Quem são os policiais que querem a legalização das drogas e o fim da violência corporativa

Eles são contrários à militarização da segurança pública

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Eles são contrários à militarização da segurança pública

Três adolescentes apanham de uma fila de policiais militares. É Carnaval em João Pessoa, e os jovens invadiram um orfanato para roubar uma televisão e uma bicicleta. “Onde está a arma?”, perguntam os policiais. Entre uma pancada e outra, dois cadetes que acompanhavam a operação saem da sala.

A cena, que teria acontecido em 2006, foi descrita à BBC Brasil por um dos cadetes que reprovaram a abordagem – a Secretaria de Segurança da Paraíba não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

Dez anos depois e agora capitão da PM, Fábio França diz que ainda rejeita a violência na instituição. Ele faz parte de um grupo de policiais civis e militares que se autodeclaram antifascistas e criticam a política de segurança pública adotada no Brasil.

Espalhados pelo país, seus integrantes – grande parte deles acadêmicos ou com pós-graduação – querem o fim da militarização e a legalização das drogas.

“O que me levou a despertar foi tentar entender que mundo era esse. Percebi o comportamento dos meus colegas e isso foi me angustiando. Queria saber por que se transformavam naquilo”, diz França, que então decidiu fazer mestrado e doutorado em Sociologia.

“Procuramos que a PM se reencontre com as instituições democráticas.”

Para fazer esse debate, o grupo se organiza há alguns anos pela internet e em eventos de associações como a Leap (agentes da lei contra a proibição das drogas). Um dos sites que concentra essa discussão, o Policial Pensador, teve 200 mil visualizações desde que entrou no ar, em 2014. Criada pelo tenente Anderson Duarte, do Ceará, a página reúne artigos sobre temas como redução da maioridade penal.

Duarte, de 33 anos, diz que a convergência dessas ações nos últimos anos foi provocada pelo maior acesso dos profissionais de segurança à educação e pelo fortalecimento de um discurso conservador, que gerou a necessidade de um contraponto.

“Muitos pares têm pensando de forma diferente e faltava um espaço para discussão. Sempre partimos do ponto de que não existe democracia sem polícia, e aí perguntamos: que polícia nós queremos?”

Guerra às drogas

Um dos principais tópicos discutidos por esse grupo é o combate ao tráfico de drogas. Para eles, esses confrontos provocariam muitas mortes e seriam ineficazes.

“Não se tratam de ações contra as drogas, que são inanimadas, mas contra as pessoas. A polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre no mundo. Temos números de guerra”, diz Duarte, que também é doutorando em Educação.

A guerra às drogas estaria ligada à militarização das instituições, diz o delegado e diretor do Leap Orlando Zaccone.

De acordo com ele, seguindo a lógica militar, a polícia é voltada para embates e precisa estabelecer um inimigo: o traficante. Zaccone questiona a prioridade que o Estado dá a um crime que, pela lei, não ameaça à vida.

“O tráfico é o crime que mais encarcera mulheres e o que deixa mais tempo preso hoje. E isso é estranho, porque não tem vítima (na legislação). O que se defende na lei é um bem jurídico, uma questão de saúde pública. A importância que dão a ele tem a ver com a militarização, que precisa de um oponente para se manter.”

Militarização

Um dos caminhos apontados por Duarte e Zaccone para acabar com o conflito é a legalização das drogas, com venda e uso regulamentados pelo governo. No entanto, dizem, para chegar ao cerne do problema – a desmilitarização – é necessária uma mudança profunda: rever o papel da polícia. Do viés de repressão, ela deveria passar para o de proteção e mediação de conflitos.

O capitão Fábio França afirma que a origem da polícia brasileira está no século 19, quando foi usada para reprimir revoltas contra o Império.

O casamento entre polícia e Exército se consolidou na Constituição de 1934, quando a primeira passa a ser subordinada ao último. Na ditadura, os policiais militares, que atuavam só no caso de distúrbios civis, saíram dos quartéis e foram para o dia a dia das ruas.

De acordo com os entrevistados, a lógica militar, de combate e aniquilação do adversário, ajudaria a explicar o comportamento violento de policiais.

Tais ideias, no entanto, não são consenso. Para José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia Militar e ex-secretário Nacional de Segurança, a proximidade com o Exército é necessária para manter uma estrutura de controle e disciplina.

Uma polícia desmilitarizada, pondera, poderia se corromper com mais facilidade.

“Uma estrutura de contenção é importante para quem está sujeito a muito estresse no dia a dia profissional.”

Treinamento

Outro tema questionado por esses policiais é o treinamento.

França, que estuda a formação desses profissionais, diz que os recém-chegados têm dois currículos: o formal, que inclui direitos humanos, e o “oculto”, com práticas que têm mais força. O discurso progressista, afirma, fica na teoria numa rotina de xingamentos e castigos.

“A pedagogia militar incute um processo em que a humilhação é a tônica central, alunos apanham dos instrutores. Os policiais não veem o que é direitos humanos porque não têm seus direitos respeitados.”

