Paciente espera 4 anos e sai de cirurgia na coluna com braços e pernas paralisados

Família irá acionar Justiça por suposto erro médico

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Família irá acionar Justiça por suposto erro médico

A aposentada Rosângela Freire de Carvalho Moraes, 55, estava radiante aquele dia. Como das outras 7 vezes que chegou a marcar a cirurgia de hérnia de disco – a discopatia cervical e lombar – ela mal dormiu, ansiosa. Uma ansiedade que se arrastou por 4 anos. Desde 2013, ela lutou na justiça para conseguir que o governo de Mato Grosso do Sul e o Município de Corumbá – a 444 da Capital – custeassem o procedimento. Por 4 anos ela aguentou as dores e tentou tratamentos. No dia 28 de março, no entanto, bastaram 2h e meia de cirurgia para que ela ficasse com o corpo paralisado.

Quem conta a história é a filha dela, Vanessa Dias, 34, diarista. Vanessa teve que deixar os 5 filhos em Corumbá e ‘correr’ com a mãe em uma ambulância aérea, para Campo Grande. Rosângela está hoje, internada na Santa Casa de Campo Grande, na ala B, setor de neurologia, diagnosticada com tetraparesia, quando a pessoa tem perda parcial dos movimentos dos quatro membros. Hoje, Rosângela só mexe o braço direito. Vanessa quer acionar a Justiça novamente, dessa vez, por erro médico.

4 anos para conseguir operar

Rosângela, representada pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, ingressou com ação com ‘pedido de obrigação de fazer’ em 2013. No dia 3 de dezembro de 2013 o juiz acatou o pedido, obrigando o município de Corumbá a custear o procedimento. À época, estimava-se, nos autos que o custo era de R$ 15 mil.

No dia 18 de dezembro de 2013, segundo o município, ela foi avaliada em Campo Grande por uma médica que encaminhou para o agendamento no HU (Hospital Regional) em Campo Grande. A partir de 2014, o município começa a ser multado por não ter cumprido a sentença judicial. No dia 30 de julho 2014, Corumbá já acumulava multa judicial de R$ 3 mil.

O caso de Rosângela escancara diversos problemas da saúde pública: a falta de estrutura do SUS (Sistema Único de Saúde) em Mato Grosso do Sul, o descaso com a vida das pessoas carentes e a possível falta de responsabilidade da classe médica.

A paciente, conforme indicam os autos, deveria ter sido encaminhada para cirurgia no Hospital Regional, onde realizou exames com o ortopedista do HR. O que não ocorreu, pois o local, à época, não tinha materiais necessários. Assim pontuou a defensoria:

“A Defensoria Pública Estadual entrou em contato com a parte exequente, e esta informou que compareceu à consulta, sendo por este informado que não realizará a cirurgia, conforme a sentença de mérito de fls. 86-89, pois, atualmente não existem materiais disponíveis para o procedimento cirúrgico. Desta forma, o Município de Corumbá/MS quedou -se inerte, não cumprindo voluntariamente a sentença”

No dia 15 de maio 2015 o médico enviou pedido para fazer novos exames na paciente, já que a cirurgia indicada era baseada em exames realizados há meses. Rosângela esperava, enquanto o município era multado, o HR não possuía materiais e o médico que poderia operá-la pediu exoneração.

Assim alegou o município em maio de 2015. “Município não conseguiu contratar um Neurocirurgião que aceitasse fazer o procedimento cirúrgico em face da complexidade do mesmo e da grande possibilidade da autora ficar tetraplégica caso a cirurgia não obtenha sucesso”.

Surge um médico

Foi então que Rosângela conheceu o médico ortopedista de Corumbá que se comprometeu a realizar a cirurgia. Novamente o processo se arrasta. O médico chegou a ser intimado diversas vezes, judicialmente, para que realizasse a cirurgia. Vanessa afirma que a mãe chegou a preparar-se para operar com o ortopedista 7 vezes.

“Por fim, relatou que médico só vai realizar todo o seu tratamento de saúde, após a transferência da outra metade do valor de 60 salário mínimos”, cita a Defensoria, em dezembro de 2016.

O médico teria recebido, conforme os autos, mais de R$ 58 mil para realizar o procedimento. O processo afirma que só os materiais “custariam” R$ 22 mil. Vanessa alega que ele recebeu R$ 70 mil. A demora? Conforme a diarista, “os materiais nunca chegavam”.

