Morar no interior brasileiro, próximo ao Pantanal, pode ser um desafio quando se trata de viver com os estereótipos. Além de muitos esquecerem do complemento “do Sul”, vários outros clichês fazem parte da lista que caracteriza o Mato Grosso do Sul para os ‘estrangeiros’. A capital, , não fica de fora do julgamento prévio, que nem sempre são verdadeiros.

Entre os principais preconceitos que o campo-grandense sofre estão: o clima muito quente, o humor dos habitantes e falta de simpatia, o uso da mandioca em vários pratos tradicionais, animais silvestres em regiões urbanas, além de vários outros.

A estudante de enfermagem Mayara Xavier Frade Gomes veio para Campo Grande de Araçatuba, no interior de . Mesmo a 500 km de distância, tinha a impressão de que a capital de MS tinha ares de interior. Ruas eram largas e boas para dirigir foram a principal dica de amigos.

“Quando me mudei e passei a conviver com o pessoal daqui, eu percebi porque não falavam das pessoas. Infelizmente tive experiências não tão legais. O atendimento é muito ruim nas lojas (não todas, claro), as pessoas não dão bom dia, boa tarde, boa noite… É tranquilo para morar, a paisagem é linda (como o parque das Nações), tem bastante opção gastronômica e entretenimento no fim de semana”, conta a estudante.

Primeiras impressões

O também estudante, Endrew Emanoel Stopassola Metzler, veio do outro vizinho de estado, o Paraná, para estudar Odontologia. Ele ressalta que a impressão era de que veria animais pelas ruas sempre, devido aos memes que circulam sobre a cidade. O tempo seco e a receptividade das pessoas também foram pontos em que mudou de ideia.

“Acredito que seja verdade sobre a questão do pessoal ser um pouco mais fechado mas não dá pra generalizar. Tenho amigos campo-grandenses que são super queridos e receptivos. O MS realmente é muito quente e seco em algumas épocas do ano, sinto dificuldade pra me acostumar até hoje. Realmente vi que os animais estão muito presentes na vida da cidade, na minha cidade não tem esses bichos, ou pelo menos não se vê, por exemplo, araras. Não é tão raro ver esses bichos mas acredito que é pela cidade toda”, ressalta.

A intercambiaria Bruna Sofia Delgado Monteiro veio de Cabo Verde, país da costa noroeste da África a 4511 km do Brasil. A expectativa era conhecer o Brasil todo, mas não esperava que as Capitais seriam tão longe umas das outras. A falta de animação e programas culturais desanimou a jovem.

“Achava que aqui era igual como a mídia mostra o Brasil, muita festa, animação, pessoas simpáticas… Mas cheguei em Campo Grande e deparei com uma ‘cidade grande de interior’, muito parada, pessoas antipáticas e fechadas. A maioria dos meus amigos são de outras cidades do Brasil. Não tem muitos lugares pra sair, apenas barzinhos, o lado cultural quase não existe”, conta Bruna.

Ouvidos os depoimentos dos forasteiros no MS, o Jornal Midiamax decidiu provar se esses ‘clichês’ citados pelos entrevistados, além de outros mais, são verdadeiros, falsos ou até parcialmente reais. Além de tentar explicá-los com base em acontecimentos históricos do Estado e opiniões de especialistas de cada área. Vamos lá?

1. Clima quente e instável

Campo Grande: 6 clichês que não são (totalmente) verdadeiros
(Foto: Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

Sempre comparada à nossa vizinha, ‘Cuiabrasa’, Campo Grande tem a fama de ser uma cidade com temperaturas sempre muito elevadas e clima seco. Mas quem vive aqui sabe que nem sempre a previsão do tempo em um dia é constante e não se pode sair de casa sem um guarda-chuvas, casaco e protetor solar na bolsa.

“As mudanças dependem da época do ano. Nosso inverno, normalmente, é quente e seco como estamos passando agora. Mas o verão se torna quente e úmido. No inverno, a nossa posição geográfica favorece entrada de frentes frias. Então é comum ficar muito quente, depois chover, depois esfriar com um sol tímido… depois esquentar de novo com queda de umidade e altas temperaturas. No verão está sempre quente e com pancadas de chuva, o que leva ao mormaço”, conta a Coordenadora do CEMTEC Franciane Rodrigues.

Na última quinta feira, 30 julho de 2020, conforme os dados de estações meteorológicas do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), cidades de MS registraram temperaturas abaixo dos 10ºC. Em Campo Grande, a mínima foi de 12,2ºC. Mas já no sábado, 1º de agosto e dois dias depois, os termômetros marcaram 30ºC.

