Trabalho e religião pavimentam caminho de quem está prestes a sair da prisão
Projetos qualificam e profissionalizam detentos
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“Eu tive uma infância boa. Não tinha tudo, mas foi boa. O problema foi quando eu cresci e queria mais. Conheci pessoas que queriam o mesmo e, quando vimos que poderia ser fácil, caímos”. Flávio Gonçalves é carpinteiro, tem 37 anos e já passou mais de 17 na prisão. Ciente da caminhada que traçou até aqui, ele não esconde que o que o levou ao mundo do crime foi a vontade de ter bens materiais de forma rápida e teoricamente fácil: o assalto.
Nascido e criado em São Paulo, ele foi preso pela primeira vez aos 18 anos e logo conheceu uma das mais citadas penitenciárias do Brasil, o complexo penitenciário Dr. José Augusto César Salgado, popularmente conhecida como Tremembé, nome da cidade que a abriga. Depois de 3 anos e seis meses, foi para o semiaberto e quatro meses depois estava novamente no regime fechado pelo mesmo crime.
Entre as idas e vindas, foi transferido para Dourados, já com 24 anos. Passou pelo presídio Federal, pelo Complexo de Segurança Máxima e em 2011 voltou ao semiaberto. Conseguiu liberdade condicional, mas, mais uma vez, voltou ao regime fechado por um Boletim de Ocorrência que estava arquivado, porém resultou na suspensão do benefício.
Em 2016, Flávio passou a fazer parte da estatística de presos que trabalham. Já no Centro Penal Agroindustrial da Gameleira, ele se integrou ao projeto ‘Pintando a Liberdade’ do qual participa até hoje, mesmo novamente em liberdade condicional. Levou quase duas décadas, mas o carpinteiro percebeu que o jogo de gato e rato com o crime o deixava, no fim, num beco sem literalmente sem saída.
A ressocialização, que antes soava como piada aos seus ouvidos, agora é contada como exemplos aos colegas internos. “É a força pra gente mudar de vida, pra gente poder fazer planos, enxergar oportunidade. É só aproveitar a aprendizagem”, conta ele que quer mais que dar forma à madeira, quer ser espelho à família.
No currículo, o carpinteiro tem os trabalhos que fez nos telhados das escolas públicas reformadas com a mão de obra carcerária. Agora, em condicional, usa o que conseguiu de bom em toda história turbulenta na prisão, como vitrine. “Eu mostro pros clientes o trabalho que fiz e eles gostam, me contratam”, comemora.
Daquele clichê de que não seríamos o que somos hoje sem as experiências pelas quais passamos, Flávio é exemplo. “Talvez se não tivesse sido preso, passado por tudo isso, estivesse ainda por maus caminhos”, reflete.
Na labuta
Hoje Mato Grosso do Sul tem 3.391 presos em regime aberto e semiaberto, sendo que 1.496 estão em Campo Grande, segundo levantamento feito pela Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) em dezembro passado. Destes 2.2 mil trabalham e 163 empresas privadas firmaram parceria com o sistema prisional e usam mão de obra carcerária.
Conselhos de comunidades também engrossam esses números. A remuneração é estabelecida de acordo com a Lei de Execução Penal, já que a regulamentação trabalhista dos detentos não se enquadra na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Sendo assim, conforme a LEP, cada um deles deve ser remunerado em pelo menos ¾ do salário mínimo, equivalente a R$ 715, mas, segundo assessoria de imprensa da Agepen, há esforço para que a ocupação de presos do semiaberto e aberto, em geral, seja de, pelos menos, um salário mínimo, atualizado em 2018 para R$ 954.
A lei não prevê ao empregador as obrigações como pagamento de 13º salário, férias e recolhimento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). Desde 2014, em Campo Grande, existe portaria assinada à época pelo juiz Albino Coimbra Neto, para que 10% do salário do condenado fique em uma conta que é controlada pelo Judiciário. O dinheiro arrecadado é usado para ajudar no custeio de projetos como o ‘Pintando e Revitalizando a educação com Liberdade’, por exemplo.
Vale lembrar que o trabalho e o estudo contribuem para remição de pena. Aos que exercem função o abatimento de pena é de um dia para cada três trabalhados. Já os que preferem estudar têm um dia de pena a menos a cada 12 horas de frequência escolar divididas, no mínimo, em três dias.
Segundo dados do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) divulgados em dezembro passado pelo Ministério da Justiça, apenas 15% dos 726.712 encarcerados estudam no Brasil e 12% trabalham. Dos que estão envolvidos em atividade laboral, ¾ não recebem pagamento ou ganham menos de 75% do salário mínimo.
Qualificação
A qualificação profissional também chega aos presídios por meio de parcerias. Em 2017 foram mais de 1.100 reeducandos capacitados através do Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), bem como por instituições do sistema ‘S’, Fundação Ulisses Guimarães, conselhos da comunidade, congregações religiosas e o IFMS (Instituto Federal de Mato Grosso do Sul).
Na área educacional, somente no ano passado, foram mais de 3.8 mil detentos matriculados no ensino regular dentro das unidades prisionais do estado. Número 73% superior ao de 2016, quando cerca de 2.2 mil participaram das atividades escolares.
Para ministrar os cursos, os técnicos vão até os complexos prisionais ou, no caso do semiaberto e aberto, ao local de trabalho, como tem feito o instrutor do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) José Estrela. Ele acompanha a reforma na escola estadual Aracy Eudociack, bairro Tijuca, que conta com a mão de obra de 22 internos do semiaberto e de Flávio, que está em condicional, mas segue com a carpintaria no projeto Pintando a Liberdade.
