95 anos, 90 casas: com suor e sem apoio, indígenas construíram as próprias moradias em aldeia de Japorã
Nesta terceira reportagem especial, o Jornal Midiamax aborda os temas de habitação e emprego na reserva localizada no extremo sul do Estado
Graziela Rezende –
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Com quase um século de existência, a Aldeia Porto Lindo teria recebido apoio dos governos estadual e federal para a construção de somente 90 casas. É menos do que uma casa por ano em uma área de extensão de 1,6 mil hectares, conforme o cacique Roberto Carlos Martins. Nesta terceira reportagem especial, o Jornal Midiamax vai abordar os temas de habitação e emprego na reserva localizada no extremo sul do Estado, em um mês em que os indígenas comemoram colheita recorde nas plantações de mandioca.
“Temos cerca de 5,5 mil índios em uma área de extensão de 1,6 mil hectares. É muito pouco e as demais moradias as famílias construíram com recurso próprio. A minha aldeia vai completar 95 anos. Ainda eu estou com falta de água. Nós temos poços artesianos aqui. Em 95 anos de aldeia, ainda temos a falta de energia em algumas casas. Em 95 anos, ainda tem parente sem documento. Em 95 anos, conseguimos apoio do governo para a construção de 90 casas somente”, afirmou o cacique.
Na Aldeia Porto Lindo, conforme dados divulgados pelo cacique, existem atualmente 1.167 casas. As moradias populares do governo equivalem a 5% deste número. Já os imóveis particulares, construídos com esforço próprio dos indígenas, representam 70% deste número e as moradias tradicionais, existentes na área, equivalem a 25%.
Ainda de acordo com o cacique, um dos entraves para os indígenas conquistarem financiamentos, não só para moradia como recurso para investir na plantação, por exemplo, é a dificuldade com documentações.
“O índio, até pouco tempo, precisava pedir licença para Funai [Fundação Nacional do Índio] para trabalhar, para tudo. Era tutelado. Acabou, mas, ainda tem indígena que acha que é desta forma. E a gente sempre tinha que ter um representante junto, que falasse o português, só que isto não acontecia e a gente foi perecendo sem casas, saneamento básico, iluminação nas ruas, asfalto e esgoto. Aqui é uma cidade, só que se lembram só na hora dos 2.540 eleitores escoarem votos”.
‘Aldeia Porto Lindo precisa de 800 casas’, fala cacique
Para sanar o problema, o cacique defende um replanejamento no título de terras. “Eu preciso de 800 casas, no mínimo, para zerar a falta de moradia na aldeia. Preciso de saneamento, energia, título de terra. Atualmente, esta terra não é nossa, não temos nada, é tudo do governo federal. Nós temos uma área de retomada, que retomamos em 2023 e é mais uma área que não é nossa. Não posso falar que este quadrado aqui, dez por dez, é meu, que está no meu CPF [Certidão de Pessoa Física]. Só posso usar enquanto estiver vivo”, argumentou.
Conforme Roberto Carlos, os indígenas encontram a mesma dificuldade na hora de buscar um financiamento no banco, por exemplo. “Primeiro, tem que ter o título da terra, aí tem que ter garantia e, se a terra não está no seu nome, fica difícil, então a dificuldade já começa na terra. E o resto o governo federal fala que tem recurso, mas, que não pode ser aplicado em terra indígena e eu não entendo, é terra do governo federal, com recurso federal, mas, fica sempre na mesma”, disse.
O prefeito de Japorã, Paulo César Franjotti (PSDB), também defende a construção de mais casas, porém, de alvenaria e não de madeira e palha. “Eu sou a favor de preservar a cultura, mas, não quer dizer que você precise morar numa tapera de pau, coberta de capim. Você pode morar numa casa de material e preservar sua cultura, preservar o cocar, o maracá”, comentou.
Sobre o trabalho dos indígenas, o prefeito comentou que centenas estão nos frigoríficos próximos e em loja de calçados, porém, o principal, que é a lavoura, deve ser reforçado. Atualmente, quando ocorre a colheita de frutas, por exemplo, a produção é vendida em cidades próximas e na prefeitura, por meio do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar).