“Ele acabou com a minha vida. A minha mãe começou a ir com ele e ele falou pra mim: olha, nós precisamos fazer uma cirurgia na sua cervical e na lombar e com essa cirurgia, a senhora vai fazer, vai ficar uns 10, 15 anos sem dor. Aí eu te falo: você está com dor, se te falam que vai fazer uma cirurgia dessa e vai passar, você não vai fazer? Minha mãe desesperada com dor. Ela marcou 7 vezes para operar ela e não operava. Primeiro ele marcava na clínica Samec, pra ela internar. Ele internava ela, por exemplo, falava: ‘dona Rosângela, a senhora interna 12h, em jejum, e lá pra umas 14h, 15h, a gente opera’. Minha mãe ia de jejum e passava nervoso uma noite antes, e nada. Chegava lá, a secretária dele e falava: ‘de novo?’”, conta Vanessa.

O MPE (Ministério Público Estadual) chegou a se manifestar da seguinte forma no processo: “Não obstante, o fato de ter o profissional médico recebido quantia em dinheiro e não realizado o respectivo tratamento médico-cirúrgico a que havia se comprometido traduz a prática, em tese, do crime de apropriação indébita qualificada, nos termos do artigo 168, 1º, inciso III, do Código Penal1, delito esse que não é considerado de menor potencial ofensivo, fugindo à competência deste Juizado Especial Criminal e, consequentemente ,também das atribuições legais deste signatário”.

No dia 28, no entanto, Rosângela foi internada na Santa Casa de Corumbá. O hospital está sob intervenção municipal, a administração de Corumbá é a responsável pela administração do local. O procedimento, no entanto, apenas foi custeado pelo poder público, mas ficou sob responsabilidade do médico, que conseguiu autorização para operar a paciente, ficando responsável pelos materiais e pela condução do procedimento.

“Aí dia 28 era pra ela entrar 12h, e nada dele chegar, 14h e pouco da tarde que ele chegou. Era pra ser uma cirurgia de 6, 7h, conforme ele ele falou. 2h e meia acabou a cirurgia. Ele saiu lá, falou pra mim: ‘olha, deu tudo certo, foi um sucesso, só estamos esperando a anestesia dela’. E aí ele veio com ela, só com um colete que ele mandou comprar. Aí ele falou: ‘viu ó, ela tá bem e anestesiada’. Ela tava muito anestesiada, mas tava acordada, mas eu não vi ela mexer nada [sic]”, relata Vanessa.

 

 

 

Vanessa conversava com a mãe. “Eu falei: ‘mãe, eu estou aqui tá, não vou embora, enquanto a senhora não acordar bem eu vou estar aqui fora’. Daqui a pouco, ela começou meio que engasgar ou querer vomitar. Eu chamei a enfermeira, a enfermeira de longe falou: ‘não, ela está voltando da anestesia’. Aí ela continuou, aí eu pensei não, não está normal. Aí eu chamei outra, aí a máquina já começou… aí ela teve uma parada, aí mandou a gente sair, socorreram ela. Aí outro médico saiu depois e falou pra mim: olha, foi grave, ela teve uma parada, mas já está estável. No outro dia de manhã, cedo, eu fui pra lá. Eu entrei no CTI sem passar um álcool na minha mão, por uma luva, do jeito que entrou aqui ficou. E o outro médico, de plantão, falou: olha, é grave, ela teve uma parada, e no momento ela está tetraplégica. Aí eu falei: tetraplégica? Aí ele falou: fala com o médico que operou ela, pra ver o que aconteceu. Aí fui lá na clínica atrás dele. Fui lá e falei: ‘Dr, o que está acontecendo com a minha mãe? Minha mãe está tetraplégica, está sem movimento nenhum’.

Vanessa afirma que o profissional viu a paciente e afirmou ‘ah, mas tudo bem, ela vai recuperando aos poucos’.  “Quando foi no outro dia cedo, ligaram pra mim em casa. ‘Desce a família, vem aqui. Falei: ‘pronto, tem alguma coisa’. Aí o Dr falou pra mim: você vai ter levar sua mãe urgente para Campo Grande”.

Aí eu falei: Dr., minha mãe tem que ir urgente para Campo Grande, o que está acontecendo? Ele respondeu: ‘Não, eu vou avaliar. Não, eu vou atender’. Falei, não, você vai ver minha mãe, agora e foi. Do jeito que estava suado, entrou no CTI, aí veio de lá e falou: não, ela está bem, ela está mexendo as pernas, ela vai só pra Campo Grande só para fazer a ressonância”.

