Uma cicatriz de 1.523 anos, somada à discriminação sofrida diariamente, são angústias capazes de tirar a perspectiva de vida dos indígenas aldeados. Como reflexo de tais aflições, o alcoolismo, vício em drogas e, até mesmo, suicídio, surgem como válvula de escape. Nesta quarta reportagem especial, o Jornal Midiamax vai abordar questões por trás das altas taxas de consumo de drogas, suicídio e alcoolismo entre os indígenas de Mato Grosso do Sul.

Na Aldeia Porto Lindo, localizada no município de Japorã – distante 426 km de Campo Grande – estes são os maiores desafios enfrentados pelos indígenas. De acordo com o Cacique da aldeia, Martins, a falta de oportunidades é um dos fatores decisivos para o agrave da situação.

“Aqui você estuda, tem ensino médio e não tem emprego. Vai no mercado levar o seu currículo e está lá que é indígena, 50% de chance de você já perde só por ser índio. Então é uma tristeza que a gente carrega no nosso coração, por não ser ninguém, assim, perante os olhos de algumas pessoas, pelas pessoas olharem para nós e falarem que o índio é incapaz”, lamentou.

Orientador: cacique fala da própria experiência com o álcool

Indígenas de (Kísie Ainoã, Midiamax)

Ciente de que muitos na aldeia recorrem ao alcoolismo, Roberto faz seu papel de orientador da aldeia, e compartilha suas vivências com os demais. Hoje, livre do alcoolismo, diz que também tirou a mãe do mesmo vício e incentiva os jovens que buscam seus conselhos, a serem resilientes e manterem a autoestima.

“Não adianta eu pegar um litro de cachaça e quebrar, pegar, jogar fora, porque o parente vai comprar de novo. Eu uso o meu testemunho porque eu fui alcoólatra também. Eu, com 13 anos, bebia álcool, perfume, vinagre, pinga, tudo o que tivesse álcool eu bebia. Minha mãe também teve o vício, principalmente, após o meu pai ser assassinado. Mas, um dia acordei e falei: vou ser o homem da casa e tirar ela e também sair deste vício”, relembrou, emocionado.

Com o passar dos anos, o cacique passou a caminhar com as lideranças e depois ele se tornou a liderança. Eleito como cacique, cumpre o segundo mandato e ressalta que casos policiais são resolvidos na “delegacia do cacique”.

Indígenas de Japorã (Kísie Ainoã, Midiamax)

“Temos o nosso destacamento militar e os casos policiais são resolvidos aqui. Eu decidi não fazer como muitos caciques, em que as pessoas vão até a casa deles e lá falam dos problemas. Neste caso, quando tem uma vítima de estupro, por exemplo, todo mundo fica sabendo quem é a pessoa, é exposta publicamente em toda aldeia. No meu caso, só nós ali mesmo, eu e o policial eu digo, é quem sabe. É algo restrito”, explicou Martins.

Ainda de acordo com o cacique, é feito um boletim de ocorrência interno, em que o cacique conversa com a vítima em guarani e depois faz um relatório em português, encaminhando o acusado para a delegacia. Desta forma, de maneira voluntária, dez indígenas revezam e fazem o policiamento.

O cacique também criou o “disque denúncia” na aldeia. Lá ele recebem denúncias e trabalha em conjunto com a segurança pública do município. Também é feita uma ata de todos os casos atendimentos e gráficos ao final do mês.

Caciques e seguranças voluntários em Japorã, que atendem às demandas da região (Kísie Ainoã, Midiamax)

Quando se tratam de casos de suicídio, por exemplo, o cacique diz que o velório é feito na casa dos familiares e se trata de extrema perda de esperança com a vida. Já no caso do alcoolismo, avalia como “um problema mais generalizado”. E, caso a pessoa queira ajuda, terá orientação do cacique e também pode participar de programas do município.

“Eu falo para a pessoa, se ela quer largar a esposa, filho, casa, emprego, liberdade e a saúde, tudo a troco desta porcaria que é o vício. Infelizmente, a chegou aqui na aldeia para alguns. No caso do álcool, posso dizer claramente que cerca de 30 indígenas estão na fila da morte, buscam consolo nisto”, lamentou.

Barreira cultural impede tratamento psicológico

Indígenas de Japorã (Kísie Ainoã, Midiamax)

Os casos de suicídio na aldeia são alarmantes e preocupam tanto o cacique da aldeia, quanto autoridades do município. À reportagem, o prefeito de Japorã, Paulo Franjoti (PSDB), disse que mesmo com a diminuição da violência na aldeia, nos últimos anos, o suicídio ainda é um desafio.

“Nos últimos dias tiveram três suicídios de jovens. Quando ele perde a expectativa de vida, que aquilo acabou para ele, se suicida. Um menino, inclusive, saiu do treino do campo e se enforcou com o colete do treino porque ele achou que já tinha 21 anos, não ia conseguir ser jogador de futebol, então, ele se suicidou. Outra coisa é um indígena, uma indígena, que se apaixona por um branco e não é o mesmo sentimento do outro lado. Eles são puros, não sabem lidar com isso, com o preconceito, e aí pode acontecer o pior”, explicou.

Psicóloga não é indígena e muitos não se sentem compreendidos

Fabiane sonha em se tornar psicóloga e ajudar na aldeia. (Kísie Ainoã, Midiamax)

Dentro da aldeia, um profissional da faz o atendimento e acompanhamento psicológico, mas, muitos não se sentem compreendidos, por não se tratar de um profissional indígena. As barreiras culturais são apontadas como causas da ineficácia do tratamento.

Fabiane Portiro Lopes, de 17 anos, cresceu em meio à violência doméstica e desenvolveu ansiedade ao longo da vida. Por muitos momentos, presenciou agressões do pai na mãe dela e diz que, agora, “tem medo e não quer casar”. Quando precisa de conselhos e orientação, recorre ao cacique da aldeia.

“Passei por muita coisa ruim. Sou uma pessoa muito ansiosa e fiquei um pouco traumatizada depois de tudo que eu passei. Cresci em meio à violência. Eu vendo minha mãe apanhando do meu pai e eu não podia fazer nada, porque tinha medo. A única coisa que eu podia fazer era chorar e gritar, porque não entendia nada”, comentou.

Agora, que terminou o ensino médio, a jovem faz um curso de informática e diz estar feliz pelo fato da mãe “estar livre”. No entanto, um dos seus sonhos é se tornar psicóloga e suprir a carência de um profissional indígena na aldeia. “Meu sonho mesmo é ser psicóloga porque aqui as pessoas precisam de ajuda para conversar um pouco com elas. As pessoas morrem muito aqui. Aqui tem psicóloga, mas, não ajuda muito”, comenta.

Incidência de suicídio indígena em Mato Grosso do Sul

Documento de indígena. (Kísie Ainoã, Midiamax)

De acordo com o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), divulgado em julho deste ano, em Mato Grosso do Sul foram registrados 133 casos de suicídio, de 2019 a 2022. Destes casos, 28 ocorreram em 2022.

A faixa etária com maior incidência de suicídio indígena é de 20 a 59 anos, porém um grande número de casos também foi registrado entre jovens de até 19 anos. Entre os meios empregados, a maioria é por lesão autoprovocada através do enforcamento, estrangulamento e sufocação.

Série especial em Japorã:

95 anos, 90 casas: com suor e sem apoio, indígenas construíram as próprias casas em aldeia de Japorã

Com falta de caderno e até de comida, estudar é um ato de resistência em aldeia de Japorã

Os desafios da cidade com 57% da população indígena e de nome tupi-guarani em MS