De quem é o papel de decidir onde uma cidade vive ou morre? Quem tem o poder de definir onde ela é celebrada e frequentada? E quem determina onde essa mesma cidade ficará sombreada, inacessível e inabitada? Há várias formas de responder a estas perguntas. E já adianto que responsabilizar apenas o poder público é a mais simples delas, entre tantas possíveis.

Isso porque, até na mais eficiente das administrações, sempre haverá mais de um olhar sobre o mesmo espaço. É a partir deles que se cria a ideia de quem deve ou não pertencer a um lugar. E assim saberemos se, aos olhos da maioria, os espaços públicos são democráticos ou, apenas… públicos. Dá para entender?

Estranhamente, o tema é extremamente oportuno e atual para Campo Grande, que completa, na próxima segunda-feira (26), 125 anos de sua fundação.

A partir de hoje (19), o Jornal Midiamax publica uma série especial sobre a cidade em celebração ao aniversário. Nesta, o tema é a importância da ocupação de espaços públicos, vide o debate que ocorre, neste momento, sobre a Rua 14 de Julho.

Mas, é preciso voltar um pouco na história.

Em Campo Grande, ocupar é sinônimo de existir?

A ideia parecia boa no papel, mas em 2013, tão logo após uma turbulenta sucessão política na Prefeitura de Campo Grande, a recém-inaugurada Orla Ferroviária mais pareceu um presente de grego, por assim dizer. E talvez você se nem lembre por quê.

Pontilhão da Orla Ferroviária em 2016 (Acervo Municipal, Divulgação)

A obra criou um circuito linear a partir da Avenida Afonso Pena, no curso da Avenida Noroeste, até a Avenida Mato Grosso. Consumiu parte dos R$ 16 milhões oriundos de empréstimo internacional, divididos com a revitalização da Orla Morena, no Cabreúva – outra obra que também seguiu o percurso dos trilhos.

Até aí ok, porque o projeto da Orla Ferroviária tinha a poesia de celebrar as raízes da cidade, dando função ao imenso vazio urbano que surgiu da retirada, anos antes, dos trilhos da ferrovia.

Revitalizado, o parque linear ganhou quiosques em formato de vagões. A ideia era que ali ficassem restaurantes, bares, que funcionassem como pólos de gastronomia com o potencial de atrair frequentadores.

Na prática, porém, não foi isso que ocorreu. Em parte, porque o investimento ocorreu em uma imensa área de fundo de lote, que não levava nada a lugar nenhum, já que apenas trens passavam por lá.

Os vagões-restaurantes em 2012 (Acervo Municipal, Divulgação)

Assim, as altas expectativas da Prefeitura, na época, foram em vão. Inclusive, a ideia visionária do espaço se tornar uma espécie de “Rua 24 horas” – algo que nem a Avenida Bom Pastor é, ainda, capaz de proporcionar.

Outra expectativa era de que os proprietários dos imóveis simplesmente abrissem novos acessos nos fundos – potencialmente transformando seus imóveis em empreendimentos comerciais.

O que ocorreu, na verdade, foi um grande “nada”.

Ideia “flopou” e esforços de re-revitalizar foram em vão

Desde o início, o local simpático com bares em formato de vagão a cada quadra não animou os frequentadores. E até hoje não se tem uma resposta clara sobre como tanto dinheiro investido simplesmente não trouxe um resultado, mas acabou criando problemas.

E em toda cidade grande há uma regra não verbalizada que explica, em parte, a tônica atual daquele espaço: a ocupação é inevitável, seja por um ou outro grupo social. Muito antes de 2013 acabar, já havia claros sinais de que o projeto precisaria de uma forcinha – o que só aconteceu em 2016, após quatro prefeitos passarem pelo Paço Municipal, a contar da execução da obra.

Mas não teve jeito, campo-grandenses viram o espaço se tornar reduto de dependentes químicos. Dali em diante foi de água abaixo. Os quiosques com espaço para cozinha e até um pequeno banheiro, pagaram o pato numa espécie de redução de danos do caos que ali se formou: frequentes incêndios ocasionados por moradores de rua, além da criminalidade simplesmente disparar por ali, obrigando a Prefeitura a proceder com a remoção.

A retirada do último vagão ocorreu em 2022, já na sexta gestão desde a entrega da obra de requalificação. Morria, ali, a Orla Ferroviária, com praticamente “zero” chances de uma ressurreição. Em diversas ocasiões, a atual administração da Prefeitura de Campo Grande não pontuou nenhum plano de ação para a área, além do monitoramento pelas forças de segurança pública.

