Mesmo antes de ser alfabetizada, Helena compunha com a ajuda do filho

Por trás do jeitinho tímido, da voz baixa e da pouca altura, se esconde uma bravura daquelas de assustar até os leões. Nas mãos, marcadas pelo tempo e trabalho de uma vida toda, as unhas pintadas cuidadosamente de roxo forte e reluzente indicam a ternura com que viveu, e na maioria das vezes, sobreviveu aos encalços que lhe apareceram ao longo de seus 66 anos. Esta história é sobre Helena Santos, mas caberia a milhares de mulheres Brasil a fora. Por descuido, cegueira ou insensibilidade, o corriqueiro desponta e ganha as linhas deste texto. Pois bem, vamos a ele.  

Aos 5 anos de idade, a então menina Helena e seus três irmãos, foram deixados pelos pais na cidade em que nasceu Rui Barbosa, na Bahia.  O ano exato ela não se lembra, mas a sensação, essa ela nunca esqueceu. “Lembro até hoje quando mamãe me deixou na porta da madrinha e disse que ia embora. Isso eu nunca esqueci”, nos conta apontando para a porta ao indicar o local onde foi deixada.

Hoje, mais velha e experiente, Helena se dá conta de que a madrinha não era assim tão madrinha. “Naquela época tinha muito preconceito, sabe? Era uma família branca e eles me queriam mais como escravinha para cuidar dos filhos deles e trabalhar. ” Mas não era a rotina dura de trabalho que a incomodava. Isso ela tirava de letra.

Foi o fato de nunca ter ido à escola, mesmo vendo os irmãos de criação frequentando as aulas, que por muito tempo lhe amargurou, mas não roubou seu sonho de aprender a ler e a escrever. Por muitos anos sentiu vergonha e uma profunda tristeza por não saber ao menos escrever seu nome. Depois de encontrar um homem que” gostava de andar”, dona Helena veio parar em . Por aqui teve outros seis filhos.

Certo dia se deu conta de que via a vida em forma de poesia, aquilo que chama de ‘dom de Deus'. “É uma coisa que sempre senti. As palavras, o sentimento chega eu não sabia como falar. Um dia aceitei que era um dom e comecei a recitar para o meu filho e ele escrevia”, explica. De lá para cá, passados quatro anos, dona Helena já compôs mais de 200 músicas. Pelo menos 70 foram registradas ‘no Rio de Janeiro', como faz questão de me lembrar.

Mesmo contando com a colaboração do filho, dona Helena queria mais, ela queria estar desperta nesse mundo das letras que exclui sem dó aqueles que não as juntam em palavras com sentido e significado. Há dois anos ela procurou uma escola que oferece aulas a adultos e tomou as lições. Boa aluna que era, tratou de aprender bem rapidinho o bê-á-bá, e nunca foi tão feliz. Hoje se orgulha de ler e escrever, com bastante dificuldade, já que teve de abandonar as aulas para cuidar de dois dos seus filhos que sofrem com depressão.

“Meu filho não sai do quarto. Tenho medo de deixar ele sozinho e acontecer alguma coisa. Por isso não pude mais ir para as aulas. Mas eu amava a escola”, lamenta, sem se queixar.

Com o pouco dinheiro que recebe, dona Helena mantém a casa e os filhos. Tem uma rotina dura de dona de casa e os anos de trabalho pesado na juventude lhe trazem muitas dores hoje em dia. Mas tudo isso acaba, se torna bem pequenininho, quando ela se recolhe para escrever. São duas horas diárias em que a única coisa que a importa são as experiências e sentimentos dos personagens de suas letras, “já fui rica, pobre, branca, preta, homem e mulher. Algumas coisas vivi, mas a maioria são coisas da minha cabeça”, conta.

Recentemente, juntou dez de suas músicas favoritas e pagou a alguém para criar os arranjos e dar voz aos versos, “já que não tem voz para cantar”. Lhe foram cobrados mil reais, mas Helena não ficou satisfeita. “Penso que podia ter mais instrumentos e arranjos diferentes. Mas só tive dinheiro para pagar por isso”, diz enquanto ouvimos seu CD tocando no Para compor suas músicas, dona de casa aprende a ler e a escrever aos 66 anosradinho antigo na sala de estar.

Mas essas dificuldades todas não a assustam, para quem teve de procurar pelos pais a vida inteira – a saga em busca dos pais merece um capitulo à parte e abaixo contaremos –  correr atrás deste sonho é moleza.  “Tenho fé de que um dia meu sonho vai se realizar e alguém famoso vai gravar uma música minha. Quem sabe, né?”

A saga

Aos 12 anos Helena fugiu da casa da madrinha com quem foi deixada pelos pais aos 5 anos. De lá, ela partiu para a casa de um dos tios que vivia em um povoado próximo. “Lá era melhor, trabalhava menos. Só para ajudar mesmo. Foi bom”, nos conta recordando os prazeres da juventude.

Pouco tempo depois conheceu seu primeiro amor, com quem teve dois filhos. Depois de um tempo juntos, se desentenderam e o espírito livre da Helena jovem a fez juntar “os panos e os filhos” e partir para Goiás com o objetivo de encontrar a família e encontrou.

Por lá pediu ajuda para várias prefeituras e instituições “dizia o nome do papai e da mamãe e avisava que a filha Helena estava procurando”. Depois de muito tempo ela encontrou a família, mas com eles viveu pouco tempo, afinal era preciso trabalhar.

Foi trabalhar como doméstica em Brasília e lá conheceu seu  segundo amor, com quem viveu 30 anos. Foi com ele que ela veio para Mato Grosso do Sul fincar raiz definitivamente. Aos pais continuou mandando cartas, mas em determinado momento ela deixou de receber respostas e foi preciso iniciar outra jornada em busca dos “Santos”.

“Voltei para Goiás e fui a todas as rádios e televisões que existiam na época. Quando encontrei, não me reconheceram. Já estavam bem velhos e eu também. Uma prima lembrou de mim e mamãe se deu  conta de que era eu. Meu pai já tinha falecido”.

Sem pestanejar, Helena trouxe a mãe para Campo Grande e as duas viveram juntas por 11 anos até que “mamãe faleceu” aos 106 anos de pura lucidez e vigor físico. “Eu fui feliz. Agradeço todos os dias por ter procurado por eles. Nunca desisti e não vou desistir da música também”, nos diz ao mostrar, pela primeira e única vez, seu sorriso de mulher guerreira.