Estrela explica que cada um dos trabalhadores recebe a qualificação na prática durante um mês e a parte teórica é dada por apostila entregue aos participantes. Os certificados são entregues ao fim de cada curso. Esta é sua terceira turma e confessa que no início teve receio de ter dificuldade em lidar a situação, mas depois viu que se trata de profissionais aptos ao mercado de trabalho.
“Todos estão focados e não querem mais coisas ruins para vida deles”, conta. Outra percepção que teve foi o apego à religião que grande parte deles nutre. Uma forma de conseguir chegar ao fim da jornada de reaprendizagem sem desistir. “Nesta obra aqui chegaram até a fazer uma oração. É bacana de se ver”.
Religiosidade
Parece enredo de filme, mas a história de Roberto Faiçal, 46 anos e nascido em Rochedo, foi costurada por prisões e fugas, mas o capítulo final está sendo escrito com base na fé. Em 1998 ele acabou preso por assalto e condenado a três anos e cinco meses de prisão em regime fechado. Quando foi para o semiaberto, não conseguiu se adaptar.
“Naquela época não era como e hoje. Era um tempo perdido que a gente ficava parado, então eu fui para Rochedo trabalhar”, fato que caracterizou fuga e o privou de liberdade novamente. Foi aí que a situação ficou mais grave. O apenado diz que, embora agora haja mais chances de ressocialização, o sistema prisional em todo o Brasil, refém de superlotação e condições precárias, tende a destruir qualquer resquício de bondade ou vontade de recomeçar aos presos.
“Você é preso roubando um pacote de arroz no mercado, mas saí de lá roubando até carro forte. Hoje o regime fechado tem falha porque quase não abrange o social”, avalia. Então, quando conseguiu ir para semiaberto novamente, em 2007, não pensou duas vezes e fugiu. Se integrou a uma facção e rodou por meses entre Bolívia, Paraguai e Brasil.
Em 2009, estava com assalto grande já estruturado, apenas esperando o momento certo de tirá-lo do papel, quando um conhecido o chamou para um culto na igreja evangélica. Por mera curiosidade, ele topou, mas depois de ter a experiência, relata, não conseguiu retornar de consciência limpa ao crime.
“Assisti a outros cultos e não sabia mais como fazer as coisas erradas, desaprendi. Não queria mais fazer parte daquilo. Então não voltei mais. Larguei tudo, documentos, roupas, pertences e nunca mais voltei”. De 2010 a 2014 buscou empregos em obras e chegou a ser contratado em três empresas. Mas, em um dia de folga que estava em Rochedo, um colega informou que havia um mandado de prisão de 2010 em aberto para Faiçal, resultado da fuga do semiaberto.
Agora homem de Deus, ele não pôde se negar a retornar à prisão e assim o fez. Hoje, novamente no semiaberto e prestes e já com pedido condicional em andamento, o ex-traficante trabalha como eletricista nas obras realizadas por reeducandos nas escolas estaduais e, assim como Flávio, pretende continuar mesmo após conseguir cumprir a pena em liberdade.
“Vou continuar enquanto quiserem que eu continue”, diz ele, que é pai de seis filhos, dois com ensino superior, outros dois quase na fase no vestibular e mais dois que ainda estão na escola. A mensagem final deste que é autor desta história que renderia um livro, é o apelo por mais participação do poder público no processo de ressocialização. “Eu acredito na ressocialização, peço que o sistema também acredite”.
Projetos
O programa Construindo a Liberdade foi lançado em Mato Grosso do Sul em junho de 2009, quando o governador era André Puccinelli (PMDB), com intuito de qualificar profissionalmente apenados que cumprem condenação em presídios do estado, elevar a escolaridade e sensibilizar o setor empresarial a empregá-los.
Para colocá-lo em prática foi necessário firmar parceria com a Agepen, Setas (Secretaria de Estado de Assistência Social), Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Mulher, Sehab (Secretaria de Estado de Habitação), Funtrab (Fundação do Trabalho), SED (Secretaria de Estado de Educação) e Sinduscon (Sindicato Intermunicipal da Indústria da Construção do Estado de MS).
Já no final de 2013, foi criada uma vertente do programa, batizada como ‘Pintando Educação com Liberdade’ que usa o trabalho carcerário para reformar escolas estaduais, efetuado pela Agepen e SED e idealizado pelo titular da 2ª Vara de Execução Penal da Capital, Alberto Coimbra Neto. De lá para cá já foram oito unidades: E.E. Alice Nunes Zampiere, E. E. Emygdio Campos Widal, E.E. José Ferreira Barbosa, E.E. Padre José Scampini, E.E. Professora Flavina Maria da Silva, E.E. Delmira Ramos; E.E. Brasilina Ferraz Mantero e E.E. Padre Mário Blandino.
A 9ª é a E.E Aracy Eudociack, na qual Flávio e Faiçal trabalham, deve ser entregue no início de março. Segundo a agência do sistema penitenciário, somando todas as reformas, foram poupados aproximadamente R$ 6 milhões que seriam tirados dos cofres públicos. Os 10% retirados dos salários dos detentos são usados, neste caso, para complementar o gasto com material de construção.
Nesta última escola, que existe há 30 anos, o investimento total foi de R$ 372 mil e inclui troca integral da parte elétrica, hidráulica, pintura, criação de locais com acessibilidade para alunos cadeirantes, além da construção da nova minibiblioteca e do estacionamento de motos. A unidade conta com 11 salas, 114 servidores e atende 1.200 alunos, desde o 2º ano do ensino fundamental até a EJA (Educação de Jovens e Adultos).
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