Patagônia é terra de planícies infinitas, onde o vento não tem primavera

Parte II: o lado chileno, região de Magalhães

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Parte II: o lado chileno, região de Magalhães

No dia trinta de dezembro de 2014, peguei um voo em Santiago, no Chile, para chegar a Punta Arenas, na região de Magalhães, Antártida Chilena. Sozinha, pousaria nessa cidade no extremo sul e pegaria um ônibus para chegar a Puerto Natales, cidade pequena, ponto de parada para ir ao Parque Nacional Torres del Paine. Assim o fiz. Cheguei a Punta Arenas em um verão austral de 10 graus positivos, temperatura razoável, se não fosse por um vento desvairado que entra pelos poros de seu corpo e se acomoda até entre seus átomos. Não fosse por isso, a temperatura seria completamente aceitável.

Eu estudo muito antes de ir para um destino distante. E mais ainda quando é tão inóspito como esse. E não leio apenas os livros de história e o que os poetas e escritores escreveram sobre o lugar. Faço coisas práticas para a viagem: imprimo os mapas, leio os guias de viagem e entro nos sites e blogs de viajantes. A internet tem sido um mapa precioso para me guiar. E também meu celular: liguei-o e já me disse onde estava: Região de Magalhães, Antártida Chilena.

Monumento Amores ao vento, em Puerto Natales (Arquivo pessoal/Andrea Brunetto)

 

Já sabia que ao sair do aeroporto, teriam várias vans estacionadas à frente e elas levavam os turistas até as companhias de ônibus. Três companhias fazem o trajeto entre Punta Arenas e Puerto Natales, cada uma tem sua loja e seu embarque em locais separados, na cidade. À frente do aeroporto, olhando as muitas vans, decidi por uma porque o motorista me pareceu confiável. Fui até ele, até o momento só eu interessada em contratar seus serviços. Minutos depois chegou um grupo com uns dez japoneses. Eu não sabia qual a melhor companhia de ônibus, mesmo com tudo que tinha lido sobre a viagem, mas os japoneses disseram para ele qual delas eles queriam. Eu fui na onda: pensei “os japoneses são muitíssimos mais espertos do que eu”. Na verdade, depois fiquei sabendo que era a companhia mais barata, não a de ônibus mais confortáveis. Paciência. Na van, fui sentada ao lado do motorista, ele me contando a história da cidade. Ao chegar à companhia de ônibus, os japoneses, apressados como são, pegaram suas malas e saíram. Eu peguei a minha por último. Não pagaram o motorista. Ele foi cobrá-los, o japonês a quem ele se dirigiu apontou para outro, ele chegou nesse e pediu o dinheiro e o homem lhe deu o dinheiro da passagem de todos. Fiquei pensando que lógica era essa: eles só dariam o dinheiro se ele pedisse ou foi um puro esquecimento?

No ônibus, já acomodada em direção a Puerto Natales, pude pensar um pouco na história do lugar. Punta Arenas começou como um pequeno povoado, um ponto de apoio aos navegadores, logo depois que Fernão de Magalhães entrou por um canal estreito, navegou por dias e saiu no outro lado, no Pacífico. O primeiro homem que deu uma volta completa ao mundo, de um canto ao outro. O mundo com seus mares e oceanos, ficou para ele, sem fronteiras. Enquanto navegavam, avistaram muitos fogos na terra, fogueiras que o povo nativo acendia para iluminar a noite e espantar o frio. Isso fez esse desbravadores chamarem a terra de Tierra del fuego. Em expedição futura, quando os espanhóis aportaram, encontraram marcas de pés gigantes, o que deu origem ao mito do abominável homem das neves. Os índios usavam sapatos grandes, feitos de pele e couro de animais, que lhes permitiam se locomover melhor na neve. Quando os europeus descobriram isso, o nome patagon e o mito, que tinham construído para esses habitantes ainda desconhecidos, já haviam deixado pegadas, fama. Os índios viraram os patagões, de patas grandes, embora não as tivessem. Enfim, mostra que grande é a imaginação do ser humano.

