Mulheres trans também reivindicam o 8 de Março para simbolizar suas lutas

 

Ano de 2015, Parada LGBT de São Paulo, a maior do Brasil. Ela surgiu em meio à multidão, corpo esbelto, cabelos longos, seios firmes e uma beleza irretocável. Entretanto, o que chamava atenção, mesmo, era sua caracterização. Na cabeça, coroa de espinhos. No resto do corpo, ferimentos e marcas de agressões simulados. Além disso, carregava, literalmente, uma cruz, que seria utilizada, mais a frente, para uma performance de protesto em que representaria uma crucificação. Viviany Beleboni é o nome que ficou conhecido nacionalmente com a encenação reduzida a blasfêmia. Modelo e ativista trans, o único propósito dela era mostrar que as pessoas de sua comunidade, sobretudo as mulheres trans, enfrentam calvários diários na luta pelo direito à identidade.

As vulnerabilidades a que Beleboni se referia na crucificação são um fato. Tanto é que pouco tempo depois, após sair sozinha de casa, ela mesma foi vítima de uma agressão orquestrada. Além dos murros, chutes e socos, também foi esfaqueada por dois homens. “Queriam cortar minha barriga, mas me esquivei. Cortaram meu braço, rasgaram meu maxilar. Enquanto me batiam, disseram que eu era um lixo, que tinha parte com o demônio e que não merecia viver”, disse.

Os crimes cometido contra ela passaram inócuo, desde a performance na Parada como seu espancamento, semanas depois. Nas redes sociais, colecionava-se ofensas gratuitas. Beleboni foi, e possivelmente ainda é, considerada uma espécie de escória social, tudo porque luta pelo direito de ‘ser' – no caso, mulher. Não só ela, mas milhares de outras mulheres transexuais Brasil a fora têm uma história assim para contar, ao menos as que sobrevivem. A luta pelo reconhecimento da identidade feminina é, sim, uma via-crúcis, às vezes, com mais de 15 passagens.

Esta é mais uma das reportagens especiais em alusão do dia 8 de Março, que buscam problematizar aos leitores as violências cotidianas enfrentadas pelas mulheres. Mas, no caso das transexuais, as ocorrências ganham tons ainda mais nebulosos, já que nem mulheres são consideradas. São desprezadas pela sociedade e igualmente desprezadas por parte das  feministas. Sem o apoio do movimento social, acabam empurradas, mais uma vez, para baixo do tapete. E é de interesse de muitos que elas continuem lá.

Luta pelo ‘ser'

 "O problema é achar que só é mulher quem tem útero", diz Carla Catelan / Divulgação” Já é difícil ser mulher, ha toda essa questão do machismo, do patriarcado e tudo mais. Mas, no caso das mulheres trans, há diferenças, porque além de você sofrer com esse machismo, somos deslegitimadas como mulheres, por não termos útero, seios naturais. Não é que a violência que sofremos seja maior que a de mulheres cisgênero (que tem a identidade de gênero em acordo com o sexo biológico), não é isso, mas é uma violência localizada a nós, assim como há violências localizadas com a questão de ser negra ou lésbica. A nós, é negado o direito de ‘ser' e, a partir daí, surgem outras variáveis”, explica a assessora parlamentar Carla Catelãn, que também é militante trans em .

Segundo ela, a ideia embutida na sociedade de que os gêneros se resumem ao biológico é o primeiro passo para que as violências específicas aconteçam. “É a partir daí que a gente vê as coisas ocorrerem, tipo uma receita de bolo. A família não aceita a identidade trans. Pode aceitar ter um filho gay, mas ter um filho que ‘se veste de mulher' não dá. Daí é expulsa de casa, interrompe estudos, nunca consegue um trabalho no mercado formal e acaba indo para a prostituição. Na rua, é espancada, exposta, humilhada”, afirma.

Na luta pelo ‘ser', a principal reivindicação de mulheres trans é desconstruir a ideia de que ser mulher é uma questão biológica, mas cultural. E fugir dessa lógica essencialista pode ser uma grande contribuição, por exemplo, para por em xeque a ideia da mulher como um sexo frágil. Tanto é que mulheres trans reivindicam, sim, o 8 de Março como uma data também para simbolizar as lutas transfeministas.

 "O 8 de Março fala sobre igualdade e não exclusão", diz Pamella Yule / Divulgação“O 8 de Março tem a ver com luta por igualdade de direitos, respeito, valorização”, pondera a professora de artes e fotógrafa Pamella Yule. Enquanto mulher transexual, ela considera que o segmento de militantes feministas que rechaçam a presença de mulheres trans no movimento – as RadFem – é um retrocesso.

“Elas acham que o problema de ser abordada agressivamente por homens abusadores na rua seja um problema exclusivamente de mulheres cisgênero, mas há outras realidades. A mulher trans também é objetificada, exotificada. O machismo não acontece só contra quem pode engravidar. Falar de pautado no sexo biológico é excluir muita gente, inclusive mulheres que nascem sem útero”, aponta Yule.

Este é argumento semelhante apontado por Carla. “Tem muitas mulheres que não tem útero, que não tem toda a fisiologia feminina. E aí, elas ficam de fora? Eu acho que uma das maiores vantagens do feminismo é justamente essa possibilidade de unir mulheres cis e trans contra o machismo e a misoginia, mas precisamos superar essa questão do entendimento biológico, pelo menos dentro do movimento”, afirma Catelãn.

Novas perspectivas

No entendimento de Carla, a propósito, o 8 de Março ganha um sabor especial quando se constata que existe acolhimento por parte de integrantes do movimento. “Eu acho que o mais importante na conquista das mulheres trans é esse acolhimento dentro do feminismo, que vem superando a questão biológica.

“Não vou dizer que é algo assim, universal, mas temos encontrado apoio em muitos grupos de feministas, que entenderam que basear a nossa luta na questão biológica é naturalizar a violência a que as mulheres sofrem. Penso que daqui pra frente podemos ter uma nova perspectiva e iremos finalmente lutar juntas”.