Entre os diversos pontos que recontam a história de , um se destaca como um dos mais negligenciados da cidade. Há anos esquecida, foi necessário um temporal danificar o pouco que restou de sua estrutura para que a Rotunda – que integra o Complexo Ferroviário – voltasse ao centro do debate público.

Construída em 1935 e desativada no final da década de 90, a Rotunda antes era destinada para a manutenção de locomotivas e vagões. Hoje, tornou-se abrigo para pessoas em situação de rua e usuários de drogas e retrato do abandono e descaso com o Patrimônio Histórico e Cultural da cidade que se desenvolveu pelos trilhos de trem.

Em pouco tempo, uma das regiões mais movimentadas da Capital viu-se envolta ao abandono. Comércios fecharam as portas, moradores venderam suas casas e o local que um dia foi ponto de chegada tornou-se a última parada para aqueles que perderam tudo.

‘Reforma apenas no papel'

Passadas quase três décadas, o local – que fica no cruzamento da Eça de Queiroz com a Rua 14 de Julho – voltou ao centro do debate público no último domingo (7), depois que a antiga estrutura de madeira não resistiu ao impacto das chuvas e desabou.

Após uma inspeção no local, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) emitiu um laudo de fiscalização sobre as condições da área. Com base no documento, o Instituto emitiu auto de infração em nome da Prefeitura de Campo Grande, responsável pela gestão e manutenção do local.

Telhado de prédio desabou no fim de semana (Foto: Reprodução)

De acordo com o Iphan, o auto de infração pode resultar em multa e/ou termo de compromisso para a prefeitura da Capital.

Nas redes sociais, o vereador Ronilço Guerreiro cobrou respostas do executivo municipal sobre as obras de revitalização e lamentou o abandono do local.

“Um espaço tão importante para nossa história, já recebeu inúmeras promessas de revitalização, projetos de reforma. Um dos últimos em 2020, tinha ideia de transformar o espaço em um polo de cultura e turismo, mas nada saiu do papel. Além disso, o local serve de moradia para usuários de drogas”, disse Guerreiro.

Em reunião nesta quarta (10), o município informou que discute a revitalização de toda a área via projeto do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento).

Impasse se arrasta enquanto local entra em ruínas

O entrave se arrasta há anos. Em 2018, o (Ministério Público de MS) entrou com ação pedindo a conservação do complexo ferroviário de Campo Grade. O Inquérito que instruiu a foi instaurado após laudo constatar a precariedade do local, agravado após um vendaval em 2015.

No entanto, o Ministério perdeu a causa após o juiz entender que o local já estava reformado, considerando apenas o espaço que compreende o armazém cultural e esplanada. Na apelação em 2° grau, o MPMS apontou que a sentença observou apenas as partes já reformadas e ‘esqueceu da Rotunda'.

Rotunda
Estrutura deteriorada (Alicce Rodrigues, Midiamax)

“A rotunda, que faz parte do Complexo Ferroviário, encontra-se em lamentável e precário estado de conservação. Necessita urgentemente de, no mínimo, obras paliativas para evitar sua ruína”, dizia a ação.

Assim, a decisão de primeiro grau foi reformada e condenou a Prefeitura de Campo Grande a restaurar a Rotunda no prazo de 180 dias, sob pena de multa. Por haver possibilidade de recursos, o Município chegou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para não cumprir a decisão, o que ocorreu em 2024 – 6 anos após a conclusão do inquérito do Ministério Público e oferta de denúncia à Justiça. Desde então, o impasse persiste e o local permanece em completo abandono.

Rotunda
Interior da Rotunda (Alicce Rodrigues, Midiamax)

Conforme a contestação da Prefeitura, em 2022 o município submeteu proposta de financiamento ao Ministério de Desenvolvimento Regional, por meio do Programa Pró-Cidades. Dessa forma, criou-se um projeto de reforma e adequação do Complexo Ferroviário, com investimento total de R$ 91 milhões.

Na proposta, estavam previstos investimentos para restauração de todo o Complexo da Rotunda da Ferrovia, incluindo galpões e seu entorno, sendo destinado o valor de R$ 44.163.166,54, mas somente projetos do município de Corumbá foram contemplados.

Projeto de revitalização

Em 12 de outubro de 2020, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) anunciou um projeto de revitalização do local que seria entregue à Prefeitura de Campo Grande.

No ano seguinte, 2021, a Prefeitura afirmou ao Jornal Midiamax que a Sectur (Secretaria Municipal de Cultura e Turismo) e o Iphan estavam em contato para formalizar a entrega do projeto arquitetônico para a restauração da Rotunda e, uma vez concluída essa fase, iniciaria as negociações para a execução da obra.

À espera da reforma, população vive na insegurança

Rotunda
Portas fechadas em comércio (Alicce Rodrigues, Midiamax)

Em meio a todo esse impasse, moradores e comerciantes convivem com a insegurança diária gerada pela situação.

Claudiane Ajala trabalha em uma ótica localizada em frente à entrada da Rotunda e relata que precisou ampliar a segurança após furtos no comércio.

“Me sinto insegura aqui. Inclusive, já entraram na loja para roubar produtos, até quebraram uma janela. Há muitos usuários de drogas ali, sempre vêm aqui pedir coisas, por isso mantenho a porta sempre fechada, tenho medo”, relata.

A insegurança também é compartilhada pela aposentada Dalvira Neves, de 62 anos, que frequentemente pega ônibus em frente ao local. Para ela, o ideal seria que a Rotunda se transformasse em uma casa de apoio para idosos ou pessoas com deficiência.

“Sempre pego ônibus aqui quando preciso ir ao CEM (Centro Especializado Municipal). Durante o dia não é tão perigoso, mas à noite a situação fica feia, por isso evito passar depois das 18h”, diz.

