“Foi como se estivéssemos em uma guerra”, diz indígena que passou mais de 3 horas ouvindo tiros em conflito
Batalhão de Choque da PM foi acionado para ir até o local onde indígenas decidiram retomar área ancestral e ação terminou em morte
Marcos Morandi, Wendy Tonhati –
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“Depois do helicóptero, que foi o dia mais tenso aqui para a comunidade, a nossa alma está tensa, angustiada. É como se estivéssemos em uma guerra. Os tiros duraram três, quatro horas, foi de uma hora [13 horas] às cinco [17 horas]”. Essa é a descrição de uma liderança indígena Guarani Kaiowá sobre a sexta-feira (24), data do conflito entre um grupo de indígenas e o Batalhão de Choque da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul e que terminou com a morte do indígena Vitor Fernandes, de 42 anos.
A liderança – que não será identificada por segurança – explicou como foi aquela tarde para a comunidade. O conflito entre um grupo de indígenas e os militares aconteceu na Fazenda Borda da Mata, em Amambai, que é vizinha à Reserva Indígena Amambai. O objetivo dos indígenas seria retomar as terras de origem ancestral, sendo o local o batizado de território Guapo’y Mirim, em referência à Reserva Amambai, também chamada de Guapo’y (em guarani). Ou seja, Guapoy’ mirim, seria como filha da Reserva Guapo’y.
A Terra Indígena Amambai (Guapo’y) é uma das mais antigas de Mato Grosso do Sul. Foi criada em 1915, pelo antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), órgão criado pelo Cândido Rondon, em 1910 e que funcionou até 1967, sendo substituído pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Em 1991 as terras foram homologadas como indígenas.
“Todos, até mesmo aqueles que não estavam envolvidos nesse movimento [de retomada das terras], estavam assustados com barulho. Nós conseguimos distinguir o barulho, pareciam tiros de guerra e apavorou toda a comunidade. A minha casa fica do outro lado da reserva e dava para ouvir como se fosse perto. As pessoas estavam chorando dentro de casa”, relata a liderança.
Os momentos de terror para a comunidade duraram a tarde inteira e afetaram os indígenas que não estavam diretamente envolvidos na retomada e que vivem na reserva. “Veio a notícia de que as escolas seriam atacadas. Ninguém sabia se seria a polícia que atacaria, ou os próprios indígenas da retomada, que estavam revoltados. Era uma desinformação que colocou toda a comunidade em clima de tensão. Ficamos apavorados”, relembra o indígena.
Ainda segundo a liderança, a ação dos policiais militares não estava limitada à área de retomada dos indígenas, ou seja, na fazenda. Os militares circulavam e disparavam tiros em toda a região da reserva. “A aldeia está se sentindo desamparada e a liderança da reserva foi afrontada. Está tudo nebuloso acerca das informações. Os policiais não respeitaram a divisa da retomada e da aldeia. Teve um momento que um pai saiu e gritou para os policiais: aqui já é aldeia, não é retomada. Mesmo assim os policiais continuaram atirando e atiraram contra as casas da reserva”, relata a liderança.
Na manhã deste domingo (26), os indígenas da etnia Guarani Kaiowá realizam o velório de Vitor Fernandes, de 42 anos, que morto em conflito com o Batalhão de Choque da Polícia Militar, durante a retomada. De acordo com informações apuradas pelo Jornal Midiamax, o clima ainda é tenso no local, pois a tradição é de que o corpo seja sepultado no local onde ocorreu a morte. A cova já foi até mesmo aberta, porém, os indígenas temem não conseguir seguir o costume e que o sepultamento seja impedido.
Vídeo mostra momento em que indígena é morto
Um vídeo que circula em redes sociais mostra o que supostamente seria o momento da morte do indígena Vitor Fernandes, de 42 anos, da etnia Guarani Kaiowá, durante conflito entre indígenas e policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, na última sexta-feira (24), no território Guapo’y, em Amambai, região sul de Mato Grosso do Sul.
O vídeo foi gravado por uma pessoa que estava no local e garante que não há edições nas imagens. Por se tratar de cenas fortes, o Jornal Midiamax editou as imagens com efeito para ‘embaçar’ o vídeo.
Quem é o dono da fazenda palco do conflito?
Segundo reportagem do site De olho nos ruralistas, a Fazenda Borda da Mata é um imóvel de 269 hectares pertencente à empresa VT Brasil Administração e Participação, controlada por Waldir Cândido Torelli e seus três filhos: Waldir Junior, Rodrigo e um adolescente. Ele possui açougues em São Paulo e várias fazendas no Mato Grosso do Sul. Teve frigorífico no Mato Grosso e no Paraguai, em sociedade com Jair Antônio de Lima, radicado no país vizinho. O do Mato Grosso foi adquirido pela gigante Marfrig.
Ainda conforme o site De olho nos ruralistas, em 2018, a VT Brasil teria movido ação de interdito proibitório contra a Funai, a União e a “comunidade Guarani-Kaiowá”, alegando que os indígenas estariam “molestando sua posse no imóvel rural Fazenda Borda da Mata”. A União alegou que não havia provas. O juiz da 1ª Vara de Ponta Porã decidiu, em julho daquele ano, que o pedido era improcedente.
Tragédia anunciada
Desde o dia 19 de junho, a aldeia indígena de Amambai, cidade a 352 quilômetros de Campo Grande, pedia apoio para providências na área de retomada, por questões de conflitos internos. Os problemas antecederam a invasão a uma propriedade rural no dia 23 deste mês e conflito com policiais militares, que resultou na morte do indígena.
Já no dia 23, marco das primeiras invasões na Fazenda Borda da Mata, ofício foi encaminhado para a Funai (Fundação Nacional do Índio), MPF (Ministério Público) e Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública). No pedido, foi reforçada a situação de conflito interno na aldeia.
Oficialmente, um boletim de ocorrência de homicídio decorrente da intervenção policial foi registrado na Delegacia de Polícia Civil de Amambai, conforme relatado pelo prefeito Edinaldo Bandeira (PSDB).
Já o governo do Estado, falou sobre a ação por meio do secretário Antônio Carlos Videira, titular da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), em coletiva ainda na sexta-feira. O secretário afirmou que entre os indígenas também haveria estrangeiros, possivelmente paraguaios e que eles estariam vindo do país vizinho cooptar indígenas como mão de obra para a colheita de maconha. O secretário ainda disse não se tratar de um caso de reintegração de posse, mas sim ação de combate aos crimes contra patrimônio e também contra a vida, isso porque na ocupação também teriam ocorrido ameaças e furtos.
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