A incrível história de cooperação entre o xamanismo do Peru e cientistas dos EUA

Depois da quinta cirurgia, ele passou seis semanas de cama

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Depois da quinta cirurgia, ele passou seis semanas de cama

Dez anos atrás, o consultor político Mark Pischea, de Williamston, Michigan (Estados Unidos), pai de cinco filhos e então com 42 anos, foi levado ao hospital às pressas com dor abdominal intensa.

O diagnóstico que ele recebeu foi da doença de Crohn, condição autoimune crônica que pode provocar desconforto abdominal extremo, perda de peso, fadiga e febre. O marido e pai até então saudável passou os dez anos seguintes de sua vida em um ciclo constante de fases de intensificação da doença, cirurgias e períodos de recuperação.

Depois da quinta cirurgia, ele passou seis semanas de cama. Naquele momento os médicos lhe disseram que as únicas opções que lhe restavam seriam uma sexta cirurgia ou a remoção de seu estômago. Pischea sentiu vontade de morrer.
Na realidade, porém, existia uma outra opção, se bem que fosse incomum.

Por insistência de sua mulher, Pischea saiu da cama, embarcou em um avião e viajou até um centro rústico de cura em San Roque de Cumbasa, um vilarejo minúsculo na Amazônia peruana.

Ele passou as três semanas seguintes isolado, seguindo uma dieta restrita a arroz, bananas-da-terra e chás de ervas preparados especialmente para ele. Tinha encontros várias vezes por dia com um xamã chamado Antonio, que lhe prescreveu plantas locais que induziam ao vômito, para purificar o corpo e “reiniciar” o sistema imunológico.

As recomendações do xamã incluíram o uso da ayahuasca, uma bebida alucinógena potente, e kambo, o veneno de um sapo da floresta amazônica.

Quatro meses mais tarde, Pischea está livre não apenas dos sintomas da doença de Crohn mas também da depressão que o acometeu junto com a enfermidade.

“Para mim, estar livre de sintomas não é nada menos que um milagre”, ele disse ao Huffington Post. “Sinto gratidão por cada dia que passo bem.”

À procura de respostas
Pischea faz parte de um contingente rapidamente crescente de americanos que enfrentam câncer, doenças crônicas, doenças mentais e outros males e que se voltaram à Amazônia para buscar respostas que a medicina moderna não lhes deu.

“Fui às maiores clínicas do mundo que tratam da doença de Crohn, fui atendido pelos maiores médicos do mundo, e ninguém conseguiu me ajudar”, ele disse. “As plantas da selva possuem qualidades curadoras que só estando realmente naquele ambiente é possível sentir. Acho que elas realmente funcionam.”

Mas os recursos médicos potenciais da Amazônia –especialmente as 80 mil plantas nativas da região e o conhecimento xamanista frequentemente existente apenas em forma oral entre as tribos em processo de desaparecimento—quase não têm sido aproveitados.

Apesar do fato de 25% das substâncias farmacêuticas modernas serem derivadas de plantas da floresta tropical, até hoje menos de 1% das plantas tropicais foram analisadas para finalidades médicas.

Mesmo os remédios fitoterápicos usados comumente pelos xamãs, como são conhecidos os curandeiros e curandeiras indígenas, são pouco entendidos pelos médicos ocidentais. Poucas pesquisas foram feitas até agora para avaliar a medicina fitoterápica indígena e os protocolos de tratamento xamanistas.

Mas essa situação está começando a mudar. Agora um novo projeto de pesquisa em grande escala está criando a oportunidade para um encontro entre a medicina tradicional e a moderna, entre xamãs e cientistas.

No Equador e no Peru, a Fundação Runa – organização sem fins lucrativos que trabalha com conservação na Amazônia e cria oportunidades de avanço econômico para os povos indígenas – está trabalhando com uma iniciativa nova, a PlantMed, para construir clínicas médicas para pesquisas sobre medicina fitoterápica. Serão as primeiras instalações desse tipo no mundo.