‘Me sinto de mãos atadas'

Rotunda
Local era destinado aos vagões (Alicce Rodrigues, Midiamax)

Vanessa Almeida é balconista em uma inaugurada há dois anos em frente à Rotunda. Apesar de nunca ter sido assaltada, a vendedora ressalta que já passou por momentos de sufoco devido à falta de segurança na região.

“Já ocorreram diversos furtos. Eles entram, ficam enrolando e levam as coisas, pegamos tudo nas câmeras, mas nunca chamamos a polícia. Não fazemos nada porque temos medo de abordá-los e nos atacarem, me sinto de mãos atadas”, diz.

Conforme a balconista, aos fins de semana a situação fica ainda pior, com os comércios ao lado fechados. A alternativa é encerrar o expediente mais cedo para evitar transtornos.

“No sábado, fico sozinha até às 19h, mas tem dias que acabo fechando mais cedo. Uma vez estava fechando a loja e um homem estava dentro da Rotunda me olhando. Por sorte, estava passando um senhor na hora e pedi ajuda a ele. Mas, sempre ficam ali observando como está o movimento, se estou sozinha”.

Moradora da região há 50 anos, Gleice Oliveira presenciou de perto a deterioração da Rotunda. Apesar de seu valor histórico, para ela, a única solução seria demolir tudo e criar um ponto comercial no lugar.

“Aqui tem muitos ‘noias'. Quando anoitece, eles bagunçam muito, dá para ouvir os barulhos. Inclusive, já entraram na minha casa, só que não conseguiram levar nada. Não sei como ainda não colocaram fogo em tudo, o ideal era construir um comércio ali”, relata

Complexo Ferroviário trouxe modernização à Capital

Estação Ferroviária
Antiga Estação Ferroviária (Arquivo Arca, Reprodução)

Em 1914, surgiram os primeiros esboços do que viria a se tornar o complexo ferroviário de Campo Grande, época em que a cidade inaugurou a primeira estação de passageiros da NOB (Estrada de Ferro Noroeste do Brasil), construída em madeira.

A infraestrutura atual, em alvenaria, foi erguida na década de 1930 pelo engenheiro Aurélio Ibiapina, com intuito de acomodar o aumento do fluxo de passageiros. A construção da Estrada de Ferro, no então Estado de Mato Grosso, visava modernizar a comunicação e conectar a região Centro-Oeste ao restante do país.

Rotunda
Antigo complexo ferroviário (Alicce Rodrigues, Midiamax)

Nas décadas seguintes, complexo ferroviário gradualmente toma forma, em especial entre os anos de 1930 e 1940. Assim, surgiram os armazéns de carga, a vila ferroviária, a Escola Álvaro Martins Neto (conhecida como Batatinha), os galpões e a Rotunda.

Conhecido como “abrigo de locomotivas”, o complexo tombado no nível municipal (1996), estadual (1997) e federal (2014), hoje abriga o Armazém Cultural, as casas que restaram na Vila dos Ferroviários, o IHGMS (Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul), a Esplanada e o que restou da Rotunda.

Importância histórica e cultural

Rotunda
Mato alto toma conta (Alicce Rodrigues, Midiamax)

Parte intrínseca da história de Campo Grande, o abandono da Rotunda reflete o descaso com os patriminios históricos e culturais da cidade.

Superintendente do Iphan-MS, João Henrique dos Santos, destaca que a Rotunda é um marco cultural da cidade e por isso deve ser preservada. Ele explica que o local surgiu como um espaço destinado à manutenção de locomotivas e vagões, o que trouxe benefícios significativos ao transporte ferroviário na época.

“A Rotunda foi uma das primeiras estruturas a utilizar o concreto armado em Campo Grande, além disso, possui dimensões monumentais, o que a difere de outras edificações do conjunto ferroviário. Sua construção foi crucial para melhorar o transporte ferroviário na época.”

Em 2023, a Sectur apresentou ao PAC Seleções, programa do governo federal, a proposta de contratação de projetos de arquitetura para o Complexo Ferroviário. No mês de março de 2024, o resultado do PAC Seleções contemplou a ação, com um recurso de 800 mil reais destinado a um projeto de revitalização da Rotunda ferroviária.

João Henrique explica que o Instituto trabalhou em conjunto com a Sectur para submeter o projeto de revitalização ao programa do Governo Federal PAC Seleções.

“Tivemos o projeto selecionado para receber um montante de R$ 800 mil em verbas federais, por isso, a concretização dessa ação é uma garantia de que, após esta etapa, será possível captar recursos para a execução das obras”, ressaltou.

Em 2021, o Iphan-MS disponibilizou, com exclusividade, imagens de como deverá ficar o espaço após a reforma.

Confira como deve ficar a Rotunda:

O projeto está dividido da seguinte maneira:

Rotunda – Edificação maior

  • Reserva Técnica – 38,64 m²
  • Espaço para exposições – 368,00 m²
  • Teatro com capacidade para 250 lugares
  • 03 salas multimídia
  • Complexo Administrativo
  • Café com cozinha industrial.
  • Cineclube
  • Banheiros
  • Espaço para eventos – 600,00 m²
  • Arquivo Histórico Municipal/Biblioteca – 500,00m²

Rotunda – Edificação Menor

  • Restaurante – 500,00 m²

Galpão – Sanitários

  • Sanitários e vestiários

Galpão das artes e pernoite

  • Ensaios teatrais – 111,00 m²
  • 02 Sala de musica – 45,00 m²
  • Ensaios de dança – 115,00 m²
  • 03 salas de oficina de artes
  • 05 salas para aulas de instrumentos

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