Se você não morava em ou não era nascido até os anos 80, provavelmente não sabe ou tem pouco conhecimento acerca dos muitos cinemas que haviam na cidade e também dos grandes nomes que fizeram a história do cinema sul-mato-grossense.

No Dia do Cinema Brasileiro, queremos levar você a uma viagem na história cinematográfica de Campo Grande, quando a capital nem era emancipada e ainda pertencia ao Mato Grosso, quando moradores iam de charrete em busca de um pouco de informação e diversão.

Os primeiros indícios de que a novidade se aproximava à Vila de Santo Antônio de Campo Grande são de 1903, quando Francisco de Barros, conhecido como “Chico Phonografo” apresentou aos moradores, pequenas histórias que eram vistas por um orifício, reproduzidas por uma manivela que fazia girar fitas de celuloide. Chico era um caixeiro-viajante que percorria as regiões interioranas do país para levar o “progresso da ciência”, é o que conta Marinete Pinheiro, jornalista, cineasta e pesquisadora do cinema campo-grandense, em um artigo publicado no site CPCB (Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro).

Mas é só no ano de 1910 que os moradores da região vivem a experiência de assistir o primeiro filme. Completamente diferente do que somos habituados com as grandes e confortáveis salas cobertas, quem saiu de casa para vislumbrar essa novidade a céu aberto se deparou com um longo tecido branco, pendurado em uma das paredes do Democrata e assentos feitos de tábuas e caixotes. Assim surgiu o Cine Brasil.

“Como aconteceu no mundo todo, ele foi um fenômeno porque era o único lugar que as pessoas tinham para se divertir, para se informar, era um lugar de convivência social”, conta Marinete Pinheiro.

Dois anos após a inauguração do Cine Brasil, em 1912, surge o primeiro cinema fechado de Campo Grande, o Cine Ideal, que ficava na Rua 7 de Setembro, quase esquina com a Rua 14 de Julho, região considerada alegre e muito movimentada na época. Em 1914 é a vez do Cine Rio Branco chegar à cidade, este localizado na rua 13 de Maio.

Em 1918, Campo Grande é emancipada e é no cenário de crescimento exponencial que o quarto cinema é inaugurado na cidade, no ano de 1920. O Cine Guarani ficava na Avenida Afonso Pena e suas instalações eram consideradas um luxo na época. Após uns anos de funcionamento, a administração foi trocada e o cinema passou por uma reforma e troca de nome. Passou a se chamar Cine Central e recebia lançamentos de filmes famosos e apresentações de teatro amador.

Representação de como era o Cine Guarani. (Foto: Marinete Pinheiro)

No ano de 1929, na Rua Dom Aquino, é inaugurado o Cine-teatro Santa Helena, considerado um marco na cultura da cidade, já que mudou a forma como as pessoas enxergavam a região. Isso porque na época, aquela localidade era conhecida pelos prostíbulos e por ser ponto de jogatina. Com a inauguração do cinema, aquele espaço deixou de ser marginalizado e as pessoas passaram a frequentar diariamente.

Em 1932 surge um cinema para competir de frente com o Cine Central, o Cine Trianon, que ficava na 14 de Julho. Naquela época, sempre que um filme de sucesso era exibido, era normal que os soldados disparassem foguetes, como comemoração.

O ano de 1937 foi marcado por dois grandes acontecimentos no universo cinematográfico da época. Neste ano, o Cine-teatro Santo Helena passou por uma troca de administração e com a nova reforma, recebeu diversos equipamentos vindos da Europa, o que possibilitou que filmes fossem exibidos com som e imagem simultaneamente. Pouco tempo depois dessa reforma, é inaugurado o Cine-teatro Alhambra, também na Avenida Afonso Pena, que só foi demolido em 1987, dando espaço a um novo hotel.

Cine Alhambra. (Foto: Marinete Pinheiro)

O Cine Rialto foi construído logo na sequência, na Rua Antônio Maria Coelho. Em seu artigo, Marinete também conta que muitas pessoas saiam de suas casas com lampiões a gás, para poder aproveitar um bom filme. Nessa época, poucos tinham acesso ao rádio, já que era um item de luxo, e a televisão não existia. O cinema era uma das únicas fontes de diversão, informação e se tornou um ponto de encontro entre amigos e casais. “A gente sabe que muitos casais se encontraram nas filas ou nas salas dos cinemas. Era uma fuga para os namorados pegarem na mão, darem beijos no escurinho do cinema… Então ele teve esse papel e também teve o papel de ser informativo. Então, a gente tem esses espaços com muitas histórias a serem contadas assim, por essas pessoas que viveram esses momentos”, afirma Marinete.

