Ao passar da guampa, pouco ou nada se sabe da história da erva-mate usada no tereré
A história da bebida tradicional de Mato Grosso do Sul se confunde com a do surgimento de cidades e também do desenvolvimento do Estado
Guilherme Cavalcante –
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Se há uma tradição que resiste ao tempo em Mato Grosso do Sul é o hábito de tomar tereré, cuja ancestralidade pode remeter há séculos, herdado dos indígenas e dos paraguaios. A bebida que faz infusão da erva-mate com água geladíssima (às vezes, combinada com hortelã, limão ou outros ingredientes) é alívio para os frequentes dias quentes. Mas, até no inverno o costume é presenciados nas residências, nas ruas e até em ambiente de trabalho.
Não foi a toa, portanto, que o tereré conquistou o status de Patrimônio Imaterial de Mato Grosso do Sul quando, em 2011, o Conselho Estadual de Cultura deliberou por seu tombamento no Livro de Registro dos Saberes. “Seu consumo no município remonta ao passado, ao surgimento das comunidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, que floresceram face ao ‘Ciclo da Erva-Mate’, continuando presente nos hábitos da população desta região”, traz trecho do parecer, que posteriormente fundamentou decreto estadual.
Mas, por trás do costume – cabe destacar – seguem ocultas quase seis décadas marcadas por atos de ganância, autoritarismo e perversão, entre o final do Século XIX e início do Século XX. A história que precede e ajuda a explicar o hábito do tereré está casada com o ciclo econômico dos ervais na região sul do Estado. Uma história de horror que segue pouco lembrada e ignorada pelas gerações atuais.
Feudo pós-colonial
Muito antes de Mato Grosso ser um Estado, e muito antes da divisão que foi celebrada no último dia 11, a parte sul do atual MS, na região da fronteira com o Paraguai, era marcada pela exploração econômica de lavouras de erva-mate. Uma grande companhia, a Matte Larangeira, ergueu por ali um império entre 1882 a 1942.
À frente da empresa estava Thomaz Larangeira, um servidor público do Brasil-Império. Ele vistoriava a região logo após a vitória da Guerra da Tríplice Aliança para medir a nova fronteira brasileira quando notou ervais nativos. Na época, o consumo era insignificante até mesmo na região, mas havia um mercado sedento, por assim dizer, com o costume bastante enraizado: a região da Bacia do Prata, que engloba países como Argentina, Paragai, Uruguai e os pampas brasileiros.
Diante da oportunidade, Larangeira tornou-se, então, empresário. E usou da influencia na corte imperial para conseguir a concessão das terras – inicialmente por dez anos, e formaria mais à frente uma espécie de feudo pós-colonial no qual a empresa Matte Larangeira se ergueu.
O arrendamento da terra era renovado sem dificuldade, proporcionando o crescimento patrimonial da companhia, principalmente após Larangeira estabelecer relações com os novos sócios-proprietários, integrantes da então poderosa família Murtinho, uma oligarquia familiar que tinha de senadores, governadores, fazendeiros e empresários de Mato Grosso.
“Estamos falando de cerca de 9 milhões de hectares de terra na fronteira seca com o Paraguai. Quando ele conseguiu essa área, passou a explorar economicamente a erva-mate dessa região e criou um império no qual ninguém entrava”, explica o historiador Eronildo Barbosa da Silva. O lucro gerado a partir da atividade era tanto que superava o PIB (produto Interno bruto) que o Mato Grosso “uno” gerava, na época.
Milícia
Os registros históricos trazem relatos de que a relação trabalhista era análoga à escravidão. Os trabalhadores ervateiros viviam nas áreas de domínio da companhia e eram explorados das mais diversas maneiras, além de trabalharem de forma degradante. A colheita da erva-mate era completamente manual e os ervateiros precisavam carregar tudo nas costas, literalmente.
“Ela criou relações de trabalho nocivas aos ervateiros. Na região dos ervais estavam terras indígenas e tinha a proximidade com a fronteira. Então, os trabalhadores da companhia eram basicamente paraguaios, atraídos pela oportunidade de emprego, e índios de etnia Kaiowá. Mas eram pessoas muito miseráveis, que faziam um trabalho braçal intenso”, relata.