“Estamos tentando montar uma equipe multidisciplinar que envolva médicos e psicólogos de formação ocidental, além dos xamãs nativos destas regiões”, disse ao Huffington o Dr. Mauro Zappaterra, médico formado em Harvard e que faz parte dos conselhos de assessoria das clínicas que se pretende que sejam abertas.

“Queremos reunir as melhores cabeças da medicina ocidental e da medicina amazônica, ou xamanista, para criar uma medicina ainda melhor que incorpore isso tudo.”

A ideia de procurar o próximo medicamento milagroso na selva amazônica está longe de ser inovadora. Há décadas as empresas farmacêuticas enviam etnobotânicos à floresta para testar e coletas plantas com propriedades médicas potenciais.

Apesar de toda essa exploração, porém, tem havido pouca colaboração entre esses pesquisadores médicos e as pessoas que há milhares de anos fazem uso dos poderes curadores dessas plantas.

Esse tipo de colaboração está ao cerne da missão da PlantMed. No Centro Naku, situado numa área de biodiversidade rica no meio da Amazônia equatoriana, pesquisadores das universidades Stanford, Yale e outras instituições vão trabalhar com curandeiros da tribo Sapara, que tem menos de 600 integrantes e corre risco de extinção.

No centro Rios Nete, no Peru, os pesquisadores vão trabalhar com a tribo maior Shipibo, cujos membros são famosos por sua sabedoria médica.

Em cada um dos centros, um médico ocidental e um xamã, com o apoio de uma equipe de clínicos e profissionais de wellness, vão cuidar de um grupo inicial de 15 pacientes usando os protocolos xamanistas, enquanto os pesquisadores analisam os tratamentos com tecnologia moderna. Os centros estão previstos para abrir no início de 2016.

O Dr. Mark Plotkin, etnobotânico estudioso da Amazônia, conservacionista e autor do livro Tales of a Shaman’s Apprentice, de 1994, disse ao HuffPost que, embora a medicina moderna seja o sistema de cura mais sofisticado que já existiu, ela ainda apresenta muitas lacunas.

“Basta pensar no câncer pancreático, na insônia, no refluxo ácido, no estresse – todas essas coisas que a medicina ocidental não consegue curar – para perceber que precisamos de alternativas ou acréscimos.

O Dr. Gerard Valentine, psiquiatra, pesquisador da Yale School of Medeicine e assessor da Rios Nete, diz que as clínicas da PlantMed estão preparadas “para traduzir um tesouro quase desconhecido de conhecimentos botânicos em modos de tratamento inovadores, práticos e baseados em evidências.”

Os pacientes vão passar entre três semanas e quatro meses nas clínicas, dependendo do diagnóstico recebido e da progressão da doença de cada um. Cada um será cuidado por um médico principal e um curandeiro tradicional principal, que trabalharão juntos sobre seu caso.

“Como ocidentais, nos ensinam que qualquer coisa que não seja feita por um homem branco de avental de laboratório não é ciência, mas é evidente que isso não é verdade.”

 
 

O xamã fará uma avaliação holística do estado físico, mental, emocional e espiritual de cada paciente. Em seguida o paciente receberá um protocolo de tratamento por medicina fitoterápica que visará corrigir aquela que o xamã determinar que é a causa original de sua enfermidade.

Enquanto isso os pesquisadores vão analisar os métodos de tratamento e as prescrições fitoterápicas do xamã, medindo vários biomarcadores da doença nos pacientes antes e depois do tratamento e tomando nota dos efeitos positivos e adversos.

“É a criação de um centro não apenas de pesquisas, mas de cura”, disse Zappaterra. “É com pesquisas que se faz a medicina avançar. Fazem-se perguntas para investigar. Dados são coletados e analisados. Verifica-se quais são os efeitos e os efeitos colaterais.”

O primeiro objetivo das clínicas é encontrar uma cura para doenças autoimunes.