Cine Rialto funcionava no prédio em que hoje é o templo Seicho-No-Ie. (Foto: Reprodução/Anos Dourados-Campo Grande)

Depois do Cine Rialto, outros cinemas também foram construídos em Campo Grande, inclusive nos bairros mais afastados. É o caso do Cine Estrela, construído em 1972 no bairro Santo Amaro. Apesar da distância, ele atraiu muitos espectadores durantes seus seis anos de funcionamento.

Ainda nos anos 70, o Auto Cine de Campo Grande foi inaugurado e em 1983, a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) assumiu com administração, com espaço para 128 carros, além de uma arquibancada para que as pessoas que chegassem a pé pudessem assistir. Nesta mesma época, começaram a funcionar outros dois cinemas: Plaza e Center, os dois instalados na de Campo Grande.

Nessa mesma época, começou o movimento cineclubista, que tinha cunho social e crítico. “Ele nasceu como um movimento de formação social, de crítica, utilizando o cinema. Claro, tinha o entretenimento que era a exibição de filmes, mas trazia muito desse aspecto informativo, de educação, de difusão de informação política. Então, esses espaços foram muito importantes na formação social de Campo Grande”, conta Marinete Pinheiro.

Muito importante para este movimento foi a família Lahdo, responsáveis pela produção de jornais que passavam antes da exibição principal. “As notícias antecediam os filmes, porque era como as pessoas se informavam antes da chegada da televisão”, explica.

No entanto, este cenário começou a mudar no fim dos anos 70 com a popularização das televisões. Isso porque o número de espectadores nos cinemas começou a diminuir, já que as pessoas estavam agora interessadas em conferir as novidades televisivas e assim, aos poucos, as salas que ainda permaneciam abertas, começaram a dar espaço para que outros estabelecimentos ocupassem seu lugar. “A chegada da televisão é nos anos 50, só que ela passa a adentrar as casas das pessoas a partir dos anos 70. Quando ela começa se popularizar, é que a gente vê o fechamento das salas do cinema de rua”, afirma Marinete.

Ainda hoje é possível observar a estrutura de alguns desses cinemas já que alguns nunca foram destruídos ou ocupados novamente. “É uma pena que esses prédios tenham sido apagados da arquitetura da cidade. O Alhambra foi demolido da Afonso Pena e você vai conseguir ver, por exemplo, o Cine Santa Helena, que era ali na Dom Aquino. Hoje é uma loja de confecções”, conta.

E se você está se perguntando qual foi o primeiro filme produzido em solo sul-mato-grossense, Marine explica que estudos estão sendo feitos para esclarecer essa dúvida. “Em 1965 a Cinematográfica Lahdo produziu o filme ‘Paralelos Trágico' com toda equipe artística e técnica daqui. Um professor da IFMT está pesquisando ele, pois pelos registros pode ser considerada a primeira obra do MT, já que foi antes da divisão. Esse filme é um marco, e a família Lahdom, em especial os irmãos Abooud e Bernardo, fizeram grandes contribuições para história do nosso cinema com salas como o Acapulco, Jalisco e Cine Plaza”, explica.

(Foto: Reprodução/Marinete Pinheiro)

David Cardoso, “Rei da Pornochanchada” e ícone do cinema campo-grandense

Ator, produtor e diretor de cinema nascido em , David Cardoso é, sem dúvidas, um dos nomes mais relevantes do cinema sul-mato-grossense. Conhecido como o “Rei da Pornochanchada” por ter sido um ator muito popular nas comédias eróticas dos anos 70, o artista revolucionou o cinema da época e colocou Mato Grosso do Sul nos holofotes brasileiros.

