3 furos imperdoáveis de ‘A Vida da Gente’ que subestimaram o telespectador
Trama tem proposta realista e vai bem no que se propõe, por isso alguns deslizes não passaram despercebidos
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Toda e qualquer obra de ficção não tem nenhum compromisso com a realidade. Entretanto, a ausência de realismo não dá ao autor o direito de subestimar o seu público. Ou seja, quem escreve o produto não pode jamais subjugar a capacidade de análise e compreensão de quem está do outro lado da tela.
Apresentando uma proposta realista, a novela das seis “A Vida da Gente” é fiel ao que se propõe. 90% do folhetim convence e retrata com habilidade os conflitos das famílias brasileiras e as relações humanas. Mas houve um grande deslize na representação do coma da protagonista e algumas falhas imperdoáveis por parte da autora, Lícia Manzo, ao mostrar a vida após o despertar de Ana (Fernanda Vasconcellos).
O que era para ser um verdadeiro espetáculo de contemplação narrativa e representativa, acabou por se tornar o calcanhar de aquiles da obra. Alvo de muito trabalho de dedicação, o despertar e o coma de Ana Fonseca não poderiam ter deixado brechas tão notáveis e desnecessárias, aparentemente pelo apelo visual e pela construção de ‘grandes cenas’.
Quando abriu mão de detalhes óbvios e preciosos, “A Vida da Gente” deixou de lado seu realismo proposto e vendido como fundamental por sua própria produção. Essa abertura à fantasia, ao lúdico, aconteceu no momento menos apropriado para o folhetim e muita gente ficou sem entender o porquê da escolha de caminhos que sequer combinam com a trama.
Veja a seguir quais foram os furos que subestimaram o telespectador da novela:
1) Tempos sem saber como é o rosto da filha
Esta é considerada a falha mais gritante. Após anos em coma, Ana Fonseca finalmente acorda, inicia uma recuperação e pergunta pela filha. Demora um tempo até ela descobrir que anos se passaram e sua menina já não é mais um bebê. Antes de começar o processo de reabilitação, Ana é comunicada do ocorrido e descobre que a Júlia (Jesuela Moro) já é uma moça. Pergunta e pede sempre para ver a menina, mesmo já sabendo que o tempo passou e ela cresceu. Entretanto, ninguém (absolutamente ninguém) foi capaz de sequer mostrar uma foto da criança para ela.
Depois de ter despertado, a protagonista passou meses em recuperação: da fala, dos movimentos, de tudo. Adiou o encontro com a filha para poder estar em plenas condições para vê-la e poder conversar com ela. Ok. Mas ao ponto de não ver nenhuma fotografia para matar a curiosidade de saber como Júlia está depois de tanto tempo? Ela, em momento algum pediu para ser poupada de fotos. Ninguém mostrou porque a autora não quis, já com a intenção de criar uma grande cena envolvendo o encontro das duas. Para isso, Ana não poderia ver o rosto da filha mesmo já estando acordada há alguns meses.
Os folhetins se apoiam nessas construções, e está tudo certo. Mas a novela tem uma proposta realista, e ao criar tal entrecho, fugiu completamente de seu estilo. Foi simples e real quando mostrou Ana despertando, mas construiu um momento que passou longe da realidade logo na sequência. Que mãe acordaria de um coma depois de anos e não pediria nem para ver uma foto da filha, já crescida? Ou esperaria meses para o reencontro? E pior: que família não mostraria a ela essa foto? Como dizem: só em novela mesmo.
2) Lado romântico
O coma de Ana foi uma das coisas mais ‘bonitas’ da novela. Tudo sempre bem preparado, sem os desafios da rotina de um paciente no hospital. Em todos os 35 capítulos que passou desacordada, a protagonista esteve deitada lindamente em uma cama, sempre arrumada e com boas roupas. Também fugindo de uma dura realidade, a trama optou por não mostrar a vivência hospitalar de quem está debilitado e das pessoas que o cuidam. Foi tudo ‘lindo’. É só dormir e pronto. A mãe, ao lado, também sempre linda, arrumada e estonteante. “A Vida da Gente” fez o coma parecer incrível, simples e poético.
Nas redes sociais, muitas pessoas questionaram a ausência de aparelhos na personagem e os gastos com hospital que são uma fortuna para manter alguém desacordado diariamente. A novela nem tocou nessas questões. Eva, a mãe de Ana, (Ana Beatriz Nogueira) nunca trabalhou. Supostamente, quem mantinha os custos era a irmã Manuela (Marjorie Estiano), mas também sem deixar muito claro quem realmente arcou com os valores.
Até porque demorou anos para que Manu tivesse alguma renda, e já na atualidade da trama, o capital dela claramente não banca e nunca foi capaz de bancar alguém em coma dentro de um hospital, uma família e seu buffet. Os patrocinadores da ex-tenista ficaram responsáveis pelas despesas no começo, mas e depois? Nesse ponto, o folhetim também vacilou. Quem é que custeava tudo aquilo? Como? Ana nunca foi mostrada saindo da cama ou sendo transportada durante o estado vegetativo. Quase nenhum aparelho? O público se questionou.
3) Intacta
Por fim, outro furo que não passou despercebido. Depois de tanto tempo desacordada, a protagonista simplesmente não perdeu peso, ficou flácida, ou coisa parecida. Ana se manteve intacta, algo absolutamente impossível para quem passa mais de 5 anos em coma. Até o visual se manteve o mesmo: sobrancelhas sempre bem feitas com o passar dos anos, cabelos tingidos e o peso igual, sem tirar nem pôr.
Cautelosa em tantos detalhes, como a demora na recuperação, a sutileza e a simplicidade no despertar, “A Vida da Gente” teve falhas que avacalharam esse percurso. Dizer que foi para facilitar a narrativa não convence, porque a supressão de todos esses detalhes, na verdade, acabou subestimando o público que, ciente da realidade, sentiu falta de suas representações.
Nada disso era necessário para a narrativa? Ok. Mas são detalhes que levam o telespectador a pensar que está sendo feito de bobo, tanto que cobram a ausência das minuciosidades que conhecem quando não as veem retratadas na telinha.
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