Há mais pontos de abandono em Campo Grande

O projeto da Orla Ferroviária foi natimorto. Contudo, outro ponto de esquecimento e que, atualmente, também enfrenta graves problemas com dependentes químicos e moradores de rua, já teve seus momentos de realeza na cidade.

Antiga Rodoviária
Antiga Rodoviária de Campo Grande, Mato Grosso do Sul – Acervo ARCA, (Nathalia Alcântara, Jornal Midiamax)

No bairro Amambaí – o primeiro loteamento urbano criado na cidade para além do Centro – a antiga rodoviária já foi joia da Coroa. Atualmente em revitalização, o prédio do Centro Comercial Condomínio Terminal D’Oeste funcionou como o principal centro comercial de Campo Grande por muito tempo. Dois cinemas, restaurantes, lanchonetes e lojas de diversos tipos davam ao local uma “cara de shopping”.

Espaço já estava decadente

Em 2009, quando a Prefeitura desativou a estação Rodoviária Heitor Eduardo Laburu, anexa ao prédio, embarques e desembarques mudaram para a estrutura construída na Avenida Gury Marques. A região, contudo, já não ia bem e enfrentava sua decadência.

Os cinemas suntuosos já não funcionavam – pelo menos um deles exibia filmes adultos até ter as portas lacradas. A diversidade de outrora nas lojas perdeu espaço para o mármore e ar climatizado dos shoppings em outros pontos da cidade.

Antiga Rodoviária
Antiga Rodoviária em obras (Nathália Alcântara, Midiamax)

Mas a situação piorou – e muito – após 2009. Os mesmos dependentes químicos que ocuparam a Orla Ferroviária pareciam se multiplicar, revelando um outro problema na cidade. E agora eles também estavam na rodoviária antiga.

Uma tentativa de restabelecer o fluxo e evitar essa ocupação no local ocorreu em 2011, quando as tradicionais lanchonetes do canteiro central da Avenida Afonso Pena saíram de lá e foram para o Terminal D’Oeste. Não deu muito certo: quem sustentava a família com venda de lanche viveu prejuízo e precisou se reinventar, assim como os comerciantes que permaneceram no prédio comercial.

As cenas que virão a seguir ainda são desconhecidas. E tudo indica que o resultado demorará a aparecer, tornando a revitalização do espaço um sonho distante. Que lição, afinal, a cidade aprendeu com a Orla Ferroviária?

História de Campo Grande amarga incógnita com futuro da Rotunda

A conta também não fecha no complexo ferroviário de Campo Grande. Apesar de uma parte do equipamento estar bem conservado, a Rotunda enfrenta um abandono que já se aproxima de três décadas e também é um espaço sem vida, a não ser por seus atuais frequentadores: sim, dependentes químicos e moradores de rua.

O local voltou ao centro do debate público em abril deste ano, após uma tempestade fazer parte da estrutura desabar. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) autuou a Prefeitura de Campo Grande devido a falta de manutenção.

A expectativa da Prefeitura era que a verba para a revitalização – o espaço viraria um centro cultural – viesse do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), mas o recurso não chegou, deixando uma enorme conta para o município resolver.

Revitalização deverá transformar local em Centro Cultural (Alicce Rodrigues, Midiamax | Divulgação, Prefeitura)

Imbróglio judicial se arrasta e chegou ao STJ

Isso porque, desde 2018, o MPMS (Ministério Público Estadual) move ação pedindo a conservação do complexo ferroviário de Campo Grande. O Parquet chegou a perder a causa após o juiz entender que o local já estava reformado, considerando apenas o espaço que compreende o armazém cultural e a Esplanada. Contudo, na apelação, o MPMS apontou que a sentença observou apenas as partes já reformadas e ‘esqueceu da Rotunda’.

“A rotunda, que faz parte do Complexo Ferroviário, encontra-se em lamentável e precário estado de conservação. Necessita urgentemente de, no mínimo, obras paliativas para evitar sua ruína”, traz a argumentação.

Assim, a decisão de primeiro grau foi reformada e condenou a Prefeitura de Campo Grande a restaurar a Rotunda no prazo de 180 dias, sob pena de multa. Por haver possibilidade de recursos, o Município chegou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para não cumprir a decisão, o que ocorreu em 2024 – 6 anos após a conclusão do inquérito do Ministério Público e oferta de denúncia à Justiça.

Desde então, o impasse persiste e o local permanece em completo abandono.

