Em 20 meses de luta pela vida, Sofia nunca chegou a ir para casa

Ela nasceu com síndrome rara que causa má-formação do sistema digestivo

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Ela nasceu com síndrome rara que causa má-formação do sistema digestivo

Decorado e enfeitado com temas infantis, o quarto na casa da família Lacerda, em Votorantim (SP), não chegou a receber sua principal hóspede. Sofia passou 20 meses lutando contra uma síndrome rara que causa má-formação dos órgãos do sistema digestivo. Durante 1 ano e 8 meses de vida, a menina viveu de hospital em hospital, onde passou por diversas cirurgias, incluindo um complexo transplante multivisceral. A luta da pequena Sofia terminou na madrugada desta segunda-feira (14), em Miami, nos EUA. A bebê morreu após uma parada cardíaca.

Sofia nasceu em dezembro de 2013, em Campinas (SP). Durante o quinto mês de gestação a família foi informada que ela tinha uma deformidade na bexiga. Após o parto, os médicos a diagnosticaram com uma doença rara chamada Síndrome de Berdon, que causa má-formação de órgãos do sistema digestivo. O casal já havia perdido um filho antes de Sofia.

Sofia passou por três cirurgias logo após o nascimento, mas o prognóstico médico era de que teria poucos meses de vida. A única chance de sobrevivência era ser submetida a um transplante multivisceral, que não podia ser realizado no Brasil. O lugar indicado para a cirurgia era o Jackson Memorial Hospital, de Miami, especializado neste tipo de procedimento, avaliado entre US$ 200 mil e US$ 600 mil – na época, cerca de R$ 1,2 milhão.

Foi então que a família de Sofia criou uma campanha no Facebook para arrecadar fundos e custear tanto a cirurgia como as despesa da viagem para os EUA. A história dela foi contada pelo G1 em fevereiro de 2014, quando a página da campanha “Ajude a Sofia” era curtida por “apenas” 60 mil pessoas e tinha arrecadado, até então, R$ 1 mil.

Após a repercussão, a campanha ganhou cada vez mais força e a arrecadação final chegou a R$ 1,8 milhão. A página “Ajude a Sofia” passou a ser seguida por mais de 1,5 milhão de pessoas, que hoje lamentam a morte da menina.

 

Batalha jurídica

Simultaneamente à campanha na internet, a família começou uma longa disputa judicial para conseguir com que o governo pagasse o transplante da menina nos Estados Unidos.

Em março de 2014, Sofia foi transferida para o hospital Samaritano, em Sorocaba (SP). Um mês depois, a pedido do Ministério da Saúde, a Justiça determinou a transferência da bebê para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, para que fosse analisada a possiblidade do transplante ser realizado lá.

Como a família não aceitou que o HC realizasse um novo procedimento na menina para averiguar a necessidade do transplante, o hospital informou que não seria possível dar continuidade ao tratamento. Por isso, um mês depois, Sofia voltou ao hospital de Sorocaba, onde ficou aguardando a decisão da Justiça.

Em 28 de maio, o Tribunal Regional Federal em São Paulo determinou que o Ministério da Saúde custeasse a transferência de Sofia para os EUA em um avião adaptado e com a estrutura necessária para o transporte.

Mas a espera da família pela viagem aos EUA ainda se estendeu por mais um tempo, entre decisões e recursos na Justiça. Somente em 20 de junho o Ministério da Saúde fez o repasse para a família no valor de R$ 2,2 milhões, que seriam usados na viagem e no procedimento cirúrgico. “Fiquei sem palavras. O advogado mandou uma mensagem agora há pouco [por volta das 18h30 desta sexta-feira (20)] para mim. Sei que a luta é grande, mas essa é mais uma batalha vencida. Agora, o advogado vai entrar com o pedido para ser realizado o pagamento do hospital, em Miami, liberando nossa viagem”, disse a mãe de Sofia, Patrícia de Lacerda, na época.

Sofia foi finalmente transferida para os Estados Unidos em 2 de julho e levada diretamente ao Jackson Memorial Hospital.

Já no hospital, foi constatado que ela precisaria receber estômago, fígado, pâncreas, intestino delgado, intestino grosso e, provavelmente, um dos rins. O médico responsável pela cirurgia, o brasileiro Rodrigo Viana, afirmou ao G1 que a cirurgia era a maior que poderia ser feita em um ser humano.

Sofia passou por uma pequena cirurgia no coração e teve alta em 30 de agosto, quando foi para o apartamento alugado pela família em Miami.

 

Transplante multivisceral

Começava, então, outra luta de Sofia: a espera pelos órgãos. Em dezembro de 2014, um ano após nascer, um possível doador foi encontrado. A cirurgia chegou a ser marcada, mas precisou ser adiada quando foi constatado que os órgãos não eram adequados.

Nove meses depois de chegar aos EUA, outro doador foi encontrado e a cirurgia, enfim, realizada em 10 de abril de 2015. No procedimento, que durou 9 horas, ela recebeu cinco órgãos: estômago, fígado, pâncreas, intestino delgado e cólon. Não foi preciso trocar um dos rins, como era previsto inicialmente.

A recuperação pós-cirurgia correu dentro do esperado e, dez dias depois, ela recebeu alta da UTI. Um dos momentos mais comemorados pela família foi quando a menina comeu papinha pela primeira vez na vida. (Veja no vídeo ao lado)

Sofia deixou o Jackson Memorial, em Miami, exatamente um ano depois de sua internação, já com um ano e seis meses. Mesmo fora do hospital ela continuou recebendo tratamento homecare no apartamento que a família alugou nos EUA e tomava 17 medicamentos diariamente.

Uma semana depois da alta hospitalar, no entanto – período em que chegou a passear com a família –, Sofia voltou a ser hospitalizada.

A menina foi levada à emergência por causa de alterações em exames de rotina e uma reação alérgica que causava vermelhidão no corpo, causada pela fórmula que recebia pela veia.

Sofia teve nova alta, mas o quadro alérgico piorou e ela precisou ser internada novamente no hospital de Miami, de onde não sairia mais.

Os médicos fizeram duas biópsias para descobrir o que causava o quadro de alergia que piorava cada vez mais. Foi constatado, então, que Sofia tinha sido contaminada pelo citomegalovírus (CMV), o mesmo causador da catapora e das variações de herpes. “Ela está doente mesmo e é grave. A Sofia tem uma virose que nestes pacientes [em fase pós-transplante] é muito perigosa e pode causar até a morte”, disse o médico Rodrigo Viana ao G1 no começo de agosto.

Além do quadro viral, foi constatada a presença de bactérias no pulmão da menina, que causavam dificuldade na respiração. Ela foi entubada, mas o quadro piorava cada vez mais, obrigando a menina a respirar com a ajuda de aparelhos. No último fim de semana, a mãe postou na página do Facebook que ela estava com fibrose pulmonar e que só um milagre poderia salvá-la. Os médicos chegaram a sugerir desligar os aparelhos, mas a mãe não quis. “Vamos intensificar as orações para Deus fazer o impossível”, pediu Patrícia.

Sofia não resistiu e morreu na madrugada desta segunda-feira (14), vítima de uma parada cardíaca.

O infectologista Caio Rosenthal falou sobre o risco do citomegalovírus, um vírus oportunista que se aproveita de um momento de fraqueza imunológica para se manifestar.

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