Porém, ainda há desafios na aplicação plena da legislação
Todos os dias, nas páginas deste e de qualquer jornal, é certeza encontrar notícias de agressão contra mulheres dentro do próprio lar. A violência doméstica é uma constante nos boletins de ocorrência, é sintoma da sociedade machista e misógina, na qual os homens são educados a subjugar as mulheres.
Não restam dúvidas, portanto, que há necessidade de uma legislação que proteja essas mulheres de seus agressores. Que as proteja da reincidência dos crimes que sofreram, principalmente. É como funciona a Lei 11.340/06, sancionada há exatos 10 anos, também conhecida como Lei Maria da Penha.
A legislação é um verdadeiro divisor de águas na sociedade brasileira. Criada sob pressão internacional, ela garante à mulher vítima de agressão doméstica medidas protetivas que impedem o contato dela com o agressor, sob pena de prisão. E por mais que muitas vezes não seja respeitada, essa medida pode ser a diferença entre permanecer viva ou morta.
Teria feito a diferença para Maria da Penha Maia Fernandes, 71 anos, a biofarmacêutica cearense que inspirou a criação da lei, que leva seu nome. Alvo de sucessivas agressões do então marido, em 1983 ela quase foi assassinada por ele, que disparou um tiro contra ela, deixando-a paraplégica. Em outra tentativa, ele a eletrocutou e tentou afogá-la. Maria da Penha só sobreviveu por ter se fingido de morta.
“Depois disso, meu processo para vê-lo preso levou 19 anos e seis meses para ser julgado. Ele foi preso apenas seis meses antes do crime prescrever. Eu atribuo essa morosidade ao machismo que existe no Poder Judiciário”, relata a biofarmacêutica.
O calvário de Maria da Penha chegou ao fim após ela apelar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que penalizou o Brasil a desenvolver uma legislação específica que atuasse na inibição da violência doméstica, bem como desenvolvesse ações de proteção às mulheres em situação de vulnerabilidade.
Aplicação
Na prática, a Lei Maria da Penha não diminuiu estatísticas de violência. Pelo contrário, encorajou mulheres a fazerem denúncias, o que era, até então, uma demanda reprimida. Os números, entretanto, assustam. Somente até 21 de junho, última estatística repassada pela Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), foram registrados 782 casos de violência doméstica. Destes, 249 aconteceram em Campo Grande. Os relatos destacados ao longo desta matéria são como o repórter imagina o depoimento de casos reais de agressão e ameaça, noticiados nas últimas semanas no Jornal Midiamax.
O crescimento de denúncias já ocorre em todos os segmentos, da mulher negra e periférica – as mais vulneráveis a esse tipo de crime – às que integram estratos sociais mais altos. “A quantidade de processos de violência doméstica aumentou também entre mulheres de melhor condição financeira. Antes disso, essa violência era mais velada e era resolvida de outra forma: a mulher contratava um advogado particular e se resolvia ali, sem levar para a área criminal. Já a mulher pobre, no entanto, não tem como contratar um advogado. Ela vai para a delegacia e vira estatística. Eu acredito que a mudança de cultura e, principalmente, de pensamento das mulheres tem revelado esse número. Revelado, porque ele sempre existiu”, considera a defensora pública Edmeiry Silara Broch Festi, coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul.
A lei modificou um trecho do Código Penal, passando a permitir a prisão preventiva de agressores e também aumenta o tempo máximo de detenção para três anos a quem cometer o crime. Porém, mais importante ainda, estão as medidas protetivas. Quando um homem agredia sua esposa, o delegado apenas registrava um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência e liberava o agressor. Com a lei, registros de TCO foram proibidos, bem como a penalização por meio de pagamento de cestas básicas.
Mais números
Os 10 anos da lei têm um sabor especial para Campo Grande. A cidade abriga a primeira Casa da Mulher Brasileira, órgão destinado a desenvolver políticas para as mulheres, bem como a comportar serviços com atendimento especializados a vítimas de agressão doméstica. A cidade também tem a primeira Vara de Medidas Protetivas, que em prazo recorde consegue determinar o afastamento do agressor do lar. Quando constatada a violação da sentença, o judiciário pode determinar a prisão do agressor.