A 14 de Julho nunca morrerá, mas é preciso (muita) atenção

Diferente dos outros espaços onde a cidade vive sombreada e entregue à própria sorte, a Rua 14 de Julho nunca morrerá. Ou, pelo menos, poderá enfrentar esse processo de forma bem mais lenta. Revitalizada em 2019, a principal via de comércio varejista tradicional vive tempos áureos.

VÍDEO: Revitalizada há 1 ano, 14 de Julho é esperança de boas vendas e atração turística em Campo Grande
Rua 14 de Julho (Leonardo de França, Arquivo Midiamax)

Mas, há sintomas visíveis que revelam a necessidade de pensar estruturalmente o futuro da via que custou R$ 60,4 milhões. A vizinha Avenida Calógeras, inclusive, é um exemplo de que ruas podem, sim, esmaecer. A Calógeras, no caso, respira por aparelhos e tem os sintomas em estágio avançado.

Inauguração da 14 de Julho, em 2019 (Leonardo de França, Arquivo Midiamax)

Um deles é justamente a (pouca) ocupação das lojas pelo comércio, atualmente, a principal função das vias. Há exatos 12 meses, o Jornal Midiamax publicava que a alta no aluguel desanimava empresários e imóveis vazios se espalham pela 14 de Julho.

E há várias razões para isso. Desde os prejuízos ocasionados pela própria reforma, assim como a valorização dos imóveis e até mesmo a pandemia de covid-19 impulsionaram um fenômeno que somente em alguns anos mostraria suas garras com mais intensidade: o crescimento no comércio dos bairros, assim como o fortalecimento do e-commerce.

(Nathália Alcântara, Arquivo Midiamax, 2023)

Com isso, as idas ao Centro se tornarem praticamente opcionais. Quero dizer: o passeio precisa ser atraente para justificar o deslocamento de seu bairro até o Centro, num circuito que contempla pagar caro no transporte e com menos vagas de estacionamento. Tudo para adquirir algo que provavelmente está disponível nos corredores comerciais nos bairros ou a poucos cliques de distância, com chegada pelos correios – muitas vezes, com frete grátis.

Pertencimento e amor pelo Centro são chave para a Rua 14 não morrer nunca

Um dos pontos que faz uma eventual morte da Rua 14 de Julho pouco provável, apesar de todas as intempéries já apresentadas, tem a ver com o sentimento de pertencimento que ela proporciona. Bem ou mal das finanças, a via sempre foi um corredor importante. E isso já muda tudo.

Historicamente, a via sempre foi uma referência, tanto geográfica como econômica. E permanece sendo, afinal, é a rua que originalmente conecta diferentes regiões da cidade, por onde diferentes gerações caminharam, fizeram cortejos, namoraram… E, agora, reformada. A concorrência é realmente desleal com as ruas vizinhas. 

E agora dá até pra garotada tomar uma cervejinha, digo eu, referindo-me a uma nova onda: o (re)surgimento de bares no local.

Fenômeno observado na Rua 14 de Julho é tendência mundial

Lembra dos quiosques da Orla Ferroviária, que foram colocados pela Prefeitura na via para atrair público? Então, isso também está acontecendo na Rua 14 de Julho, mas de forma mais orgânica e espontânea, digamos assim.

Rua 14 de Julho Revitalizada à noite, nos fins de semana (Reprodução, Instagram)

Sem participação direta do Executivo para fomentar essa ocupação, empresários apostam na via e, desde o final de 2023, a Rua 14 de Julho já experimenta o sucesso do movimento comercial de um terceiro turno.

A propósito, isso foi exigência do BID (Banco Interamericano do Desenvolvimento): o projeto apresentado ao banco apostou no fomento à moradia para garantir naturalmente um 3º turno, fazendo com que os recursos fossem liberados.

Ainda assim, a ideia precisaria ser colocada em prática de qualquer forma. É preciso gente morando ou frequentando o Centro para que a via revitalizada não morra.

Movimento em 3º turno vem pelo entretenimento ou pela habitação?

Isso, por sinal, foi tema de uma das maiores discussões vazias da cidade dos últimos tempos, quando a proposta de inscrever o antigo Hotel Campo Grande num retrofit para moradia popular acabou desagradando os comerciantes, que chamaram o projeto de “Favelão Vertical”.

E que resposta dar, ainda mais quando a densidade populacional do Centro cai cada vez mais com o passar dos anos, conforme revelou o Censo 2022? A questão da habitação central, aos olhos do município, está resolvida com um projeto de moradia com aluguel social, conhecido como Vila dos Idosos, que vai proporcionar moradia vitalícia a idosos que se enquadrem em algumas exigências socioeconômicas, e por valor praticamente simbólico.