2. Animais silvestres nas ruas

Campo Grande: 6 clichês que não são (totalmente) verdadeiros
(Foto: Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

O Pantanal contribui, e muito, para esse falso clichê que leva quem é de fora a acreditar que Campo Grande é repleta de animais silvestres andando pelas ruas. Os memes e notícias de aparições de bichos, alguns aterrorizantes e outros majestosos, também fazem com que seja criada essa falsa impressão de que vivemos no meio da selva.

Apesar de errônea, Campo Grande conta com vários animais de diversas espécies que vivem em áreas próximas ao perímetro urbano ou reservas ambientais, entre elas Capivaras que passeiam próximo a lagos, quatis que se deleitam nos parques, jacarés tomando banho de sol e as saudosas araras vermelhas e canindé, que podem ser flagradas em coqueiros e durante voos baixos e majestosos.

Às vezes até animais que os moradores não estão acostumados a verem todos os dias dão as caras pelas ruas da cidade e causam surpresa. Um exemplo é a jiboia, de aproximadamente 2 metros, que foi flagrada atravessando a rua no e quase foi atropelada por um motociclista. Os animais também sofrem com as ações humanas, como por exemplo linhas de pipa com cerol que já ceifaram a vida de várias aves pela cidade.

3. Mandioca em tudo

A mandioca já cozida é a base do quibebe / Foto: Cozinha de MS/Divulgação

Tem coxinha de batata? Tem sim, senhor. Mas aqui em Campo Grande a mandioca é a principal dos ingredientes de várias receitas entre salgados e pratos tradicionais, como a vaca atolada, o pucheiro, pudim, a chipa, escondidinho e muito mais.

Uma pesquisa do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) de 2019 apontou que Campo Grande é a cidade que mais consome mandioca em todo o Brasil, com 15 kg por pessoa ao ano. Esses dados também mostram que Mato Grosso do Sul, com 23 kg per capita ao ano, está acima da média nacional de consumo, que é de 10 kg.

Mas isso não significa que o campo-grandense só coma mandioca, não é mesmo? Em 2018, o Sobá, trazido pelos japoneses imigrantes e encontrado na Feira Central, foi eleito por votação popular como Prato Típico de Campo Grande em concurso feito pela Prefeitura Municipal. Seguido dele, vieram o espetinho e o arroz carreteiro. Nada de mandioca.

4. O campo-grandense é fechado?

Campo Grande: 6 clichês que não são (totalmente) verdadeiros
(Foto: Henrique Arakaki, Jornal Midiamax).

Outro clichê corriqueiro que deixa os campo-grandenses com uma pulga atrás da orelha é a má fama do mau humor ou irritação. Salvas as exceções, sabemos que na realidade não é bem assim. As más impressões são as que ficam nos visitantes, mas o povo de Campo Grande também é dito por muitos como hospitaleiros e acolhedor.

Conversamos com o professor e antropólogo Álvaro Banducci Júnior à respeito do tema para tentar chegar a uma conclusão, ou possível tese, do porquê do campo-grandense não ser unificado e não seguir um estereótipo ‘do interior’. A explicação pode estar justamente na complexidade dos povos e culturas que fazem parte da história da cidade.

“Campo Grande é uma cidade relativamente nova. Cem anos é um período curto para consolidar tradições, para unir coletividades, sobretudo quando se trata de um local que teve pulsos variados de crescimento, atraindo fluxos de migrantes. Também é uma cidade interiorana, em muitos aspectos provinciana. Muitos de seus moradores estão envolvidos com um universo social bastante restrito, o que os torna desconfiados, arredios, quando colocados diante de novidades, sejam elas de ordem física ou mesmo a presença de pessoas forasteiras”, discorre o pesquisador.

A questão geográfica e ambiental também influenciam, mas não são extremamente determinantes. Campo Grande era uma cidade muito fria. O frio convida ao recolhimento, o que de certo modo reflete na dinâmica dos encontros sociais, da convivialidade. Também é preciso olhar para a formação social e econômica da cidade.

“A cidade tem seu desenvolvimento impulsionado pela chegada do trem. A partir da ferrovia o destino da cidade estará traçado e ele aponta para o futuro, para o progresso. Com a ferrovia chegam grandes grupos de migrantes, que vêm para se estabelecer e levar a vida na cidade”.

Influência cultural

Com a de outros países, estados e outros povos para a Cidade, torna-se compreensível a impressão de separação entre os campo-grandenses. A cidade conta com diversas culturas estrangeiras que formam uma eclética, como dos japoneses, sírios, libaneses, italianos, paraguaios, sulistas e indígenas.