Quando o corpo se ataca
Mais de 50 milhões de americanos – ou seja, uma em cada cinco pessoas – sofrem de alguma forma de doença autoimune. Existem mais de 80 tipos conhecidos de doenças autoimunes, incluindo o lúpus, a artrite reumatoide, a diabetes tipo 1 e a esclerose múltipla. Desses 50 milhões de pessoas, 75% são mulheres.

Foram desenvolvidos tratamentos com graus diversos de eficácia, mas não há cura conhecida. Existem algumas soluções compostas de vários elementos, mas os médicos raramente conseguem identificar e combater as causas originais que levaram o sistema imunológico a começar a atacar seus próprios tecidos saudáveis.

Com frequência os médicos recorrem a drogas imunosupressoras como corticosteroides para desativar o sistema imunológico. Esses medicamentos geram muitos efeitos colaterais e nem sempre são eficazes.

“Existem muitas desordens autoimunes que afetam milhões de pessoas em todo o mundo, para os quais não há cura e cujos tratamentos estão longe de serem exitosos”, disse ao HuffPost o co-fundador da Runa, Tyler Gage. “Assim, enxergamos uma abertura importante para contribuições da medicina fitoterápica.”

As doenças autoimunes são de diagnóstico difícil até mesmo para médicos, isso porque frequentemente são sinalizadas por uma constelação nebulosa de sintomas como fadiga, pensamento confuso, resfriados frequentes e sentimentos de mal-estar generalizado.

Segundo a Associação Americana de Doenças Autoimunes, os pacientes americanos diagnosticados com algum tipo de doença autoimune levam em média cinco anos e cinco médicos apenas para receber um diagnóstico.

Essas doenças são misteriosas e multifacetadas. Uma razão possível pela qual muitos relatos empíricos constataram a eficácia de tratamentos xamânicos no tratamento de problemas autoimunes é que os xamãs olham para o paciente de modo holístico, levando em conta seus fatores mentais e emocionais.

“Muitos pesquisadores agora estão se concentrando sobre os componentes ‘psicogenéticos’ dos transtornos autoimunes e sobre a compreensão da origem e natureza psicossomática dessas doenças”, disse Gage.

“As estratégias de tratamento na medicina amazônica invariavelmente focam o bem-estar psicológico, emocional, físico e espiritual do paciente, elementos que estão todos interligados, e têm como alvo os pontos de intersecção entre esses aspectos.”

Em seu livro de 2003 sobre o vínculo entre estresse e doenças, When the Body says No, o médico canadense Dr. Gabor Maté escreve que em quase todo paciente autoimune com o qual ele já trabalhou “a repressão emocional subjacente era um fator sempre presente”.

De fato, um conjunto crescente de pesquisas constata que o estresse, traumas infantis, ansiedade e outros fatores psicossociais podem exercer um papel no desenvolvimento da autoimunidade. Um estudo concluiu que pacientes com artrite reumatoide com frequência relatam ter sofrido abuso e abandono emocional na infância; para outro, pacientes com esclerose múltipla manifestam “insegurança que fomenta sua necessidade de sair em busca de mais amor”.

Os pacientes com lupus frequentemente também relatam históricos de carência emocional infantil.
Essa é apenas uma possibilidade. Também é possível que algum aspecto da composição química singular das plantas amazônicas seja especialmente adequada ao tratamento do mau funcionamento do sistema imunológico.

“É possível que a natureza das doenças autoimunes (que, em muitos casos, representam a incapacidade do corpo de distinguir entre ele próprio e aquilo que ‘não é dele’) envolva algo mais como um simples botão de liga/desliga.

E alguma coisa na bioquímica das plantas ou no modo como são dadas ao paciente talvez consiga ter efeito sobre esse ‘botão’”, disse ao HuffPost em e-mail o co-fundador da clínica Rios Nete, Luke Weil.