Tem pinguim na placa de boas vindas (Arquivo pessoal/Andrea Brunetto)

A esse canal estreito que tinha descoberto, Magalhães deu o nome de Canal de todos os santos: foi o primeiro nome do Estreito de Magalhães. Esse português que renunciou a sua cidadania, porque D. Manuel I teve mentalidade estreita e não quis financiar sua expedição para os Mares do Sul. O rei espanhol Carlos V. o fez, deu-lhe navios, tripulação e provisões, e acreditou em seu projeto de encontrar uma travessia que permitisse ligar dois oceanos. Fernão tinha quarenta anos, por uma causa renegou um rei, uma língua e uma nação. E a descoberta coube à Espanha, feita por um navegador português. Tivesse D. Manuel pessimismo menor e maior visão, hoje na Patagônia se falaria a nossa língua.  E tanto Fernão deu-se a essa causa que dela morreu, seis meses depois. Ele e sua frota atravessaram o estreito e saíram no Pacífico, navegaram margeando ilhas onde hoje são as Filipinas. Reduziram a velocidade para passar por outro estreito, ao lado da Ilha Mactan. Foram atacados pelos nativos e Magalhães foi morto em seu próprio navio, que ele escolheu o nome: Vitória. Perdeu a vida e eternizou seu nome na história, pois o rei espanhol soube valorizar seu feito e rebatizou o canal descoberto por ele, de Estreito de Magalhães.

Depois de Magalhães, a Patagônia Chilena com seu estreito de Magalhães virou o grande atrativo dos navegadores, única passagem de ligação entre o Pacífico e o Atlântico, até séculos depois a engenharia humana fazer o Canal do Panamá.  Anos depois de Magalhães, o pirata inglês Francis Drake foi o segundo homem a fazer a volta ao mundo, atravessando o canal. E para dar-se ares de importante, entrou no canal pelo Pacífico, foi até o Atlântico e voltou para reencontrar o Pacífico e fazer dupla travessia de uma vez só. E também deixou seu nome eternizado lá: o espaço de mar entre o continente e a Antártida é chamado de Passagem de Drake. Essa passagem marítima é onde se dá a pior navegação do mundo, as piores correntes que de lados opostos se encontram e aumentam pelo pior vento do mundo. Só não sei o porquê a Cartografia resolveu nomear essa parte do mar de Passagem de Drake se ele não atravessou por lá e sim pelo Estreito de Magalhães. Enfim, Drake queria se dar ares de importante na dupla travessia e os cartógrafos fizeram algo maior do que ele mesmo, esse pirata destemido, fez: na escritura cartográfica o fizeram navegar até mesmo onde sua coragem não o levou.  Assim, quando no hall do aeroporto de Punta Arenas, os agentes de viagem vieram me oferecer cruzeiro para os Mares do Sul, se aproximando das banquisas de gelo da Antártida, lembrei-me dessa história e respondi de jeito nenhum. Se nem Francis Drake teve coragem para tal, vou ser eu? De jeito nenhum.

(Arquivo pessoal/Andrea Brunetto)

 

E depois de Drake, outros piratas e frotas espanholas, holandesas, suecas e inglesas apareceram por lá. Em 1831, Robert FitzRoy, o capitão inglês do HMS Beagle,  em sua segunda expedição ao fim do mundo, levou o naturalista Charles Darwin e os mistérios das espécies do mundo começaram a ser decifrados.

Estou eu no ônibus olhando as paisagens desoladas de uma planície quase infinita, com vegetação rasteira, poucas árvores, retorcidas pelo vento a ponto de fazerem nós entre seus galhos, umas tantas já mortas, outras lutando bravamente contra o vento para sobreviver, pela janela pareceu-me que o terreno era calcário. Ali, naquela planície, sobreviver é só para os fortes, os muito fortes. É uma paisagem desolada. Nenhum restaurante, nenhum posto de combustível, quase sem construções por duzentos e cinquenta quilômetros. Converso com uma mulher sentada ao meu lado, mora em Puerto Natales, tem um curativo na mão esquerda. Cortou-se. Os pontos foram dados no pequeno hospital de Puerto Natales, mas os cuidados para não infeccionar, ela foi ter em Punta Arenas. Só nessa hora fiquei com medo: se eu passar mal, tiver qualquer problema de saúde, nem meu seguro Assist-Card daria jeito. Ela se surpreendeu por eu estar sozinha, disse que minhas amigas chegariam em três dias. Trabalhava em um restaurante com uma grande loja de artesanato e souvenirs, disse-me que eles teriam ceia de virada do ano. No dia seguinte pela manhã, fui lá e comprei meu lugar na ceia.

