A proprietária da creche em Naviraí, a 364 km de Campo Grande, acusada de dopar e agredir bebês e crianças, foi indiciada pela Polícia Civil por tortura, maus-tratos e exposição da vida ou saúde de outrem a perigo direto ou iminente. A funcionária que chegou a ser presa no dia também foi indiciada, esta por omissão perante as torturas e maus-tratos, além da ministração de medicamento cujo efeito colateral é sonolência.

A funcionária foi solta após pagar fiança, já a dona da creche, de 30 anos, continua presa. O inquérito policial foi concluído e encaminhado na quarta-feira (19) ao Poder Judiciário.

O local atendia crianças entre zero e sete anos de idade, no Bairro Sol Nascente, e cobrava valor médio de R$ 280,00, por criança. Apesar de popularmente conhecido, a creche funcionava em uma residência que prestava serviços de cuidados a crianças, sem fins educacionais e não possuía alvará de funcionamento.

A investigação conduzida pela DAM (Delegacia de Atendimento à Mulher) apurou denúncias de maus-tratos, tortura e omissão cometidos pelas investigadas, contra, pelo menos, 20 crianças de zero a sete anos.

Segundo a polícia, elementos coletados ao longo da investigação apontaram que a dona agredia física e psicologicamente as crianças de maneira explícita há meses. A mulher estava convicta da impunidade de cometer os atos ilícitos, sem que nenhuma ação fosse tomada. Estava convicta nas dissimulações que fazia com os pais das vítimas e segura de que não seria descoberta porque boa parte das crianças sequer conseguia falar, já que eram bebês.

A polícia ouviu 20 mães e responsáveis pelas crianças que eram atendidas na creche, o que ajudou a reunir elementos que comprovaram os crimes contra, pelo menos, 20 crianças.

Medicamento utilizado pela creche para fazer bebês dormirem (Divulgação, Polícia Civil)

Medicamento para dormir

Algumas mães apresentaram filmagens onde os filhos aparecem em estado de sonolência induzida. O laudo pericial de vistoria na creche constatou que o medicamento apreendido é contraindicado para menores de dois anos e é destinado ao controle de enjoos, vômitos e tonturas de diversas origens. A medicação foi flagrada sendo ministrado pela cuidadora, que afirmou ter dado 20 gotas a uma de 11 meses.

O início de ação do remédio ocorre de 15 a 30 minutos após a administração e a duração da ação pode persistir de quatro a seis horas e causar sonolência. Em crianças pequenas pode causar excitação.

Ainda, segundo o laudo, pode causar efeitos indesejados, como sedação, visão turva, boca seca, retenção urinária, tontura, insônia e irritabilidade, sendo que em caso de dose excessiva do medicamento (superdose), podem ocorrer sonolência intensa, aumento dos batimentos cardíacos, batimentos irregulares, dificuldade para respirar, e espessamento no escarro, confusão, alucinações e convulsões, podendo chegar à insuficiência respiratória e coma.

Segundo apurado, o remédio era dado para as crianças, sob a alegação de que era para tratamento de ou preveni-la em crianças que não estavam gripadas, porém, o real intuito era fazer as crianças dormirem durante o período em que ficavam no estabelecimento.

À polícia, os pais contaram que muitas vezes ao buscarem as crianças elas já estavam dormindo, permaneciam dormindo durante toda a noite e ainda tinham dificuldade de acordar durante a manhã, apresentavam sonolência na escola e também fora do horário normal, além de irritabilidade e agressividade.

A mãe de uma criança, de dois anos, relatou que recebeu um vídeo da proprietária do cantinho, com duração de quase um minuto, onde o filho nem piscou. A mãe chegou a desconfiar que o filho estava sendo medicado para dormir, mas sem conseguir ter certeza, deixou de levar o filho ao local.

Relatos das vítimas e famílias

Os depoimentos levam à conclusão de que o crime era sistêmico, contínuo e extremamente grave, a ponto de ter colocado em risco a vida de inúmeras crianças, por pelo menos seis meses, quando a proprietária passou a cuidar das crianças no estabelecimento.

Entre as agressões narradas pelas testemunhas há relatos de tapas pelo corpo, pescoço, rosto, beliscões e puxões de cabelo. Os atos serviam para castigar e disciplinar as crianças, mas, as agressões eram imputadas a outras crianças ou a algum tipo de acidente doméstico, pela proprietária da creche, quando questionada pelos pais.