A titular da Vara Especializada comenta que, infelizmente, a prisão de agressores que violam as medidas protetivas ocorrem diariamente, mas que a situação seria pior se a lei não existisse. “A lei cria o mecanismo, permite a execução da prisão preventiva, aumenta pena… O que temos que lutar agora é pela plena aplicação dela em todo o país”, destaca a juíza de Direito Jacqueline Machado.
A magistrada também considera que a Lei Maria da Penha foi elemento fundamental para impulsionar o empoderamento de mulheres nos últimos anos. “Porém, no meu entender, será o bom funcionamento deste sistema de garantias que proporcionará uma maior confiança e segurança nas vítimas, tanto em denunciar como em saber que ela será atendida de modo humano, especializado e eficiente. Mas há muito espaço para evoluir e melhorar”, considera.
A aplicação real da Lei Maria da Penha, considerada uma das três mais completas do mundo no tocante à mulher em vulnerabilidade, depende também da contínua capacitação dos profissionais que realizam os atendimento especializados, além da determinação de que as delegacias da mulher estejam em todos os municípios e funcionam 24 horas por dia, inclusive aos fins de semana.
Assim, o pleno funcionamento da máquina poderia mudar outra estatística fúnebre, normalmente sequencial às denúncias de agressão. Em 2015, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que qualifica o assassinato de mulheres relacionados a situações abusivas domésticas. De acordo com números divulgados pela Deam (Delegacia de Atendimento à Mulher), em 2016 já se somam cinco homicídios, sendo quatro motivados por ciúmes. No Estado, foram 36 tentativas de homicídio, sendo 13 na Capital, 12 deles motivados por ciúmes. Em 11 casos foram usados arma branca, e em dois foram usados arma de fogo. E desses 13 casos, apenas duas vítimas procuraram a delegacia para registrar boletim de ocorrência.
Uma nova polêmica
A Lei Maria da Penha poderá, em breve, receber mudanças, para o bem ou para o mal. O fato é que as medidas protetivas, atualmente, só podem ser designadas por juízes (veja infográfico). Porém, de acordo com um projeto de lei que tramita na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado Federal, as medidas poderão ser decretadas também por delegados, em função da demora na concessão de medidas que protegem vítimas de violência doméstica.
A possível mudança, entretanto, é alvo de uma grande polêmica, isso porque, na visão dos magistrados, a matéria é inconstitucional e medidas protetivas garantidas por delegados não terão força judicial. Já delegados minimizam a constitucionalidade e creem que a medida protetiva já no ato do registro da ocorrência garantiria a sobrevivência das vítimas.
Outro desafio também mora na falta de transparência sobre as condenações. Mato Grosso do Sul, por exemplo, só começou a contabilizar as sentenças em 2010. A falta de dados consolidados, neste contexto, atrapalha o estudo sobre a aplicação da lei e dificulta a projeção de ações a serem desenvolvidas para o pleno funcionamento da máquina, no tocante à proteção de mulheres.
Como denunciar
O Ligue 180, gratuito e disponível 24h, é o principal canal de denúncias de violência doméstica, que fornece orientações para a vítima de agressão. Porém, no caso de emergências, é necessário acionar a polícia pelo 190 ou dirigir-se a delegacias de polícia ou, de preferência, a Delegacias da Mulher.
As cidades que possuem Centros de Referência de Atendimento à Mulher também podem ser acionados em situações em que a mulher tenha insegurança em procurar a polícia. Estes espaços, bem como o Serviços de Atenção Integral à Mulher em Situação de Violência Sexual, dispõem de abrigos de amparo. Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira é um polo de atendimento.
Além disso, Defensoria Pública e Promotorias Especializadas na Defesa da Mulher também podem dar providências e orientações para denunciar crimes de violência doméstica.