David Cardoso (Foto: Reprodução)

“David Cardoso superou as barreiras técnicas e conceituais de um período onde fazer filme era uma saga. ‘Caingangue, A Pontaria do Diabo', é um faroeste produzido na década de 1970 e é extraordinário pelos aspectos de produção. Além disso, é possível ver a cidade de Maracaju como uma pequena vila com ruas de terra, por exemplo. ‘Dezenove Mulheres e Um Homem' foi durante o período de censura e ditadura, estabelece classificação etária de 18 anos e ele consegue colocar mais de um milhão de espectadores nas salas de cinema do Brasil, figura entre os filmes como maiores bilheterias”, pontua Marinete.

No ano de 1963, David se mudou para e lá trabalhou na empresa do ator Amácio Mazzaropi, no cargo de técnico e continuísta. Não demorou muito para que se destacasse por lá e ganhasse a oportunidade de estrear seu primeiro filme.

“A Moreninha”. (Foto: Reprodução)

Seu primeiro trabalho como ator foi no filme “O Lamparina”, de 1963. O segundo, com uma participação mais expressiva, foi “Corpo Ardente”, do diretor Walter Hugo Khoury.

O seu destaque no mundo cinematográfico chegou com seu papel em “A Moreninha”. Nessa época, desejando crescer dentro do mercado, David montou sua própria empresa onde atuou como ator, produtor e diretor.

Foi nos anos 70 que ele migrou para o ramo das pornochanchadas. Nessa época esse estilo de filme invadiu as salas de exibição e o ator se tornou a figura mais significativa do ramo. Em toda sua carreira, David participou de mais de oitenta produções em cinema, televisão e teatro.

Marinete Pinheiro – Salas de Sonhos

Marinete Pinheiro é jornalista, cineasta, escritora e pesquisadora do cinema. Seu despertar para o universo cinematográfico começou ainda na época em que era universitária, e rendeu livros, artigos e documentários que contam as histórias dos cinemas e também das pessoas que viveram essa época.

“Minha trajetória no cinema começou quando eu estava fazendo e escrevi o primeiro livro ‘Salas de Sonhos – História dos Cinemas de Campo Grande', onde eu vou atrás da memória das pessoas que viveram esses espaços. Acabei publicando em 2008, três anos depois que eu me formei. Em 2010 eu lancei meu segundo livro. Eu viajei o Estado todo procurando essas salas de cinema e fiz ‘Salas de Sonhos II', que era a memória do cinema de Mato Grosso do Sul. Chegamos na cidade, procuramos pessoas, procurava o cinema, procurava as histórias dos cinemas ou quem pudesse contar delas”, relembra Marinete.

Livro “Salas de Sonhos – Memórias dos Cinemas de Mato Grosso do Sul. Vol II”. (Foto: Reprodução)

“Eu sinto muito que nesse momento eu não tenha gravado essas entrevistas em vídeo porque era um recurso pouco acessível”, lamenta ao lembrar das conversas tidas com várias pessoas que viveram a época do cinema de rua e compartilharam suas memórias com a jornalista.

“Todos os municípios tinham uma sala de cinema e muitas dessas histórias estão indo com essas pessoas. Eu não consegui registrar todas, mas consegui registrar algumas muito significativas”, pontua.

“O cinema sempre foi uma ferramenta muito poderosa de formação social, de convivência, de entretenimento, de conhecimento, e ele vai se adequando ao tempo. Então, a gente vê ainda, as pessoas consomem muito filme. Não são mais só nas salas de cinema, mas você pode conversar com qualquer pessoa e ela vai falar de um filme que ela assistiu, de um filme que ela gostou. Sempre vai ter algum filme de referência para falar com você”, finaliza.

Hoje a cineasta se dedica a sua empresa “Sonhares Filmes” e segue no processo de pesquisa de formação e de produção audiovisual no Estado.

(Foto: Reprodução/Marinete Pinheiro)

Curta-metragem “Salas de Sonhos” é imersão na história do cinema

Para explicar mais a história dos cinemas de Campo Grande, a jornalista e cineasta Marinete Pinheiro produziu o curta-metragem “Salas de Sonhos”, que narra desde a criação da primeira sala, até os dias atuais. “É um vídeo de seis minutos e ali eu conto sobre a sala de cinema desde 1910, até os dias atuais em Campo Grande. Alguns lugares eu não consegui ir. Tenho fotos antigas, então eu fiz desenhos que reproduzissem esses espaços a partir de referência de prédios que estavam na mesma rua, no mesmo endereço, e aí eu convidei uma arquiteta para me ajudar com esses desenhos”, explica a escritora.

Assista o curta: