência contra Linn da Quebrada até o homicídio nas ruas, tudo isso mostra que a transfobia é um crime que não tem idade, classe ou raça, mas que segue escancarado para o Brasil todo ver e, muitas vezes, não fazer nada.

No fim, fica o questionamento: será que tudo isso é tão mimimi assim?

 

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