Esses grupos tendem, de alguma forma, a fechar-se em torno de si, para protegerem-se, para se guarnecer inclusive dos olhares de estranhamento e preconceituosos da comunidade local. Isso faz com que se criem nichos étnicos na cidade. Se não totalmente reservados, ao menos, que se preservam em meio ao convívio social mais próximo.

“Temos comunidades cuja sociabilidade se desenvolve de forma mais intensa em espaços reservados, havendo a desconfiança em relação aos “de fora”, pois que acabam por representar ameaças, seja com o , seja com a rejeição a sua presença, entre outros aspectos”, frisa Álvaro Banducci.

5. Terra vermelha, Cidade Morena

6 clichês sobre Campo Grande que não são (totalmente) verdadeiros
(Foto: Arquivo, Jornal Midiamax)

Campo Grande é famosa pela terra vermelha está nos chãos pela cidade, daí o apelido de ‘Cidade Morena’ e seus derivados. Como em grande parte do interior do Brasil, a terra ‘roxa’, assim chamada pelos italianos imigrantes que vieram para o Brasil no séc XX, é muito ricas em nutrientes, como o ferro, responsável pela coloração avermelhada.

Presente nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e no Mato Grosso do Sul, a terra vermelha pode ser a mais famosa em Campo Grande, mas não é o único tipo de solo existente na Capital. Na região do Prosa, no nordeste da cidade, há a concentração de areia branca, por exemplo.

Por mais que existam outros tipos de solo, a cor desse latossolo vermelho é marcante, muito mais que solos mais claros que não deixam marcas tão visíveis. Os solos são formados a partir da decomposição de rochas. Então dependendo dos minerais presentes naquela rocha, a cor será diferente”, explica o arquiteto e urbanista Julio Botega.

No caso dos latossolos vermelhos, a rocha que predomina é o basalto, rica em ferro, que quando oxida fica vermelho. Assim que se decompõe, esta é a cor final dela quando se torna solo. Segundo o arquiteto, o solo tem diferentes granulações, como areia, silte e argila, definidas pelos tamanhos dos grãos

“A areia é o grão maior (só menor que pedregulhos). Então quando venta ela machuca, como na praia. O silte é essa granulação de pó que vemos, suja, etc… E a argila é quando ele fica úmido, não se movimenta praticamente”.

6. Ruas largas e arborizadas

Campo Grande: 6 clichês que não são (totalmente) verdadeiros
(Foto: Marcos Ermínio, Jornal Midiamax)

O último clichê que trazemos para esta lista é o das ruas de Campo Grande, que têm a boa reputação de serem espaçadas e arborizadas. Mas quem vive na cidade, principalmente nos bairros fora da região central, sabe que nem sempre é assim. Alguns bairros tem ruas tão estreitas que só passam um carro de cada vez e as calçadas viram estacionamento para não interromper o fluxo.
Apesar da boa arborização da cidade em relação a outras capitais, outro problema, destacado pelo arquiteto e urbanista Julio Botega, é a dificuldade de mobilidade urbana, principalmente para pedestres e ciclistas. O trânsito campo-grandense gira em torno da movimentação dos carros, o que acaba trazendo dificuldade para os outros meios de locomoção.

“Algumas ruas são largas de forma desproporcional, sem necessidade. Isso para os motoristas é ótimo, inclusive teorizo que muitos dirigem mal exatamente por terem tanto espaço. Acaba sendo ruim para os pedestres, que ao menos nesse centro expandido precisam cruzar vias muito largas. A medida que a população envelhece, isso se torna um problema”, frisa.

A solução, segundo o urbanista, estaria em cruzamentos e quadras mais curtas, boa arborização, boa qualidade das calçadas, usos mistos que possibilitem atividades e movimento de pessoas não apenas em horário comercial. Pensar a cidade para as pessoas mais frágeis, como crianças, idosos, pessoas com deficiência, atendendo a todos. Outro recorte importante é o de gênero.

“Considero relevante, a questão da segurança. Precisamos pensar as cidades que sejam seguras para mulheres, que ainda sofrem muito com violência urbana. Além do que pode afligir homens, mulheres tem outras questões que precisam ser consideradas. Quantas mulheres deixam de passar por uma rua, fazem um caminho mais longo para não passar em determinado lugar? Tudo isso precisa entrar quando pensamos e planejamos a cidade, refletindo em desenhos mais adequados para hoje”, considera Julio Botega.

Você concorda?

E aí? Depois de toda essa discussão, você concorda ou discorda com os clichês campo-grandenses? Mudou de ideia sobre algum preconceito? Conhece mais estereótipos que não foram listados aqui? Tem outras teses sobre os mistérios da Cidade Morena? Conte pra gente!

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