É importante ressalvar que a medicina xamanista não traz uma solução mágica às doenças autoimunes e que pode não ser eficaz para muitos pacientes, talvez nem mesmo para a maioria deles. Mesmo assim, parece que, ao aprendermos mais sobre a medicina fitoterápica, poderemos ampliar nosso entendimento dessas doenças misteriosas e, quem sabe, avançar na direção de tratamentos melhores.

“Os xamãs dizem que Deus não criou uma doença sem criar uma cura”, falou Pischea. “As curas existem. Só precisamos encontrá-las.”

Tribos à beira da extinção
Mas são muito grandes as chances de não encontrarmos essas curas se a destruição implacável da floresta continuar.

Numa época em que os ocidentais estão vivendo mais tempo que nunca antes na história, e vivendo com mais doenças, um tempo em que as doenças crônicas têm um impacto anual de mais de US$1,3 trilhão sobre a economia dos Estados Unidos, a Amazônia é um manancial em grande medida não utilizado, algo que não podemos nos dar ao luxo de ignorar.

Enquanto tribos indígenas como a dos Sapara e Shipibo se equilibram na beira da extinção (os Saparas, antes uma tribo forte com mais de 200 mil integrantes, hoje é composto de um grupo de apenas 575), seu vasto cabedal de conhecimentos médicos, muitos dos quais não preservados por escrito em nenhum lugar, provavelmente vai desaparecer com eles.
Seria uma perda gravíssima.

Os Saparas fizeram avanços profundos na medicina fitoterápica, tendo determinado numerosas utilizações para mais de 500 plantas locais. Mas pouco desse conhecimento chegou até a medicina ocidental.

Como o chefe Sapara disse à PlantMed, os membros da tribo têm a visão de disseminar seu conhecimento.
“Eles querem muito compartilhar sua medicina e suas tradições com o mundo, de uma maneira respeitosa e científica”, disse Gage.

A PlantMed ocupa uma posição singular, podendo converter essa visão em realidade. A organização mantém relacionamentos com as tribos há quase uma década e está dedicada a compartilhar os conhecimentos delas de maneira respeitosa.
Lamentavelmente, uma colaboração como essa seria a exceção, não a regra histórica. Os conhecimentos de povos indígenas já foi explorado incontáveis vezes por empresas farmacêuticas. No ano passado, em uma palestra TED que ganhou grande repercussão, Plotkin comentou que, quando um medicamento contra a Aids que rendeu bilhões de dólares foi desenvolvido a partir do veneno de uma cobra brasileira utilizada tradicionalmente pelos povos indígenas para finalidades médicas, os brasileiros não viram a cor desse dinheiro.

“Existe uma maneira errada de trabalhar com essas tribos, que é o que já foi feito antes, e existe uma maneira certa, que é aquela para a qual temos uma proposta, mas que não está sendo feita”, disse Plotkin ao HuffPost.
Os novos centros de pesquisas podem ser essa “maneira certa”.

“Vemos a clínica como uma plataforma para alimentar e empoderar os conhecimentos que essas comunidades possuem, além das plantas que estão à base desses tratamentos – especialmente considerando que tanto as comunidades quanto as plantas estão desaparecendo em ritmo acelerado”, disse Weil. “Nosso objetivo é mostrar seu valor ao resto do mundo, com a esperança de sustar essa destruição.”

Também Pischea espera que esses tratamentos sejam disponibilizados a outras pessoas que enfrentam doenças crônicas. Hoje ele desfruta de saúde boa e energia renovada. Sempre existe o risco de seus sintomas voltarem, como acontece com qualquer condição autoimune, mas Pischea está levando a vida um dia de cada vez.

“O potencial é que muitas pessoas que estão sofrendo desnecessariamente possam se sentir melhor”, ele disse. “Acho que até muitos médicos ocidentais estão começando a perceber que existem respostas que extrapolam os livros didáticos e que eles precisam ter a abertura necessária para fazer qualquer coisa que beneficie seus pacientes.”