Outra frente de fomento habitacional no entorno está numa parceria público-privada conhecida como Condomínio Belas Artes que, com 792 apartamentos, deve ajudar também com a situação enfrentada pelo prédio de Belas Artes na Avenida Ernesto Geisel, na Vila Planalto.

Isso porque o local abrigaria uma rodoviária e também foi abandonado décadas atrás, restando apenas a estrutura de concreto, que também serve de abrigo a dependentes químicos e moradores de rua.

​​Bares dão fôlego e revelam potencial desconhecido

O movimento “pra valer” começa nas sextas-feiras. São rodas de samba, música eletrônica, karaokê e bandas de rock, que atraem multidões. Se existe, em Campo Grande, um novo point da diversão, ele está inegavelmente na Rua 14 de Julho, nas proximidades do cruzamento com a Maracaju.

(Guilherme Cavalcante, Midiamax)

A partir do primeiro bar no local, outros vieram. Não por acaso, mas por articulação. O sentimento de competição e concorrência parece perder espaço para certa sinergia e desejo de ver o Centro ocupado.

E a tendência é que venham muito mais. Especula-se que pelo menos mais dois bares podem surgir na via ainda neste ano. Com o potencial descoberto, só ganha forma o sonho da 14 de Julho Revitalizada (como os empresários têm chamado a via) se tornar um point perene de entretenimento.

Muitas frentes ganham com isso. Juventude, proprietários dos prédios disponíveis para locação, a cidade. E a Prefeitura, claro, já que a receita de ISS (Imposto sobre Serviço) gerada pelos frequentadores deve somar uns bons trocados a mais nos parcos cofres municipais.

Associações fazem frente a qualquer resistência

A organização desses grupos, contudo, parece ser obrigatória e urgente, enquanto a Prefeitura ainda patina sobre o que fazer e como normatizar o uso da 14 no terceiro turno de entretenimento. É que têm sido frequentes batidas policiais, até mesmo com relato de gás de pimenta para dispersão de frequentadores.

Campo Grande está repleta de associações, seja de empresários ou de moradores. As principais são a ACICG (Associação Comercial e Industrial de Campo Grande) e a CDL (Câmara dos Dirigentes Lojistas), com grande influência frente às autoridades. No ramo de bares e restaurantes, a Abrasel-MS também atua na defesa desses empresários.

Mas o maior exemplo, no olhar da reportagem, está a poucas quadras do epicentro da Rua 14, na Feira Central. A Afecetur (Associação da Feira Central, Cutural e Turística de Campo Grande) é um dos grupos que, ao longo do tempo, mais obteve conquistas em defesa de seus associados. Não seria o momento dos fãs e investidores da 14 de Julho Revitalizada fundarem sua entidade e conquistarem um lugar à mesa, também?

Rua 14 de Julho já é corredor cultural e gastronômico

Uma das propostas é impedir o trânsito de veículos em uma ou duas quadras da Rua 14 de Julho nos dias de grande movimento, como as noites de sexta-feira e de sábado. A ideia já é amplamente aplicada em diversas cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Fortaleza e outras capitais. Aqui mesmo o fechamento da Rua 14 de Julho já ocorreu, em ocasião de shows culturais, na época da inauguração da reforma.

Ainda assim, a primeira vitória veio de outra forma: no último dia 6 de agosto, a Câmara de Campo Grande aprovou, em regime de urgência, o PL 11.164/23, que transforma o trecho da via entre a Marechal Rondon e a Avenida Mato Grosso mum corredor gastronômico e cultural.

Se sancionado pelo Executivo, a proposta garante desconto no IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), o que pode promover uma redução do valor do aluguel. O PL também garante trânsito livre de pessoas, medidas de segurança, repressão a ambulantes e apresentações artísticas em geral, assim como a realização de festivais. Será que vem aí?

(Contribuíram com esse texto os arquitetos e urbanistas Valter Cortez, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul; e André Vilela, arquiteto do Iphan e também integrante do Conselho Municipal de Políticas Culturais e Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico, ambos em Campo Grande; além de empresários da região central, frequentadores e entusiastas do Centro, também ouvidos pela reportagem).

#CG125 – Campo Grande faz aniversário!

O Jornal Midiamax iniciou a partir de 19 de agosto a publicação de uma série de reportagens com perspectivas sobre a Capital sul-mato-grossense, que completa, no dia 26 de agosto de 2024, 125 anos de sua fundação.

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