Alguns relatos no inquérito chamaram a atenção da polícia durante a investigação. Em um deles, a dona do local teria esfregado a calcinha suja de fezes no rosto da vítima, de seis anos, portadora do espectro autista, para de puni-la por defecar e doutriná-la conforme seu método. Nesse caso, a criança contou ainda que a mulher a mandou comer as fezes, mas a criança se negou.

Em outro caso, uma criança de três anos vomitou durante uma refeição e a mulher esfregou o prato no rosto da vítima.

Há outros relatos, por exemplo, de crianças que faziam xixi na roupa e eram colocadas em situação vexatória porque a proprietária obrigava as outras crianças a fazerem roda, bater palmas e os chamarem de ‘mijões', além de ameaçar cortar o órgão genital das crianças caso a fazer xixi na roupa. Em outras crianças, a roupa com xixi era esfregada no rosto como forma de castigo.

Ema mãe relatou ainda que uma das crianças, uma menina de 7 anos, disse que devia ficar sentada assistindo TV, porque se fizesse bagunça a mulher iria deixá-la de castigo, ajoelhada no até o joelho sangrar.

Outra mãe perguntou para o filho por que ele nunca havia falado sobre tais agressões, ele respondeu que não falou porque a proprietária o ameaçou, dizendo que caso ele falasse, iria colocá-lo de castigo, deixando-o ajoelhado até os joelhos sangrarem. Câmeras instaladas pela Polícia Civil, com autorização judicial, captaram, nas primeiras horas de monitoramento, imagens de agressões físicas contra uma bebê de onze meses, em uma das imagens foi possível observar a proprietária jogando uma mamadeira na direção da criança, que apesar de passar perto não a acerta, sendo a bebê em seguida levantada brutalmente pelo cabelo para ser ajeitada no colchão.

Em um dos momentos, uma bebê foi deixada sozinha com uma mamadeira, enquanto mamava as cuidadoras ficavam em outra parte do cômodo, sem visão da bebê, correndo risco de engasgamento. Há imagem ainda que mostra uma cuidadora colocando um travesseiro sobre o rosto da bebê, antes de colocá-lo embaixo da cabeça dela, para em seguida dar medicamento para dormir.

Exame de corpo de delito e o laudo constatou que essa bebê apresentava eritema associado a discreto edema em região malar esquerda e lesão bolhosa no pé esquerdo, o que corroborou o relato de uma das crianças ouvidas, a qual disse que presenciou essa bebê apanhando inclusive no pé. A bebê ainda era empurrada para trás pela cabeça e tinha a boca tampada por pano.

Creche funcionava em residência em . (Divulgação, Polícia Civil)

Funcionárias da creche

Ex-funcionárias da creche que trabalharam como ajudantes no local disseram à polícia que tinha restrição de uso de celular no local e de contato com os pais. Disseram ainda que nunca denunciaram porque achavam que não acreditariam nelas sem filmagens ou fotos. Lembraram que as crianças levavam tapas, chacoalhões e puxões de orelha caso levantassem do colhão para brincar.

Algumas crianças choravam muito, e elas acreditam que fosse por fome, pois a proprietária só dava mamadeira e às vezes banana, mesmo que as mães tivessem mandado lanches para os filhos.

Uma das mulheres que trabalhou no local no início do ano contou que a proprietária gritava muito com as crianças, negava alimentos, deixava muito de castigo e não deixava brincar, servia comida apenas na hora de tirar as fotos, e depois que tirava as fotos para enviar para os pais, ninguém mais podia repetir a comida.

Oito crianças, que passaram por situações de agressões físicas e psicológicas ou as presenciaram, foram ouvidas em procedimento de escuta especializada e relataram espontaneamente os episódios vivenciados. A escuta é feita por profissional especializado e é aplicada em casos de crianças vítimas e testemunhas de violência.

As investigações continuam porque algumas crianças que foram citadas como vítimas, ainda não foram identificadas.

A maioria das pessoas foi ouvida após a prisão da proprietária, quando o caso foi divulgado e os pais perceberam que alguns sinais que acharam estranhos podiam ser, na verdade, em decorrência de atos de violência vividos pelos filhos.