Tudo isso ocorreu antes de 1943, ou seja, antes de Getúlio Vargas sancionar a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) e também antes da região passar a ser um território federal. “As pessoas que trabalhavam nos ervais eram exploradas de todas as maneiras possíveis e imagináveis, ganhavam muito pouco. O trabalho nesses campos custavam mais que a saúde delas. Havia até uns pontos de parada nas estradas para que essas pessoas pudessem descansar o pé”, conta Barbosa.
O crescimento da empresa pode ser comparado a um estado paralelo. As terras exploradas contavam até com uma polícia própria, chamados de comitiveiros. Esses homens mantinham os trabalhadores em armazéns e forneciam as ferramentas para trabalho. Porém, a utilização dos apetrechos era cobrada no ato do pagamento, conforme relato do historiador Elecir Ribeiro Arce.
“Os ervateiros, além de explorados no trabalho braçal, ainda ficavam ‘presos’ na dependência do armazém, que lhes forneciam víveres, ferramentas e outros produtos. Atrelado a empresa e por falta de condições, o trabalhador era obrigado a submeter às duras condições nos ervais. Viviam num mundo de violência, trabalhavam muito, ganhavam pouco e eram vigiados o tempo todo pelos homens armados mantidos pela companhia”, destaca o artigo.
Desenvolvimento obstruído
De forma geral, o desenvolvimento da região sul do Mato grosso tinha na companhia o principal obstáculo. Isso porque o surgimento de novas cidades – uma consequência natural da atuação de posseiros de pequenos lotes de terra – era fortemente combatido. A empresa tinha forte aparato judicial, influência política, além da própria milícia, para afastar o interesse de imigrantes gaúchos e outros posseiros pela área.
Com isso, a região acabou por se tornar, nos anos 20 e 30 do século passado, uma zona de conflito – tanto a partir dos posseiros como de indígenas. É um dos fatos que iriam atrair a atenção do então presidente Getúlio Vargas, que visita a região em 1942. Vargas cria, a partir dali, o território de Ponta Porã, que cobre quase toda a área de atuação da companhia. Na prática, Cuiabá passaria a ter menos influência política sobre a região.
Mas, o golpe de misericórdia foram as reformas agrárias implementadas na região logo na sequência. Em 1941, Vargas negou a renovação da concessão de exploração da terra à companhia. Paralelamente, seu governo implantou um ousado plano de colonização do “sertão”, também conhecido como “Marcha para o Oeste”. Os latifúndios foram fragmentados em pequenos lotes. Naquela região, Vargas criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados. Os pequenos produtores começaram a explorar a erva-mate e surgiram cooperativas.
“Eram pequenos lotes de terra, que variavam entre 10 e 30 hectares, no que é considerado atualmente a maior reforma agrária do país até os dias atuais. Desse ato, nasceriam até novas cidades”, explica o historiador.
Crise na exportação
Os indícios de declínio do cultivo de erva-mate já eram sentidos nos anos 30 e afetavam desde a Matte Larangeira aos pequenos produtores. Basicamente, porque as exportações passaram a cair quando a Argentina, que era a principal compradora, passa a colher erva-mate em território próprio.
Todos saem perdendo, principalmente quando dali a algumas décadas as exportações cessam de vez e o país vizinho deixa de comprar erva-mate do Brasil – precisamente em 1966, data que marca o fim de um ciclo econômico, mas também pode ser entendida como o fim de um sistema exploratório desumano.
A erva-mate – que por décadas foi tão valiosa quanto o ouro – justificava, aos olhos da ganância, a exploração de pessoas e o subdesenvolvimento. Muitos anos depois, o principal ingrediente do tereré é presente em mercados e guampas Estado a fora. Ganha sabores e modos de consumo. O tereré é o hábito que ficou da influência paraguaia – sobretudo após a guerra que ampliou as fronteiras brasileiras – intensificado após o ciclo econômico que explorou ervais em toda a região sul de MS.
Sul-mato-grossenses recorrem à infusão para socializar, combater o calor, fazer correr o tempo. Mas, ao passar da guampa, pouco ou nada de seu precedente econômico é lembrado pelos consumidores.
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