“Eu defendo até uma mesma, envolvendo os indígenas e até os parceiros brancos plantando nestes terras. Desta forma, vão ter ajuda, vão ver como produz e vão ganhar dinheiro com isso. Não é ficar plantando mandioca, para colocar um saco nas costas e ir a pé, até Japorã e Iguatemi vender, por exemplo. Se podem ter algo mais profissional, com um caminhão buscando e levando para fecularia, é assim que deve ser”, opinou.
Colheita recorde de mandioca na Aldeia Porto Lindo
Em março deste ano, indígenas tiveram uma colheita com índices recordes, com ao menos nove mil sacas de milho e 16 mil toneladas de mandioca. Os insumos foram cedidos pelo Proacin (Programa de Apoio às Comunidades Indígenas), com apoio da Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural).
Além de insumo e sementes, os indígenas também receberam calcário para melhorar a qualidade do solo e controlar a acidez, estimulando o crescimento das raízes, a disponibilidade de fósforo e para reduzir os níveis de alumínio e manganês, tóxicos para as plantas. No dia a dia, a comunidade também consome bastante milho e mandioca.
‘Situação inviável’, diz historiador sobre indígena conseguir casa
Desta forma, com recursos adquiridos nas vendas é que parte dos indígenas construíram as próprias casas, algumas ainda inacabadas. “Os indígenas não são donos da terra e, por este fato, não podem alienar e pedir empréstimo junto ao banco e outras instituições financeiras. Ficam sem acesso ao crédito e, mesmo existindo alguns créditos específicos para eles, a situação fica inviável”, avaliou o historiador, professor e escritor Eronildo Barbosa.
A mesma situação, como se vê, ocorre há décadas. “O nível de sobrevivência é pouco e eles ficam muito limitados, não tem acesso à tecnologia. Quando vão plantar, os instrumentos são muito rudimentares, do século passado. Pouquíssimos deles têm trator, equipamentos e implementos agrícolas”, explica Barbosa.
Para plantar, em sua maioria, os indígenas usam foice e enxada, por exemplo. “É uma história de séculos de sofrimento, de humilhação e de falta de oportunidade. Falta também ajuda nossa, principalmente porque não nos preocupamos com eles aqui em Mato Grosso do Sul. Não existe uma consideração ao indígena. É algo muito parecido com o negro no tempo da escravidão”, lamentou o historiador.
Quando conseguem alguma oportunidade, o indígena ainda recebe uma diária, sem qualquer outro direito trabalhista. “Eles vão para a roça, com um pagamento muito barato, sem carteira assinada, 13ª, sem nenhuma garantia e aí não consegue comprar a própria casa. E aí vão tendo muitos filhos e é preciso mantê-los alimentados, então, vão trabalhar na terra porque não há outra opção”, comentou.
Atualmente, os recursos também ficaram mais escassos, o que se torna um agravante ao indígena.
“Não existe mais o gado disponível para ele ter a carne. Precisa comprar como nós. Da mesma forma, muitos rios no entorno não oferecem mais o peixe, como antes, então, precisam comprar assim como nós. O indígena também é muito mais vulnerável a doenças, não tem a mesma quantidade de anticorpos. São muitos agravantes que o impedem de evoluir, ter a própria casa e emprego digno”, finalizou o historiador.
Censo Demográfico Indígena
O Censo Demográfico Indígena foi realizado em áreas urbanas, rurais e em TIs (Terras Indígenas), sendo a coleta iniciada no dia 1º de agosto de 2022 e encerrada no dia 28 de maio de 2023.
Conforme apurado, a população indígena do Estado cresceu 51,04%, saindo de 77.025 em 2010 para 116,346 pessoas em 2022. Os povos originários representam 4,22% dos moradores de Mato Grosso do Sul, a qual chegou a 2.756.700 habitantes.
Ao todo, MS tem 43 TIs, seis a mais do que em 2010. A média de moradores em domicílios particulares permanentes ocupados é de 3,51 com pelo menos um morador indígena.
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