Pode até parecer montagem, mas não é (Arquivo pessoal/Andrea Brunetto)

 

O taxista que me levou ao hotel também se surpreendeu por eu estar sozinha e me deu seu telefone: se eu precisasse de algo, poderia ligar para ele. Percebi que ficou um tanto encantado por mim, mas foi muito simpático e gentil, guardei o telefone. Dirigiu pela avenida costeira ao fiorde; o primeiro posto de combustível que vi (a cidade só tem dois) foi da Petrobrás. No Hotel Saltos del Paine fui tão bem recebida por uma atendente jovem, tão simpática e que me explicou tudo o necessário. Com a mulher da mão cortada, de quem não lembro mais o nome, o taxista e a jovem atendente Ana – o posto da Petrobrás também – esqueci a sensação de desamparo que a paisagem desolada me deu. O hotel ficava a uma quadra do porto, fui a pé em direção a ele e havia uma imensa placa de aviso de como proceder em caso de tsunamis. O desamparo não voltou porque passei dias ignorando a placa. Quando Márcia e Alba chegaram, Márcia, que é a pessoa mais engraçada que eu conheço, me disse: você não nos disse dessa placa “corra que o perigo vem aí” – minhas amigas estavam em Santiago e conversávamos pelo whats.

O Parque Nacional Torres del Paine é um espetáculo, passamos um dia inteiro lá. Um conselho: há ônibus na estação rodoviária da cidade, com preço de passagem de circular, que fazem um pedaço do trajeto do parque, dá para se ir assim, sem gastar tanto. E não dá para achar que um dia basta para conhecer o parque. Tudo é tão grandioso que nem cabe nas fotografias. Mas já dei por visto.

Grupo enfim reunido (Arquivo pessoal)Quando estava no ônibus, além da planície quase infinita, ao longe, via-se a Cordilheira dos Andes, a separar a Argentina do Chile e um monte mais alto, praticamente vertical, sem escarpas. Confirmei com a minha vizinha de banco: é o FitzRoy? Ela me respondeu que sim. Era para eles a fronteira, para mostrar que ali já era a Argentina. Outro europeu que se eternizou ali: a pior montanha, mais vertical, pior escalada do mundo, tem o nome do navegador Robert FitzRoy. Tudo na Patagônia chilena é o maior: o vento, as marés, a montanha íngreme, a paisagem desolada. E o desamparo humano. Se na Patagônia Argentina, Blaise Cendrars escreveu que a tristeza imensa que sentia cabia na imensidão do lugar, nessa região do Chile, Gabriela Mistral usou adjetivos parecidos: infinita, desolada. Escreveu: “O vento faz de minha casa uma ronda de soluços, e de alaridos, quebra, como um cristal, meu grito na planície branca, de horizontes infinitos, e vejo morrer imensos ocasos dolorosos”. É parte de seu poema desolação. Depois de falar de tantos homens europeus que foram para lá e deixaram seus nomes em tudo, recordo-me de uma mulher simples, uma chilena do norte que foi ao sul de seu país escrever os mais belos poemas sobre a Patagônia, uma professora e poetisa, única mulher da América Latina a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura. Sua frase para designar a Patagônia: uma terra onde o vento não tem primaveras.

Ainda mais um conselho: enfrentem o desamparo que tal viagem evoca e não deixem de, pelo menos uma vez na vida, fazer parte dessa imensidão. Minhas idas à Patagônia não terminaram. Tenho de ir ao parque El Chaltén, perto de El Calafate e ver FitzRoy de perto. Procuro companhia para essa viagem, mas tem de ser das fortes.

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