Segundo levantamento de 2014, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Fundação Getúlio Vargas e Secretaria Nacional de Segurança Pública, 28% dos policiais ouvidos afirmaram ter sido “vítima de tortura em treinamento ou fora dele” e 60% narraram situações de desrespeito ou humilhação por superiores.

Para João*, sargento da Polícia Militar do Ceará, ao viverem sob esse regulamento estrito, os policiais querem reproduzi-lo com os civis.

“Quando privam sua liberdade por causa de uma farda amarrotada ou de um atraso, você transfere essa lógica para a sociedade. Acha que a população tem que ser subserviente a você. Nossa formação é voltada para guerra – existe nós e os inimigos. E às vezes são os cidadãos que juramos defender.”

Na contramão desse pensamento, o coronel José Vicente considera que deve haver pressão nos exercícios, porque eles preparam os profissionais para uma rotina de medo.

“O treinamento para lidar com estresse não é feito com PowerPoint. Tem que colocar sob estresse para o agente saber lidar com as circunstâncias.”

Entretanto, o ex-secretário de segurança pondera que é preciso melhorar as relações entre chefes e subordinados, impedindo lideranças muito autoritárias.

Sangue nos olhos

Segundo esses policiais, a imagem de violência que o treinamento e a atuação da polícia geram atrai pessoas de perfil agressivo, que desejam usar a farda para exercer essa brutalidade.

O investigador da Polícia Civil da Bahia Denilson Neves, de 47 anos, diz que precisou acalmar os ânimos várias vezes, quando estava participando de diligências, porque “as pessoas estavam com sangue nos olhos”.

Segundo Neves, que é militante de esquerda há 30 anos, parte dos recém-chegados tem uma visão equivocada da profissão.

“Eles entram para fazer justiça com as próprias mãos. Reprimir e matar têm sido a lógica da polícia e muitos vão lá porque identificam com a ideia.”

Para os entrevistados, também há influência de um discurso conservador, que estaria se expandindo no Brasil, sobre esses profissionais. Como uma esquerda que renega o policial, diz o delegado Orlando Zaccone, seções ligadas à direita ganham adeptos.

“Os policiais têm pouca ou nenhuma atenção das esquerdas. Quando a direita aparece e diz que ninguém cuida da vida dos policiais, que são heróis, tem uma recepção grande.”

O sargento João fala de um “glamour” que existe na militarização. Setores mais tradicionalistas, afirma, acham que as organizações de segurança vão dar alguma “pureza moral” para o país.

“Teria vergonha de alguém querer tirar foto comigo (em um protesto), porque não seria pela minha missão de proteger a sociedade. Seria pelo uso da força.”

Há 15 anos na PM, João diz que, por ser ter uma visão crítica, é hostilizado pelos colegas.

O policial conta que virou persona non grata em grupos no WhatsApp e tem suas postagens no Facebook ridicularizadas. Num dos posts, ele reprova a ação de PMs acusados de cometer uma chacina para vingar a morte de um amigo.

“Todos disseram ‘como você faz isso? O cara (assassinado) era pai de família’. E as famílias dos meninos mortos não estão sofrendo, não? Sou visto como uma anomalia. Muitos dizem que sou um lixo.”

Casos como esse não se restringem à PM. A escrivã Cecilia*, da Polícia Civil de São Paulo, conta que, ao fazer qualquer questionamento, é considerada inocente.

“Existe uma ideia de que há um inimigo dentro da sociedade. E, a meu ver, a função é de proteção.”

Para Cecilia, de 41 anos, é difícil para seus superiores compreenderem isso.

“Quando digo que não quero uma polícia opressora, respondem que estou fazendo carinho em bandido.”

Convencimento

Com tantos empecilhos e em menor número, os policiais desses grupos buscam influenciar os companheiros de trabalho aos poucos.

Antes das operações, o investigador Denilson Neves, da Bahia, pergunta aos colegas: “o que ganhamos ao tirar a vida de alguém?”.

“Um ou outro policial pode fazer essa reflexão crítica, o que destrói a possibilidade de fazerem algo no automático.”

Além do boca a boca, o grupo se organiza para entrar num debate amplo sobre esses temas – e atrair simpatizantes. Parte de seus integrantes negocia a publicação de um livro.

O primeiro passo para a mudança, afirmam, é acelerar a profissionalização do policial como um agente protetor. Para eles, um PM deveria ser especialista em negociação de conflitos, e não em técnicas de guerra.

“A polícia sempre será um instrumento de manutenção da ordem, mas não significa que seja reacionária ou fascista. Ela vai continuar defendendo a vida e a propriedade privada, mas não precisa ser no pau de arara”, afirma o inspetor da polícia civil do Rio de Janeiro Hildebrando Saraiva, 35 anos.

“A ideia é criar métodos modernos e democráticos.”

O objetivo proposto, explica o delegado Orlando Zaccone, é aproximar a corporação das pessoas e buscar mais independência do poder político, o que exige mudar o entendimento do Estado sobre segurança.

Longe dos ideiais almejados, os policiais do grupo se dizem otimistas.

“Acho que vivemos um momento de transição. Se você comparar com 20 anos atrás, melhorou muito. Até tem gente rejeitando imagens de chacina no WhatsApp”, afirma o inspetor Neves.

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