Vanessa afirma que o médico culpa a CTI (Centro de Terapia Intensiva) da Santa Casa em Corumbá, no momento em que Rosângela foi ‘entubada’, pela paralisia. A equipe médica da Santa Casa de Campo Grande não quis comentar o quadro clínico de Rosângela. Vanessa, no entanto, revela que o chefe da equipe em Campo Grande acusa erro médico durante a cirurgia.

“Ele falou assim pra mim: ‘essa cirurgia eu faço como se fosse jogar bola’”.

E agora?

Agora, a Santa Casa de Corumbá instalou uma sindicância para investigar o caso e a Defensoria Pública já começou a agir. Conforme explicou o defensor Vagner Fabricio Vieira Flausino, médico e hospital podem responder na esfera criminal.

“Nós estamos estudando primeiro, levantando as informações a respeito do porquê da cirurgia, que a princípio não oferecia risco, acabou se tornando uma cirurgia irreversível para ela. De onde eu sei, a situação hoje da Rosângela, de paralisia total, se deu em razão da cirurgia”, afirmou.

“Na verdade, assim, o município, depois que tinha a obrigação de fazer, especialmente cirurgia, o município e o Estado, que eram os demandados, tinha um prazo pra cumprir, não foi cumprido, entramos com o cumprimento de sentença, foi feito o bloqueio judicial e o orçamento apresentado pela dona Rosângela foi através desse médico e depois disso teve algumas complicações no processo, aí eu não posso citar com detalhes, porque pode ser que atinja a área penal. Está tudo muito novo, muito recente, nós estamos avaliando, essa questão de informações, prontuário médico”, esclareceu ele.

O médico presidente da Junta Interventora que administra a Santa Casa de Corumbá não quis comentar o suposto erro  “por questões éticas”, mas está à frente da Sindicância que apura a questão no hospital.

Questionado sobre a habilitação do hospital para realizar procedimentos de alta complexidade, ele afirmou que “tem cirurgias aqui que eles fazem, depende da cirurgia, tem umas que requerem às vezes uma aparelhagem mais sofisticada, mas a maioria a gente faz. Eu sou médico, e aqui nós temos um neurocirurgião, só que ele não opera mais, parou de operar, por decisão dele. Ele fez uma cirurgia nesse nível aí há uns 20 anos, mas ele fez aqui e se saiu bem, não sei o que houve, nós estamos investigando”.

“Olha, é difícil eu falar, eu sou médico, fica chato falar, mas a gente tem que investigar primeiro, desde os primeiros passos, desde o início o que aconteceu, desde a entrada dela no hospital. E as pessoas questionam, ah, o hospital, tem autorização, na verdade, o médico é o responsável pelo paciente, o responsável maior pelo paciente é o médico, então”.

“Eu considero, eu acho que ela [cirurgia] é de alta complexidade, porque você tem que ter um preparo. Não é qualquer ortopedista, vamos supor, que opere isso aí. Aí não sei nesse caso qual a formação do colega, é ortopedista, tem ortopedista que opera a coluna, e outros não”, complementou.

Enquanto a questão é apurada, Vanessa está em Campo Grande acompanhando a mãe, mas além de tudo, sofre por não ter condições financeiras, já que a saúde de Rosângela demanda cuidados todo o tempo.

“Minha mãe entrou andando e rindo, e agora minha mãe não vai sair da cama. Eu sou sozinha, tenho 5 filhos pequenos, deixei lá, o que eu faço da minha vida? Eu não estou tendo assistência alguma. Ele [médico] teve a coragem de me ligar uma vez. E o hospital, como o hospital autorizou a fazer essa cirurgia lá, se não tem estrutura para isso? Até os médicos de lá falaram: ‘mas vocês fizeram uma cirurgia de coluna aqui’?”.

O jornal Midiamax ligou para ele, mas as ligações caíram na caixa postal. A reportagem ligou para a clínica onde ele trabalha em Corumbá, a Samec, e a recepcionista informou que o médico está fora do país, em viagem, e só volta “em meados de maio”.

(O texto foi alterado às 18h43 do dia 26 para retirar o nome dos médicos após pedido formalizado pelo departamento jurídico do Sindicato dos médicos de Mato Grosso do Sul. A reportagem tenta contato com o médico que realizou a cirurgia em Rosângela).

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